O outro método para lidar com os retirantes foi a construção de campos de concentração. No romance O Quinze, da escritora cearense Raquel de Queiroz, é possível ler descrições detalhadas de um destes campos de concentração. A personagem principal do romance Conceição ajudava na distribuição de comida e roupas no campo. O romance chama-se O Quinze por tratar justamente da seca de 1915.
O povo cearense tem o hábito de rir da própria desgraça. Em Fortaleza, um bode trazido pelos retirantes desta seca virou personagem histórico porque vivia passeando sozinho pelas ruas como se fosse mais um habitante da cidade. Era muito conhecido das crianças da época. Seu nome era bode "ioiô". Ao morrer o bode foi empalhado e pode ser visto no Museu Histórico do Ceará.
Bode Ioiô - Encontra-se hoje no Museu do Ceará
Um amplo programa de criação de campos de concentração, em que os retirantes fossem induzidos a entrar e proibidos de sair, foi implementado com total apoio da Interventoria Federal no Ceará. A fim de prevenir a "afluência tumultuária" de retirantes famintos a Fortaleza, cinco campos localizavam-se nas proximidades das principais vias de acesso à capital, atraindo os agricultores que perdiam suas colheitas e se viam à mercê da caridade pública ou privada. Dois campos menores situavam-se em locais estratégicos de Fortaleza, conectados às estações de trem que traziam os famintos, impedindo que eles circulassem livremente pelos espaços da capital. Uma vez dentro do campo, o retirante era obrigado não só a permanecer nele durante todo o período considerado de seca, mas deveria submeter-se a condições de moradia, relacionamento, trabalho e comportamento regulados pelas normas irredutíveis ditadas pelos dirigentes indicados pelo interventor – prefeitos nomeados e engenheiros do IFOCS. Os campos, portanto, pretendiam impedir a mobilidade física e política dos retirantes através da concessão de rações diárias e de assistência médica. O controle dessa imensa população – o maior campo, na cidade do Crato, chegou a abrigar quase 60 mil pessoas – representou um gigantesco esforço de organização, que tinha seu contraponto nas ações violentas das multidões de retirantes que ameaçavam tomar em suas mãos a resolução de suas aflições.
Ao mesmo tempo, novos campos de concentração foram organizados na capital, procurando evitar o trânsito indesejado dos retirantes pelas ruas da cidade. Em outubro, os campos foram unificados no campo do Alagadiço, sob a direção das irmãs Marianas, do Dispensário dos Pobres. Uma comissão de senhoras, liderada pela sr.ª Anita Gentil Barbosa, administrava os serviços, procurando oferecer socorro para as crianças, vestuário e assistência hospitalar, tendo conseguido um "generoso auxílio do comércio" e prometendo prestar contas do dinheiro arrecadado, "uma vez findos os seus trabalhos". O campo, também chamado de "albergue", no entanto, não era "rigorosamente o que desejavam realizar as autoridades do Ministério do Trabalho", com dois mil retirantes se amontoando "sob a sombra de árvores frondosas, encontrando-se, por conseguinte, expostos á chuva", em condições higiênicas precárias.
Os campos de concentração no Ceará — ou mais conhecidos como os currais do governo — foram locais de apoio e alojamento para as vítimas das secas de 1915 e 1932.
Os períodos de estiagem que fazem parte do clima do Nordeste brasileiro despertaram (e despertam) a atenção dos governantes desde a época do Império de D. Pedro II. E, por sua vez, estes reagiram com planos e projetos nas áreas de engenharia, social e política, tentando assim amenizar as conseqüências das secas tanto para as populações diretamente afetadas (os flagelados), bem como as classes políticas locais.
A criação do Instituto de Obras Contra as Secas (IOCS), atual Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS), em 1909 por Nilo Peçanha é uma das respostas governamentais ao fenômeno da seca.
Os campos de concentração no Ceará ou os "currais do governo", foram reações governamentais executadas nas secas de 1915 e 1932 no estado do Ceará.
No campo de concentração do Alagadiço, estima-se um ajuntamento de 8 mil pessoas, cuidadas com alguma comida e sob a vigília de soldados. A razão para o uso desta estratégia foi os temores de invasões e saques dos flagelados da seca em Fortaleza — isso já acontecera na seca de 1877, quando sertanejos famintos invadiram a capital cearense, atemorizando a população urbana. Esse campo foi desfeito e as vítimas foram dispersadas em 18 de dezembro do mesmo ano. Durante essa seca, muitos cearenses também migraram para a Amazônia.
Retirantes da seca de 1915 na Ponte Metálica de Fortaleza aguardando embarque.
Acervo Nilson Cruz
Campos de concentração foram restritos ao Ceará
Os registros mais confiáveis sobre os "currais do governo", como os confinamentos eram denominados pelos flagelados, são encontrados no livro 'Campos de concentração no Ceará' (Edição Outras Histórias / Museu do Ceará, 2000, 120 páginas), de Kênia Rios. Segundo a autora, não existem referências de que a experiência tenha sido repetida em outros estados. O primeiro campo, conforme Rios, surgiu em 1915, instalado no bairro alagadiço. Mais tarde, na seca de 1932, os campos foram ressuscitados como política do governo federal.
