Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



domingo, 9 de setembro de 2012

Greve dos portuários - A Construção da trama


Os momentos que antecederam à greve

Para compreendermos a greve dos catraieiros, ocorrida no Porto de Fortaleza, faz-se necessário analisar o cenário político. Precisamos perceber os lances da trama que contou com a participação, não somente dos trabalhadores, mas também dos contratadores, comerciantes e membros do grupo político oposicionista a Nogueira Accioly


Durante o quatriênio de 1900 a 1904, o Governo do 
Ceará estava nas mãos de Pedro Augusto Borges, aliado de Nogueira Accioly que administrou o Estado de maneira a reforçar o poderio da Oligarquia Acciolina. Mas, devido a problemas administrativos, devido aos avanços dos grupos opositores, a greve dos trabalhadores catraieiros e a aliança firmada entre estes, através dos serviços dos advogados aos trabalhadores sorteados e a visibilidade da greve dos catraieiros, através dos jornais tornaram a administração de Pedro Borges conturbada.
Além desses personagens, ressaltaremos a importância da Lei Federal de Alistamento, visto que, à maneira pela qual foi colocada em prática na cidade, serviu como ponto fundamental para a eclosão da greve. O “cenário” foi ganhando forma com o sorteio realizado no dia 26 de dezembro de 1903, em Fortaleza, e a consequente insatisfação dos trabalhadores catraieiros, acrescentada ao apoio dos patrões e políticos que deram a coloração do desenho, quadro este, posteriormente pintado com o sangue dos próprios trabalhadores, os quais estavam presentes à manifestação reivindicatória da manhã de domingo, no galpão do Porto.
Dessa maneira, podemos destacar a função da experiência nesses processos de construção, manutenção ou, até mesmo, de transformação dos costumes, através da vivência dos trabalhadores, nesse “quadro” constantemente modificado e pintado com diferentes cores, a partir das ações que constituem o seu dia-a-dia.

Durante o ano de 1903 foram assinados pelo Presidente da República do Brasil, Rodrigues Alves, os Decretos nº 4901 e nº 4983, referentes ao processo de sorteio dos matriculados para a Armada da Marinha, com o objetivo de preencher os espaços vagos no contingente.
O Decreto de nº 4901 expunha as instruções e a regulamentação para que os Sorteados, com idade de 16 a 30 anos, exceto maquinistas e pilotos, fossem inscritas por ordem alfabética em um livro especial, denominado Livro de Sorteio.  
O referido Decreto estabelecia as regras pela qual o sorteio seria realizado, tais como: os papéis com os nomes dos matriculados deveriam ter o mesmo tamanho e cor; o sorteio contaria com a participação de uma comissão composta pelo Capitão do Porto, o Presidente da Comissão, e dois oficiais da Marinha; após o Sorteio, o Capitão dos Portos lançaria edital para convocar os sorteados, que deveriam ter três anos na ativa e/ou dois na reserva do serviço militar.
Este Decreto reforçava a Lei de Alistamento Militar de 1875 que, no Artigo 87, § 4º expunha os critérios de alistamento, como: a prioridade do sorteio para marinheiros e aprendizes marinheiros e para o pessoal da Marinha Mercante. Os trabalhadores do Porto, como pescadores, estivadores e catraieiros somente seriam alistados em último caso.


Antigo Porto de Fortaleza - Praia de Iracema

A Lei de Recrutamento Militar de 1874, que determinava o recrutamento forçado para o serviço militar, foi modificada em 1875, quando foi criado o Sistema de Sorteio Universal

O alistamento causou repulsa a qualquer tipo de recrutamento que vigorou durante esse período.  Essas leis foram promulgadas num período em que a sociedade nordestina organizava constantes manifestações contestatórias às condições de pobreza dos trabalhadores das camadas subalternas da população.
Hamilton Monteiro afirma que o aumento abusivo da cobrança de impostos, a nova 
Lei de Recrutamento, mais severa, e o sistema métrico decimal, geraram diversas 
manifestações nas províncias do Nordeste, como a denominada “Quebra-Quilos”. (MONTEIRO, Hamilton de Matos.  Nordeste insurgente (1851-1890). 2º ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.  
pp. 51-52.)

Além da crescente crise econômica agravada pela seca de 1877-79, os trabalhadores foram influenciados pela ideia de que teriam a liberdade cerceada com a Lei de Recrutamento, nº 2.556, de 26 de setembro de 1874, pois seriam convocados a contragosto.
Os boatos foram difundidos pelos grandes fazendeiros que não viam com bons olhos a lei, pois esta ameaçava diretamente a oferta da mão-de-obra e colocava em risco seus lucros, o que gerou os episódios de “rasgar listas”, ocasião em que as listas dos sorteados para o serviço Militar eram rasgadas pelas pessoas insatisfeitas com o processo de sorteio.  
Ainda no final do século XIX, várias manifestações ocorreram no Brasil durante os primeiros anos da República, como a greve ocorrida em 1895 no Rio de Janeiro, analisada por Maria Cecília Velasco, a qual informa que o Coronel Francisco Alves Pessoa Leal tinha a função de organizar a Sociedade União dos Trabalhadores da Estiva, com o objetivo principal de reivindicar melhores salários e desvencilhar as dificuldades do trabalho. Esse recuo no tempo se faz pertinente, visto que a mobilização dos estivadores e trabalhadores do Porto, desde 1895, já passava por um processo de articulação do movimento dos operários portuários. E, mesmo com a derrota do movimento liderado pelo Coronel Leal, foi lançada a semente do movimento desses trabalhadores no Brasil.

Como, em outubro de 1897, os trabalhadores do Porto de Santos aderiram à Greve que contava com a participação de várias categorias, nas Docas, os trabalhadores carregadores de café reivindicaram melhores condições salariais, chegando a 15 dias de agitação.

A resistência dos catraieiros ao alistamento arbitrário para a Armada da Marinha pode ter tido ligação com a cultura nordestina de repulsa ao recrutamento militar de 1874. Daí a pertinência de recuo no tempo para tentarmos compreender o porquê dos catraieiros terem reagido à ideia do alistamento e sorteio, posto que, assim como a determinação do recrutamento, o alistamento e sorteio foram vistos como meios utilizados pelo Governo Accioly para retirar dos homens pobres a possibilidade de escolha do tipo de trabalho que 
realizavam. 


Antigo porto de Fortaleza na Praia de Iracema - Arquivo Nirez


O Decreto nº 4983, de 30 de setembro de 1903, estabeleceu o contingente de pessoal a ser listado para cada Estado, tendo o Ceará recrutado 50, dentre os 750 matriculados. Seguindo as determinações do Governo Federal, o chefe da Capitania do Porto de Fortaleza, Capitão Lopes Silveira da Cruz, convocou, para o dia 27 de dezembro desse mesmo ano, a realização do sorteio. Nos dias se que seguiram ao sorteio, o jornal O Unitário anunciou que: “As commissões da Sociedade União dos Foguistas, Centro Geral dos Folguistas as Sociedades dos Arraes e Patrões e Club dos Officiaes da Marinha Mercante Brazileira, encarregadas de elaborar o protesto contra o sorteio para a Armada”, convocou uma reunião para tratar sobre a questão do sorteio. Dessa feita, os artigos do jornal O Unitário, a partir de 26 de dezembro de 1903, passaram a mobilizar forças para questionar o processo de alistamento e sorteio. 
Assim, o processo de Sorteio colocado em prática no Porto de Fortaleza, contou com o alistamento dos trabalhadores do mar e dos catraieiros, contrariando dessa maneira, a Lei Federal anteriormente citada. A partir da aplicação desses Decretos e da Lei temos como pano de fundo, a repressão imposta aos trabalhadores. 
Em 1903, os trabalhadores de alguns portos, como o do Rio de Janeiro e de Santos, já possuíam uma organização tal, que ansiavam quebrar as amarras que os prendia ao controle dos empreiteiros ou contratadores, para se relacionarem diretamente com o mercado. Dessa feita, deve-se ressaltar que a mão-de-obra nos portos do Brasil era avulsa. Muito embora dela fizessem parte alguns trabalhadores fixos que, não possuíssem relações empregatícias com o Porto, estavam ligados aos contratadores e às empresas de navegação.

No mês de agosto de 1903, ocorreu, no Porto do Rio de Janeiro, um movimento que mobilizou os trabalhadores ligados à Paredeque não os deixou subir nas lanchas para realizar o desembarque de café dos navios.
A partir desse período, o movimento do Porto do Rio de Janeiro e de diversas partes do Brasil alcançou maior notoriedade e, gradativamente, ganhou espaço no teatro das disputas 
dos trabalhadores da época. 

Em Fortaleza, o jornal O Unitário divulgou telegramas, nos quais constavam notícias sobre as mobilizações que estavam ocorrendo em diversas partes do Brasil e de forma mais veemente no Rio de Janeiro, de maneira a reforçar a “causa justa” dos trabalhadores do Porto de Fortaleza, segundo a seguinte nota: 

- Em conseqüência da execução do sorteio para o serviço da armada no dia 30, o pessoal da Marinha Mercante declarou-se em greve, sendo suspenso o trafego dos barcos de Petrópolis e Nitheroy é assim paralysado todo o serviço do mar.
- O vapor S. Salvador não seguirá para o norte, por falta de foguistas.
-Diversos Navios estão despachados, mas sem poderem sahir, em consequência da Parede.
- O vapor S. Salvador parte hoje para o norte, com pessoal tirado d’armada.

Em Fortaleza a mobilização dos catraieiros ocorreu fundamentada no objetivo de fugir ao processo de Alistamento e Sorteio para a Armada da Marinha, foi exatamente no contexto de luta desses trabalhadores, notícia divulgada pelo jornal A nação destacando a vitória do movimento grevista dos trabalhadores do Porto do Rio, que conseguiram negociar melhores condições de pagamento e de trabalho com o Governo e os contratadores.
Os catraieiros perceberam que era um momento propício para realizar suas reivindicações, sendo a obrigatoriedade do alistamento a principal bandeira de luta, visto que os jornais ligados à oposição não abordaram outras exigências, provavelmente, porque tinham relações próximas aos comerciantes e contratadores, responsáveis pela mão-de-obra avulsa do Porto.

Continua...

*Local do Porto onde os trabalhadores se reuniam para a contratação do serviço de frete pelos contratadores.




“Todo cais é uma saudade de pedra”: Repressão e morte dos trabalhadores catraieiros
(1903-1904) - Nágila Maia de Morais

Olhares sobre a praia através da literatura


"Defronte da avenida o mar, na sua aparente imobilidade, tinha reflexos opalinos que deslumbravam, crivado de cintilações minúsculas, largo, imenso, desdobrando-se por ali fora a perder de vista, e para o sul, muito ao longe, a luz branca do farol tinha lampejos intermitentes, de minuto a minuto. No porto a mastreação dos navios destacava nitidamente, inclinando-se num movimento incessante para um e outro, com oscilações 
de um pêndulo invertido."

Adolfo Caminha

Alvarenga e catraia (embarcação menor). Arquivo H. Espínola

Durante o século XVII, a praia era frequentada pelos grupos da elite econômica que desejavam fugir da melancolia e da solidão. Então, a praia passou a ser o local de conversas ou de retiros e meditações e da manutenção ou da busca pela saúde. Nesse sentido, o mar ganha feições terapêuticas e o banho de mar passou a exercer importante papel nos tratamento de enfermidades.

A praia é o lugar que ganha sentido de espaço a partir dos seus frequentadores como: banhistas, turistas, curistas e trabalhadores. Dessa maneira, para compreendermos a praia como um espaço de sociabilidade, podemos nos remeter também aos passeios de Maria das Dores na direção da Praia do Mucuripe, uma das personagens principais do livro 'A afilhada'. Assim, Manoel de Oliveira Paiva aponta suas impressões sobre a praia e seus moradores:  