"Do ponto de vista oficial, os campos aparecem como medida de assistência aos flagelados que não tinham trabalho nas frentes de serviço", diz a autora. Mas a realidade, segundo ela, era outra. "Os famintos eram atraídos com a promessa de comida, assistência médica e segurança. Lá não encontravam a estrutura prometida e não podiam sair do campo, sendo mantidos presos. Tudo para evitar que Fortaleza fosse invadida por famintos", comenta Rios.
A capital foi a única cidade a receber dois 'currais', um no Otávio Bonfim e outro no Pirambu, este conhecido como Campo do Urubu. O maior campo do Estado estava instalado em Buriti, distrito do Crato. 'Pelos registros oficiais, passaram por lá 65 mil pessoas em 1932', informa. Ela diz que alguns campos, projetados para receber duas mil pessoas, chegavam a manter até 18 mil flagelados de uma só vez. A fome e a insalubridade dos campos levaram, inevitavelmente, a milhares de mortes. "Os livros de óbitos das igrejas mostram que 90% das mortes registradas naquele período aconteciam nos campos de concentração."
No 'curral' de Ipu, segundo Rios, a média era de sete a oito mortes por dia. Depois de 1932, a experiência dos campos foi abandonada no Ceará. "Houve muita polêmica em torno desta experiência. Também tinha o estigma dos campos de concentração nazistas. Por isso, nos anos 40, 50 e 60, o governo adotou outra prática, criando abrigos que foram batizados de albergues, onde os flagelados tinham mais apoio e liberdade."
Délio Rocha
Repórter
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A segregação dos miseráveis era lei, mas chegou um momento em que o flagelo em massa era tão chocante, com uma média de 150 mortes diárias, que o governo do Estado ordenou, em 18 de dezembro de 1915, como contam os arquivos dos jornais da época, a dispersão dos flagelados, ou “molambudos”, como eram também conhecidos.
Segundo o historiador Marco Antônio Villa, autor de Vida e Morte no Sertão, durante a seca de 1915 teriam morrido pelo menos 100 mil nordestinos. Outros 250 mil migrantes para escapar da “velha do chapelão” – como a fome era conhecida no imaginário do semi-árido.
O medo das autoridades diante dos flagelados da seca tinha um antecedente. Em 1877, uma leva de cerca de 110 mil famintos saiu dos sertões e tomou as ruas de Fortaleza, assombrando os moradores que viviam a ilusão, importada de Paris, de urbanismo e civilidade. No livro A Fome, o mais consistente relato sobre o cenário de 1877 nas ruas da capital, o cientista e escritor Rodolfo Teófilo assim descreveu o que viu: “A peste e a fome matam mais de 400 por dia! O que te afirmo é que, durante o tempo em que estive parado em uma esquina, vi passar 20 cadáveres: e como seguem para a vala! Faz horror! Os que têm rede, vão nela, suja, rota, como se acha; os que não têm, são amarrados de pés e mãos em um comprido pau e assim são levados para a sepultura. E as crianças que morrem nos abarracamentos, como são conduzidas! Pela manhã os encarregados de sepultá-las vão recolhendo-as em um grande saco; e, ensacados os cadáveres, é atado aquele sudário de grossa estopa a um pau e conduzido para a sepultura”.
Memórias do horror
O ano da graça de 1915, relatado na ficção de Rachel de Queiroz, sertaneja da fazenda Não me Deixes, no município de Quixadá (CE), seria apenas o ensaio da segregação estatal dos miseráveis. Em 1932 é que o modelo de isolamento iria vingar para valer. Na “seca de quinze” – como era chamada a estiagem – ainda não existia sequer a famosa “indústria da seca”, como se convencionou chamar a ajuda do poder federal às oligarquias nordestinas – diante das ameaças de saques e violência das legiões de famintos, os grandes proprietários de terra sempre chantagearam o governo federal, principalmente a partir dos anos de 1930, alocando recursos para a região que na maioria das vezes acabavam se revertendo em benefícios das próprias elites.
“De longe eu sentia o cheiro de podridão, chegava a tapar as ventas. Era tão forte o fedor que é como se eu o sentisse hoje, mesmo eu estando com a memória fraquinha, fraquinha”, diz Manuel Conceição Rodrigues de Sá, 87 anos, um rapaz de 15 anos durante a seca braba de 1932. Hoje, ele mora no subúrbio de Juazeiro do Norte, no Ceará, terra do Padre Cícero, personagem que já era celebrado como santo naquele tempo, pelas levas de famintos que buscavam por sua bênção. Manuel morava, então, no município de Serra Talhada, em Pernambuco. Trabalhava como tropeiro – tocava burros com carregamento de cachaça dos engenhos da região do Cariri, no sul do Ceará, para municípios de Pernambuco e da Paraíba. “Era num sítio ali perto do Crato, só vi uma vez de perto o campo de concentração, nunca mais tive coragem de passar junto. Pense num desmantelo! Gente apodrecendo de verdade, pareciam uns urubus quando o governo mandava comida”, afirma o ex-mascate.