"...Subiam à Maria das Dores desejos de largar-se por ali afora, curiosamente, como se por trás de cada morro se preparassem novas paisagens, como se novas praias beirassem outros mares e regiões de outra natureza. Arrancharia nas povoações plantadas do coqueiro, nos arraiais de pescadores, nas palhoças metidas na areia como no gelo a cova dos esquimós; espraiaria-se-ia como aquelas ondas de mar, de vento, de céu, de poeira nevada.
A terra parecia findar-se na duna enorme de ponta Mucuripe, de onde descia uma alvura vagamente corada pelos tons das nuvens.
Sob o fundo dos coqueiros da povoação, viam-se branquejarem as velas das jangadas empoleiradas no seco e saídas da pesca: um acampamento de alvas barracas pontudas no poeiramento de crepúsculo. A praia vinha acompanhada, longe de uma linha escura de matos e de sítios, aqui fugindo para trás de um morro de pó, ali aparecendo como os cabelos de uma calva incompleta. E uma duna, de cimácio quase reto, encostando no escuro anil do sul, era como o dorso de um oceano de leite. Da areia porejava uma 
frescura conformativa. Porém, as educandas chegaram até a povoação. A irmã disse que já estavam muito afastadas do Meireles, e que era preciso voltar.  Descansaram num dos botes, jangadinhas a remo para um só tripulante. Maria das Dores, com a irmã, sentaram-se no banco do remeiro. Veio-lhe de súbito um desejo de ir-se naquela jangadinha pelo mar adentro, e puxou a sua ex-preceptora a conversar sobre viagens."

Vista de 1950 - Dunas do Mucuripe (hoje é o Serviluz) e a orla do Meireles sem prédios. IBGE

Para Maria das Dores o passeio pela praia proporcionou-lhe momentos de contemplação e prazer, chegando a enxergá-lo como espaço de liberdade, pois poderia conhecer outros lugares através da viagem pelo mar. O espaço da praia para Das Dores era marcado pela beleza da paisagem natural e as intervenções humanas. Essa era uma visão do século XIX que compreendia a praia como espaço que favorecia o bem-estar das pessoas. Após o passeio, Maria Das Dores passou a observar a praia e o mar com olhos mais sensíveis: “Gostava de avistar os caminhantes, lá por longe, pela beira da praia, meio ocultos pela ribanceira do areal, e fitava agudamente o ponto branco das jangadas na risca do mar”.

A praia, com o decorrer dos séculos, passou a ser utilizada para a manutenção da saúde, fundamentada pelo discurso médico vigente, o que provocou um afluxo de enfermos que buscavam a cura de doenças, em sua grande maioria de membros das classes dominantes, tomados pela tristeza, melancolia e, passaram a ter nos contatos com as ondas, uma maneira de tratamento médico.

No  livro Mississipi, Gustavo Barroso descreve que “os bandos que buscavam as praias movimentavam-se a ida, mal caía à noite, e regressavam para a ceia o mais tardar às oito horas”. Enquanto alguns iam à praia ficavam as senhoras a preparar o jantar, pois diziam que o banho de mar abria o apetite, e também ajudava na cura de doenças como o beribéri, pois tinham a idéia da função terapêutica do mar.
Os médicos e higienistas do século XVI já pensavam na importância do contato com a água do mar e a contribuição à saúde das pessoas através de diferentes ambientes, não somente nas praias, mas também nas montanhas, para fugir das transformações da “vida moderna” que se avizinhava. Para os higienistas, a praia representava limpeza e a diminuição da proliferação das epidemias.
Além da utilização para fins terapêuticos, o mar era um espaço de sociabilidade. Afinal, as pessoas passaram a ter o hábito de se reunirem nas “noites de lua” para ir à praia, pois esse horário era recomendado pelos médicos, principalmente aos indivíduos escravos do conforto, que não sabiam andar senão sobre tapetes; em outras palavras, as pessoas “presas ao luxo”:

Arquivo H. Espínola. Antigo trapiche Ellery.

"As meninas, moças e senhoras, acompanhadas de mucamas e moleques, guardadas pelos homens da casa, de cabelos caídos aos ombros, saia e blusas, arrastando chinelas, desciam pelas ladeiras do Gasômetro, da rua de Baixo, do Boris e da Conceição para as praias da alfândega e do Pocinho. 
Na primeira sobre o costão arenoso, alinhava-se uma dezena de barraquinhas de madeira, construídas por gente de recursos, nas quais se operava a mudança de roupas. Quem não possuía um desses refúgios, despia-se e vestia-se na própria praia, por trás duma empanada de lençóis estendida pelas criadas. A ocasião era propicia para certos namoros breves recados dos coiós, mas com os maiores cuidados, porque pais e irmãos vigiavam ciosamente o mulherio. Os costumes da época obrigavam os homens a se banharem separados das mulheres, que usavam sungas de baeta grossa geralmente vermelha, as mangas chegando aos punhos, as calças descendo até os tornozelos e a gola afogando o pescoço. Não se via, afora a cabeça, as mãos e os pés, um tico de carne."

Segundo Gustavo Barroso, os banhistas precisavam pegar o último bonde de nove horas, descrevendo a maneira que as mulheres saíam do banho e eram acompanhadas por meninotes que carregavam as roupas molhadas que pingavam pelos passeios. Enquanto ocorriam essas movimentações na praia “a lua boiava alta, muito redonda, no céu limpíssimo”.

João Mississipi, personagem principal do romance, guardava na sua memória as paisagens de Fortaleza, proporcionando-nos um passeio pela cidade e ressalta a pobreza marcante da sua cidade natal. Assim Barroso descreveu suas lembranças:

"...dava-lhe o pensamento ganas de voltar rapidamente ao Ceará e rever aquilo. 
Mas logo encolhia os ombros magros ao sentir que dessa paisagem, tão viva na memória, as figuras humanas - mãe e os irmãos - tinham desaparecido para sempre e os aspectos materiais já não eram os mesmos."

Para João Mississipi, as paisagens apesar de terem sido modificadas, permaneceram imutáveis e vivas na sua memória. Mesmo depois de cego, afirmava conhecer toda a cidade de Fortaleza e guardava-a na memória, ressaltando que “agora” precisava conhecê-la através do olfato, devido à cegueira.
Na descrição de Barroso, a partir do Porto ou da “terra firme”, essa era a visão que se tinha do mar:

"Além da alfândega nova, montado sobre estacas, ficava o trapiche da Guardamoria. Nas grandes marés de agosto, as ondas venciam o costão arenoso e se espraiavam debaixo daquela comprida construção de madeira pintada de azul. Corria paralela, vencendo um maceió do poço da Draga, ultima vestígio do projetado porto, uma grande ponte de ferro que unia a Alfândega ao quebra-mar atolado no areal."

A partir desta descrição da região portuária, podemos perceber a visão que os trabalhadores catraieiros tinham do mar através das suas ações cotidianas do trabalho. 

No romance 'A Normalista',  percebe-se a presença marcante do mar na dinâmica da cidade, quando Adolfo Caminha descreve o vai-e-vem de pessoas no Porto e na praia:

"O tempo estava magnífico. Ventava forte e o mar em ressaca atirava sobre o quebra-mar uma toalha de espuma que se desmanchava em poeira tenuíssima irisada pelo sol. A cada golpe de mar havia uma algazarra na praia coalhada de gente. Escaleres navegavam para terra puxados a remo, destacando a bandeira do escaler da Capitania do Porto."  

Foto do Poço da Draga em 1932

Visualizamos a praia como sendo um espaço marcado pelo movimento dos trabalhadores, passageiros e transeuntes, que admiravam o movimento das águas. Para esses trabalhadores o mar podia ser visto como local fundamental para a retirada do sustento da sua família e local de dura rotina de trabalho. Ou seja, ao mesmo tempo em que era fonte de vida, era também de cansaço. Daí a pertinência de afirmarmos que “nada pior que o mar para cansar um homem, por mais forte que seja”.
E o catraieiro, ao transportar carga e pessoas sobre a água, tinha que possuir além da força física, habilidade para esse trabalho, além de depender das condições da embarcação que manobrava para realizar de maneira satisfatória sua função. 
Porém, os fatores abordados anteriormente estavam à mercê do “humor” da natureza, como no caso do barco “São Raphael” que precisou de um “comcerto urgente, ou seja rebaixar as bordas, pois altas como são, não se presta para o serviço de transporte de sal, porque no balanço, bate contra  navios e arrebetam-se como de facto se acham...” (MOREIRA, Trajano. Telegrama Aracaty - Fortaleza, 17 de novembro de 1903. Documentação da Casa Comercial Boris Frères.)

Esses trabalhadores estão diante de mais uma relação de tensão, posto que o mar se apresentava de maneira dual através dos aspectos favoráveis e desfavoráveis na lida diária. O mar, local de onde retiravam o sustento da família, era também marcado pelas batalhas cotidianas para dominar a embarcação e realizar o transporte das mercadorias sem provocar prejuízos ou até mesmo acidentes no trabalho. 
Com as lutas, diante do movimento das marés, o catraieiro, na sua atividade diária, precisava saber lidar com as adversidades causadas pela força dos ventos, elemento fundamental para o funcionamento da pequena embarcação, muito susceptível às ventanias. Como podemos perceber na descrição do serviço de carregamento do escaler “São Raphael” para bordo do Vapor Grão-Pará que foi prejudicado devido às dificuldades impostas pela força dos ventos.

"Na primeira viagem que dei, foi-me precizo fundar a noite para entrar no outro dia, devido ao mar e forte ventania sucedendo porem partirem-se as 2 amarras, e correndo porem grande risco de naufrágio fora da barra, consegui salvar o “S. Raphael”. (MOREIRA, Trajano. Telegrama Aracaty - Fortaleza, 17 de novembro de 1903. Documentação da Casa Comercial Boris Frères.)

Serviço de carga e descarga dos navios, através de alvarengas, 
escaleres e catraia na década de 1930. Arquivo H Espínola.


Apesar das nossas limitações para identificar a visão dos trabalhadores catraieiros sobre o mar de Fortaleza, partimos da idéia de existirem adversidades impostas pela natureza e que estas fizeram parte das experiências vivenciadas pelos catraieiros no Porto, de modo que foram fundamentais para a elaboração de uma percepção sobre a importância do mar nas suas vidas.



“Todo cais é uma saudade de pedra”: Repressão e morte dos trabalhadores catraieiros
(1903-1904) - Nágila Maia de Morais

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A Cearense



No dia 1º de janeiro de 1923 foi registrada a firma Aprígio Coelho de Araújo, com o estabelecimento "A Cearense", na esquina da Rua Floriano Peixoto nº 219/223, com Rua Pedro Borges, olhando para a Praça do Ferreira. Em 1930 foi reinaugurada após reforma e em 1939 mudou-se para a Rua Barão do Rio Branco nºs 1068/1074.

Em 08 de dezembro de 1939, a loja A Cearense, inaugura seu novo prédio na Rua Barão do Rio Branco nºs 1080/84, em frente ao Cine Majestic, obra do arquiteto Sylvio Jaguaribe Ekman, no estilo Art-Déco, local antes ocupado pelo Teatro Taliense ou Concórdia, seguido do Colégio Anacleto.
Depois o prédio da A Cearense, foi ocupado pelas Lojas Singer.
A Cearense tinha um slogan: "A casa que cresce, diminuindo os preços".

Diz a manchete: Prédio próprio em construção a inaugurar-se em 1939. Acervo Lucas Jr

A fachada da A Cearense na Barão do Rio BrancoFoto da Aba Film
Arquivo Nirez

Prédio que antes era ocupado pela A Cearense, no dia da inauguração da Singer Sewing Machine Company (01/12/1950), na Barão do Rio Branco. Foto do livro Cronologia Ilustrada de Fortaleza de Miguel Ângelo de Azevedo

A Cearense era uma das principais casas¹ de tecidos de Fortaleza, na década de 40. Localizava-se  no meio do chamado 'Quarteirão Sucesso', na rua Barão do Rio Branco.
Aprígio Coelho de Araújo, homem de larga visão e de muito bom gosto, mandou construir sua loja inspirado nas grandes “maisons” parisienses: gigantesco salão, bastante requintado, com ambientes de espera e nichos iluminados para exposições de peças finas. Ao fundo, uma elegante escada em forma de leque se bifurcava e dava acesso aos salões dos dois andares superiores que tinham imensas rodas vazadas como visores emoldurados por  belos gradis de ferro. De linhas ‘art-déco’, como era comum às lojas chiques daquele tempo, sua frente era rigorosamente simétrica, com duas vastas  vitrinas laterais  e muitos manequins artisticamente vestidos.²


Acervo Lucas Júnior

Acervo Lucas Júnior

¹ A expressão ‘casa’, certamente, seria de influência francesa ‘maison’.