O cearense do Cariri Miguel Arraes de Alencar, nascido em dezembro de 1917, na cidade do Araripe, governador de Pernambuco por três mandatos, guarda também lembranças do campo de concentração do Crato, onde morou sua família. “A seca braba de 32 é muito forte em minha memória. Um dia, quando ia estudar, me deparei com três homens presos. Eram flagelados do curral da concentração. Foram presos como desordeiros, só porque ficaram revoltados com as injustiças na distribuição de comida por lá”, afirmou Arraes em 2002. “É uma lembrança que guardo para sempre, as histórias vindas de lá eram um horror danado.”
Antiga vila operária construída em 1919 em Senador Pompeu, para a construção de um açude foram utilizados depois como campo de concentração.
Pelo campo de concentração do Crato passaram cerca de 65 mil pessoas durante aquela estiagem. Ali, o governo prometia comida, água, assistência médica e oferta de trabalho. Pouco disso, no entanto, acontecia. Não havia água tratada, nem comida para todos e muita gente morria de fome ou doença e era sepultada ali mesmo. O campo se tornou um foco de tudo o que é infecção. Em alguns dias, o número de mortes de famintos alcançava a marca de 200. Há registros de pelo menos outros cinco currais no estado do Ceará, localizados em Quixeramobim, Senador Pompeu, Cariús, Ipu, Quixadá e o último nos arredores de Fortaleza, como derradeira tentativa de evitar que os famintos convivessem com a população da capital.
Os 12 casarões da antiga vila -erguidos em 1919 para abrigar operários e engenheiros ingleses que trabalhavam na construção de um açude na região foram depois utilizados como sede do campo de concentração.
“Eram locais para onde grande parte dos retirantes foi recolhida a fim de receber do governo comida e assistência médica. Dali não podia sair sem autorização dos inspetores do campo. Havia guardas vigiando constantemente o movimento dois concentrados. Ali ficavam retidos milhões de retirantes a morrer de fome e doenças”, diz a historiadora Kênia Rios, da PUC-SP. As estatísticas oficiais, que não conseguiam abarcar todos os alistados nos “currais”, dão conta de 73.918 “molambudos” nas seis áreas de confinamento – 6.507 em Ipu; 1.800 em Fortaleza; 4.542 em Quixeramobim 16.221 em Senado Pompeu; 28.648 em Cariús e 16.200 no Crato, conforme uma das melhores fontes sobre o assunto, o livro Campos de Concentração no Ceará – Isolamento e Poder na Seca de 1932, de Kênia Rios.
Um sobrevivente da segregação é Antônio Siqueira da Silva, de 90 anos, que tinha 18 anos quando foi “jogado” com a família – pai, mãe e mais 12 irmãos – no “curral dos flagelados” do Crato. A família havia mudado do município de Quebrangulo, terra do escritor Graciliano Ramos, para Juazeiro do Norte, cidade hoje emendada ao Crato, em 1930. “A gente veio por causa dos milagres do meu padim Ciço. Só se falava nas obras do “meu padim” por esse mundão todo afora. Ai meu pai pegou a penca de menino, botou em cima dos burros, e chegamos aqui em Juazeiro, pois lá nas Alagoas não tinha mais como viver que preste”, diz Silva, em depoimento para o projeto Nova Geografia da Fome, do Centro Cultural Banco do Nordeste. “Chegando aqui o meu padim nos botou lá no sítio do beato Zé Lourenço, onde tinha muita fartura. O mundo todo sem nada para comer e o beato lá dando de comer a todo mundo, até irrigação já tinha.”
Ruínas de casarões que na seca de 1932 foi transformado em campo de concentração de flagelados para que não invadissem Fortaleza, muitos morreram de fome e com cólera.
Seguidor do padre Cícero, Lourenço (1872 – 1946), nascido na Paraíba, chegou a abrigar cerca de mil pessoas no começo dos anos de 1930. Conhecida como o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, a comunidade foi destruída e bombardeada – a primeira vez que as Forças Armadas usaram aviões para um massacre no Brasil – em 1937, por ordem do ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra, durante o governo de Getúlio Vargas. O poder central, insuflado pelas autoridades cearenses, temia que o beato pudesse transformar o seu vilarejo em mais um Canudos, episódio que ainda assombrava os militares. No massacre, teriam morrido cerca de 700 pessoas. Lourenço escapou, fugindo pela Chapada do Araripe. Doente, morreria nove anos depois, em Exu (PE), município nas cercanias do Crato.
“O sítio do beato foi ficando cheio de gente demais, ai meu pai achou melhor a gente escapar da fome lá no “curral dos flagelados”, pois o governo prometia muita esmola por lá”, diz o sobrevivente do campo de concentração Antônio da Silva. “Mas quem disse que as esmolas chegavam? Lá perdi foi seis irmãos, de fome braba. Eu mesmo só escapei porque fugi com o resto, de madrugada, ainda lembro como se fosse hoje. Era uma catinga tão feroz, meu filho, que nem dava pra dormir direito. E os urubus em cima, querendo arrancar as tripas dos falecidos.”
Casarões de Senador Pompeu