² Nos idos de 40, as lojas de tecidos ou casas de fazendas, como eram mais conhecidas, tinham esmero em suas vitrinas, caprichavam nos “vestidos” de suas bonecas-manequins que eram montados por verdadeiros mestres na arte de modelas as roupas, usando apenas o tecido e alguns alfinetes, sem ser necessário cortar pano nem utilizar linha ou agulha.



Fontes: Royal Briar de Marciano Lopes (2ª Edição) e 
Cronologia Ilustrada de Fortaleza de Miguel Ângelo de Azevedo



quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Severiano Ribeiro e a cidade: Estátua, ingressos caros e público insatisfeito II


Com relação à questão técnica, ou mais precisamente da deficiência técnica, desde os primórdios do cinema tem sido alvo de discussões e reclamações, não sendo este tipo de crítica uma exclusividade da trajetória do cinema em Fortaleza

O cinema nas primeiras décadas do século XX chegou a ser considerado maléfico, sendo alvo de discussões médicas, devido aos efeitos que a trepidação poderia ocasionar à saúde ocular:

"O fenômeno da trepidação foi notado em outros lugares. Os médicos russos, segundo Yuri Tsivian, declararam guerra contra a “cegueira do cinema”, supostamente provocada nos espectadores pelos problemas com a fixação da imagem, deixando os exibidores em pânico. A medicina brasileira também se debruçou sobre os efeitos considerados daninhos das projeções, e os médicos procuraram malefícios durante todo o período mudo, fosse pela exposição dos olhos às imagens por demais iluminadas, fosse pela sala de exibição funcionando demasiado escura. A Gazeta Clínica, 1909, comentava que o cinema não era um causador de lesões oculares, mas provocador de outros danos, fotofobia, lacrimejamento e, nos casos mais graves, conjuntivite. A “imperfeição dos clichês” (os fotogramas), a posição do espectador em relação à tela e a predisposição individual foram os fatores apontados para as ocorrências clinicas. A trepidação estava no centro do problema: as “imagens fortemente
iluminadas determinam uma fadiga mais rápida. Como causas dessas perturbações apontam-se as cintilações e as trepidações que se vêem nas imagens animadas”. Quando melhoramentos técnicos na perfuração da fita de celulóide e nos obturadores dos projetores foram agregados aos últimos modelos, foi possível dar mais conforto aos espectadores, mas as queixas não se encerraram. A prevenção aos males podia ser feita, recomendando-se a utilização de óculos com lentes azuis, amarelas ou vermelhas."


SOUZA, José Inácio de Melo. Op. Cit., p.127.


Além de ser considerado prejudicial à visão humana, o cinema também era considerado nocivo pelo fato de ser mudo, como ressalta um jornal brasileiro:

"Em 1911, O Independente também alertava para possíveis doenças ocasionadas pelo cinematógrafo. Pelo fato de o cinema ser mudo, o espectador teria que fazer um esforço mental muito grande para traduzir as cenas, o que poderia trazer efeitos nocivos ao cérebro devido a um enorme “esforço de imaginação”.

STEYER, Fábio Augusto. Op.Cit., p.207.


Anúncio do Cinema Pathé

No Rio de Janeiro, por exemplo, a propaganda de algumas salas era reforçada justamente pela qualidade da projeção, uma vez que a questão técnica no cinema, era alvo de tantas discussões no Brasil e no mundo:

CINEMATOGRAPHO “PATHÉ” 
Empreza Arnaldo & C. 
AVENIDA CENTRAL, 147-149 
PROJECÇÕES 
LUMINOSAS 
ANIMADAS, CLARAS E 
ISENTAS DE TREPIDAÇÃO 
DOIS PROGRAMAS DIVERSOS POR SEMANA 

NOVIDADES! SEMPRE NOVIDADES!



SOUZA, José Inácio de Melo. Op. Cit. p. 252.

Sala de espera do Cinema Pathé - Arquivo do Museu da Imagem e do Som

Neste anúncio do Cinema Pathé, do Rio de Janeiro, é destacada a qualidade da projeção, em que se ressalta a ausência de trepidação da imagem como um atrativo a mais para os frequentadores.

Na capital cearense, nos deparamos com um anúncio da venda de um aparelho de projeção
cinematográfica, em que o principal atrativo é a qualidade técnica e a segurança do mesmo:

CINEMA 

Vende-se um próprio para o interior ou collegio, porque funcciona com qualquer
luz electrica ou sem ella, tendo projecção nitida e sem perigo. Tem 50 fitas,
algumas de grande metragem, apparelhos para concertal-as, magneto,
resistencia, etc.
Preço único 1:500$.
Para ver e tratar á rua Senador Pompeu, n.54.

Correio do Ceará, 17 de outubro de 1929, p. 8.

Neste anúncio do final da década de 1920, a qualidade do equipamento é medida pela sua capacidade de nitidez na projeção e pela ausência de perigo. Assim como, no anúncio do Cinematographo Pathé no Rio de Janeiro, aqui também é a inexistência de malefícios à saúde humana que qualifica o equipamento.
Percebemos que a questão técnica perpassa as discussões sobre o cinema no início do século XX, seja no que concerne as projeções defeituosas e aos malefícios que as mesmas poderiam ocasionar à saúde humana, seja pela própria produção técnica das fitas, como afirma Meize Regina:

"A avaliação das fitas recaía frequentemente sobre o aspecto técnico. A comparação com o similar estrangeiro será uma constante e estará desde então presente na avaliação da atividade cinematográfica no país, adquirindo em cada momento um significado diferente. Nesse momento não existe uma discussão em termos estéticos e sim uma abordagem que tem como preocupação discutir a competência técnica para a confecção de uma fita."

No artigo Sodoma e Gomorra, a reclamação sobre a deficiência técnica dos aparelhos de projeção foi reforçada pela crítica ao ato de fumar, o que se repetia constantemente nas salas de cinema da capital cearense.

O articulista ressalta de forma irônica que na exibição do filme Sodoma e Gomorra 
“... excessos de toda a ordem ali appareceram em tintas vivas e fortes...” O interessante é que o filme era em preto e branco, mas a expressão “ tintas vivas e fortes” é utilizada para relacionar os excessos do que era exibido na tela com o que acontecia na sala, antes e durante a sessão cinematográfica.

Apenas no ano de 1934 é que veio a ser lançada a primeira película colorida, com o filme norte-americano La Cucaracha, por meio do sistema technicolor. Até então, o que vigorava era a predominância de filmes em preto e branco. 


No entanto, apesar da supremacia das películas em preto e branco, havia por parte da firma francesa Pathé Fréres, a prática de colorizar quadro a quadro algumas de suas fitas, isso antes da década de 1920. Neste decênio, alguns filmes norte-americanos sofreram o processo de colorização, mas apenas de alguns trechos da fita. Ou seja, o filme era como um todo em preto e branco, tendo apenas algumas poucas cenas colorizadas. 


Alguns destes filmes colorizados foram exibidos na capital cearense. A predominância dos filmes em preto e branco é demostrada pelos raros filmes colorizados. A seguir, listamos alguns filmes parcialmente colorizados, por processos pioneiros e experimentais, com o seu respectivo ano de exibição em Fortaleza


No Brasil, o processo de colorização de alguns filmes também era utilizado no início do século XX. Apesar dos filmes em preto e branco prevalecerem, a cor não ficou, por completa, ausente das fitas nacionais: 

"Nesses primórdios, sua utilização ocorre através da coloração artificial, parcial ou total do negativo, e, mais frequentemente, das cópias. Existem dois procedimentos básicos: pintar livremente a mão detalhe por detalhe, fotograma por fotograma, e submeter a película ou a um banho de anilina, conhecido por tintagem, ou a um banho químico, conhecido por viragem, fixando-se, nesses casos, uma única cor por plano, cena ou seqüência, dependendo do material e das escolhas feitas pelo realizador. Por ser uma especialidade da indústria cinematográfica francesa, o colorido a mão tem parcos exemplos no cinema brasileiro. Em função de suas ligações com a PATHÉ, a família Ferrez envia a partir de 1908 cópias de alguns títulos para serem colorizadas na capital francesa, caso de A mala sinistra, que terminava em uma “apoteose colorida”. (...) a tintagem predomina nos primeiros tempos, por exemplo em alguns filmes de Afonso Segreto, e a viragem a partir de meados da década de 10 (...) Na década de 20 a maior parte dos filmes brasileiros incorpora as viragens, incluindo sua codificação simbólica (vermelho para cenas de paixão, verde para cenas de idílio amoroso, amarelo para cenas de tristeza, em enorme variedade cromática e de significados), distinguindo-se os resultados alcançados pelos laboratórios da BENEDETTI FILM (Brasa dormida, barro humano) e da INDEPENDÊNCIA OMNIA FILM (Vício e beleza, Fogo de palha)."

Apesar de contundentes críticas, como a do artigo Sodoma e Gomorra, Luiz Severiano Ribeiro terminava a década de 20 expandindo-se comercialmente, atuando na exibição cinematográfica com salas do AcreRecife. No Rio de Janeiro, instala várias salas de cinema, onde destacamos o “Cine São Luiz”, inaugurado em 22 de fevereiro de 1937, no Largo do Machado.  
Na década de 30, a atividade de exibição cinematográfica será controlada por dois empresários: Serrador e Severiano Ribeiro. A força desses exibidores reside, fundamentalmente, nas boas relações comerciais que mantêm com as empresas distribuidoras norte – americanas. Outro detalhe interessante está no fato de controlarem os principais territórios cinematográficos do país: Rio de Janeiro e São Paulo.

Cine Diogo - Anos 40 - Arquivo O Povo

Em Fortaleza, nos anos 40, inaugura o “Cine Diogo” e, nos anos 50, o “Cine São Luiz”. Mesmo não sendo nosso objetivo adentrar nas décadas seguintes na análise da atuação de Severiano Ribeiro, pois nos concentramos nos anos de 1920, é significativo mencionarmos que, após este decênio, ele se consolida como um dos maiores exibidores cinematográficos do Brasil.*

A Praça do Ferreira com o belíssimo Cine São Luiz - Anos 70

*Luiz Severiano Ribeiro transfere para seu filho o comando das empresas, vindo a falecer no dia 1º  de dezembro de 1974, aos 89 anos de idade, no Rio de Janeiro.



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Fonte: Nas telas da cidade: salas de cinema e vida urbana 
na Fortaleza dos anos de 1920 - Márcio Inácio da Silva

sábado, 1 de setembro de 2012

Eleições: Um causo sério II



O matador e a finada

Bebeto nunca possuiu emprego ou trabalhou. Até o dia do casamento, viveu a expensas do pai. Depois do casório, a mulher, funcionária pública, assumiu a manutenção da casa e da mesada para os divertimentos mundanos do marido. Dinheiro em sua carteira não repousava. Saia mais rápido do que entrava. E o bonachão sempre arranjava jeito de obter reforço de caixa. Pedia empréstimos, nunca saldados, aos conhecidos. De quando em vez, conseguia surrupiar as economias paternais. Era o perfeito cafajeste.

A cada biênio, sorria-lhe o período eleitoral. Visitava os comitês dos partidos e dos candidatos. Ladino, nunca saia de mãos abanando. Além de camisetas, bonés, canetas e outros brindes publicitários dos fichas de todos os tipos, diziam os colegas que conseguia um algo mais incentivador de voto. Uma motivação maior que fortalecia o órgão mais sensível do ser humano, no dizer de um financista ex-ministro, o bolso.

Findas as andanças diárias, confessava aos amigos de cervejadas sua dor de consciência por não poder votar em todos os aspirantes aos cargos legislativos e executivos. Dava-lhe extrema pena não os ver eleitos.

Só não se apiedava dos "mãos-de-vaca", insensíveis, incapazes de propiciar um momento de alegria aos que os procuravam para oferecer apoio. Mesmo que este apoio fosse, exclusivamente, a lábia animadora para a campanha do desejoso em ser uma das futuras "excelências". Bebeto jamais se guiou por provérbios. Talvez não visse um dia da caça e o outro do caçador.

Naquela manhã, buscou um candidato à deputação e, contristado, comunicou-lhe a morte da mãe, solicitando ajuda para a compra da urna mortuária. Atendido, ao sair, foi reconhecido por um cabo eleitoral, que informou da burla ao chefe. Este, furioso, descobriu o endereço da falsa morta, telefonou para a agência funerária de um correligionário, reuniu alguns apoiadores e mandou entregar-lhe, em nome do filho, um enorme caixão de defunto. O fuzuê, de tão grande, contou com ambulância e polícia. Hoje, dona Maroca é conhecida por Finada e Bebeto por Matador.

Postes e votos

Vários historiadores defendem ser cíclica a história e o cotidiano leva ao fortalecimento do princípio. No período antecedente às antepenúltimas eleições municipais, a mídia divulgou declarações de políticos afirmando que o presidente da República, por sua popularidade, elegeria quem e o quê desejasse. Até mesmo um poste.

Como não foi aplicada a Teoria de Garrincha, isto é, não houve combinação com a outra parte - os eleitores - muitos deram com os burros n´água. Seus postes continuam postes. Os índices apontados nas pesquisas não foram transferidos, escafederam-se.

Em nossa Capital, anos sessenta e setenta do século passado, ao contrário do desejado na atualidade, foram os postes que elegeram os políticos. Isto mesmo, o ontem contrariou o desejo dos tempos atuais.

Mente brilhante

Um sempre lembrado ex-vereador e ex-diretor do Departamento de Iluminação da Prefeitura de Fortaleza, órgão então responsável pela instalação de energia elétrica, aliou-se a um ex-deputado estadual, não menos famoso, e produziram uma inédita e luminosa ideia elétrico-eleitoreira.

Como, à época, nos subúrbios a maioria das ruas não dispunha de energia elétrica, pouco antes das eleições escolheram várias artérias de bairros periféricos, reuniram os moradores e garantiram que todos teriam o desejado serviço público em seus lares.

Quase às vésperas dos pleitos, caminhões da municipalidade, carregados com os antigos postes de madeira, destinavam-se às ruas dos votantes e deitavam ao chão dois postes em cada quadra. Muitas alegrias e comemorações realizaram-se por conta do futuro benefício. Os postes estavam ali. Eram a garantia, pensava o eleitorado. Os candidatos divulgavam atraso nas obras por conta da burocracia, entretanto, juravam que logo após a eleição todos teriam a desejada luz nas casas e nas ruas. Tudo ficava na promessa e os postes eram recolhidos ao depósito municipal após elegerem e reelegerem a ambos, com votações de áreas sempre diferentes. A lembrança restada da tramóia foi o apelido dado ao deputado, devido à posição dos postes, que eram de madeira, deitados ao chão: "O Homem do Pau Deitado".

Político e corrupto

Há dias, encontrei o professor Abrantes. Calmoso na fala e gestos, praticante e pregador da filosofia aristotélica. Da ética, em especial. O devotamento ao sábio de Estagira e ao pai deste, Nicômaco, médico e preceptor de Alexandre, o Grande, levou-o a dar ao filho o nome de Aristômaco.

Abraçou-me e expressou satisfação pelo reencontro. Quis demonstrar viver felicidade. Porém, era traído pelo semblante de padecedor encafifado. Pressenti. Tempo não durou a engabelação. Desinquieto, o inopino fez-se aparecer. Deu-me conta da aposentadoria e do banzo acometido devido à distância da lousa e do giz. Tentou cura tarefando como escritor. Nem bem surgiram as aparências de sanado o atropelo, outro, mais cismático, embatucou. Descreveu-me o intrigante acontecimento que o fazia desmilinguir-se. No meado do livro que escrevia, "A última esperança da vitória da ética", abordando acontecimentos nacionais, fatos pasmosos sucederam-se.

A criação

Ao abordar os temas política e corrupção, deu vida a um personagem cometedor das inúmeras ilegalidades. Zeca Romeu. Daí, o começo das desinfelicidades. Teclado o nome do indigitado, o computador travou. De todo. Nenhum saberente mexedor consertou. Técnico chamado. Quase uma manhã, problema solucionado.

O escrevinhador prosseguiu. Ao narrar às tramoias inicias de Romeu, retravo total. Inexplicável! - dito do informata. "Alguém teria acessado e, querendo ou não, ´deu pau na máquina´". Ninguém de casa faria isso, asseverou o mestre. Mesmo assim, aquiesceu na colocação de senha protetora do arquivo. Criptografia automática também instalada. Segurança completa.

Nem findou a história das malas de dinheiro do personagem e replicou-se a travagem. Desta feita, com danificação do HD.

Perda completa das centenas de páginas digitadas. Trabalheira extenuante e pesquisas de meio ano para tudo dar em nada.

De momento, nova esperança. Aristômaco lembrou-se de haver salvo o arquivo, em pendriver, quando do derradeiro defeito do CP. Alegrias mil. Ligado o instrumentinho em seu notebook e aberto, lia-se em negrito: "Deletado tudo! Não insista! Zeca Romeu, personagem vingativo!".

Geraldo Duarte


Geraldo Duarte, amigo e colaborador do blog, 
é advogado, administrador e dicionarista

Eleições: Um causo sério


Indubitavelmente, os mais idosos, além de vivificarem cenas de um cotidiano dos velhos tempos, encontrar-se-ão com os muitos personagens que as criaram e interpretaram. Excetuado o relato de Descalços e Banguelos, acontecido em município da Região Sul do Estado, os demais se registraram nesta nossa querida Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Com ou sem as bênçãos da Santa. Viajaremos pelos bairros, onde a caça ao voto, ontem, hoje e amanhã, na maioria das vezes, foi e será obtido nas tocaias dos caçadores eleitoreiros.

Assim é que ciladas fizeram-se por traz de chafarizes, com chinelos e dentaduras, postes sem fios e sem lâmpadas, óculos e quinquilharias dos mais variados tipos e espécies.

Promessas, nem se contam. Houve até quem garantisse aos votantes lugar cativo no Reino de Deus e distribuísse retalhos do manto de Jesus, fragmentos do cajado de Moisés, fio da barba de José e pombas descentes do casal embarcado na Arca de Noé.Por final, no dizer do nonagenário causoeiro e meu xará, Geraldo Bezerra dos Santos, experiente na arte da política e conhecedor de muitos de seus artistas, o eleitorado ama o "me engana que eu gosto". Agora, meus amigos, abram os olhos e vamos em frente.

O chafariz

Noite última da campanha eleitoral daquele ano. Comício de encerramento da candidatura à reeleição daquela vereadora, no bairro onde obtinha sempre expressiva votação.Mesmo tratando-se de pessoa ética, de elevado preparo político e cultural, enfrentava extremas dificuldades em continuar com mandato na Câmara Municipal.

Alguns de seus apoiadores eleitorais queixavam-se de que ela usava franqueza exagerada. Criticava, insistentemente, as mazelas de administradores públicos pouco comprometidos com os interesses comunitários. Além de outras atitudes desagradantes aos chefes políticos da época. E, segundo eles, o pior de tudo para quem deseja vencer uma eleição: não prometer mundos e fundos ao povão.

Praça apinhada. Pessoas até trepadas em árvores. A grande maioria interessada, tão somente, nos furdunços que esses acontecimentos registram. Poucos, ali, assistiam ao ato por civismo. Aproximava-se do término. Discurso final da candidata. Nenhuma manifestação entusiástica. O clima, em termos de angariação de votos, fazia-se gélido.

Para reverter à apatia popular, o principal cabo eleitoral, disse, incisivo, ao ouvido da oradora: "Ou a senhora promete, agora, um chafariz, maior desejo do povo daqui ou perde a eleição!".

Ante a derrota, atônita e quase em desespero, bradou: "Minhas amigas e meus amigos! Nunca prometi nada, mas sei que vocês têm um desejo enorme por uma coisa! E eu juro que vou satisfazer essa vontade de todos! Se reeleita, garanto, meus amigos, que vou dar o chafariz!".

Foi o mote para a canalhada presente que, em coro e aos gritos, repetia: "Ela vai dar o chafariz! Vai dar o chafariz! Vai dar o chafariz!". Fim do comício e derrota nas urnas.

Cadê o voto?

Anos setenta, século passado. Quadra coberta do SESC na praça São Sebastião. Local de apuração dos votos de eleição municipal. O ínclito doutor Francisco Pasteur, Juiz da 83ª Zona Eleitoral, coordenava os trabalhos. Uma das mesas apuradoras tinha, por presidente, o doutor Túlio Maranhão, procurador do então INPS. Ambos, estimados e saudosos amigos meus. Contratado por uma das agremiações partidárias, eu prestava serviços, como advogado, atendendo a possíveis reclamos de candidatos. Os trabalhos decorriam normais, quando, inesperadamente, um candidato a vereador e o Túlio iniciaram acirrado bate-boca. Doutor Pasteur e eu, naquele momento, conversamos próximo de onde estavam os contendores e, de pronto, fomos verificar o que ocorria.

Transtornado, o aspirante ao Legislativo Municipal solicitava minhas providências e as do Juiz. Afirmava que sua mulher votara na Seção que estava sendo apurada e o voto não havia sido computado. Exigia recontagem.

Intransigente, Túlio asseverava que os mesários já haviam procedido duas recontagens e não existia nenhum voto para Carlos Luz. Não determinaria outra verificação.

A harmonia

Com seu espírito tolerante e conciliador, doutor Pasteur reuniu-nos e, salomonicamente, indagou ao Túlio se permitia - a ele juiz - realizar novo exame. Desarmou os ânimos alterados. Constatou o número correto de votantes e de cédulas de votação. Estas, uma a uma, passarão por suas mãos. E, ao término, nenhum voto para o contestador.

O desfecho

Naquela tranquilidade que Deus lhe deu, olhou para Carlos e disse: "Senhor, seu desejado sufrágio não se encontra nesta urna. Sugiro-lhe verificar, junto a sua esposa, onde ela o colocou.". Soube-se, no dia seguinte, da briga que houvera acontecido entre o casal.

Ao chamá-la de traidora e mentirosa por não haver votado nele, ela teria retrucado, de modo incisivo, da seguinte maneira: não era nenhuma das duas. (Uma pausa) Votara num primo, pois, na véspera do pleito, ele lhe disse já estar eleito. Assim, melhor do que ter um vereador na família era possuir dois.

Um causo à parte: uma estranha rasura

Século passado. Década sessenta. Candidatos a cargos eletivos, mais comumente à vereança, incumbiam-se de auxiliar o eleitorado no que se denominava como sendo qualificação.

Por carência da população e do sistema eleitoral à época, pessoas buscavam, em seus bairros, parlamentares ou candidatos que as encaminhavam aos setores públicos, visando à obtenção de documentos, inclusive o título eleitoral. Era , assim, considerado procedimento legal e ato de cidadania.

Em período desses, Chico Sapateiro, homem calmo no andar, no falar e no trabalhar mostrava-se enlouquecido. Transtornado, irrompeu à casa de seu compadre e vereador. Parecia não enxergar as pessoas que ali estavam. Agitado, pedia com urgência um cartão de apresentação ao delegado de polícia. "A desgraça entrou e tomou conta lá de casa." - declarava repetidamente. Belinha, a irmã que criava como filha desde bebê, recém-qualificada eleitora, aproveitando-se das ausências dele e da mulher, no horário de trabalho, "rasurou" - asseverava.

O desejo em levar o ocorrido à área policial causou estranheza aos presentes. Ser o próprio irmão denunciante do delito e, ainda, desejar a formalização de abertura de processo? Aquilo não fazia o menor sentido.

Na tentativa de acalmar Chico, o compadre assegurou-lhe de que atenderia seu pleito, porém, antes, solicitou-lhe que trouxesse os documentos da moça, a fim de verificar a rasura e melhor avaliar as implicações do cometimento. "Só os dela? E os do Mundico? Não precisa dos papéis dos dois, não?" - indagava confuso o sapateiro.

Daí, tudo começou a esclarecer-se. Com a pergunta sobre quem era Mundico e o quê este tinha a ver com a história, o político e os circunstantes ficaram pasmos com a resposta. "Ora, quem pudera ser? É o cabra que rasurou Belinha!" e, enquanto respondia, seu antebraço direito via-se esticado e a mão, com os dedos, do indicador ao mínimo, dobrados para baixo, balançava em um sobe e desce rápido e frenético, indicando, desse modo, a "ação rasuradora".

Ao invés da delegacia, cartório e igreja. Onde estão Belinha e Mundico? Mundo a fora. Sabe-se lá por onde. Certamente, rasurando, rasurando...


Geraldo Duarte

Continua...
Geraldo Duarte, amigo e colaborador do blog, 
é advogado, administrador e dicionarista






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