Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
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Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



sexta-feira, 3 de novembro de 2017

O Centro e o conflito da Modernização na década de 30 - Parte II


Praça do Palácio (Atual General Tibúrcio) antes do aterro. Álbum Vistas do Ceará 1908

Foto ao lado: Rua São Paulo com a praça à direita.

Em consequência da torrencial chuva desta manhã, veio a desabar parte da muralha de arrimo do Aterro da Praça General Tibúrcio, canto da Rua São Paulo, local onde ultimamente a Prefeitura planejava construir mictórios públicos. Embargada a obra já iniciada, trataram de reconstruir a parede e o fizeram sem a necessária solidez, causa do desmoronamento desta manhã. (CORREIO DO CEARÁ, 20/12/1934. P. 08).

Álbum Vistas do Ceará 1908

Como era e como ficou depois do aterro. 
Foto1: Acervo Carlos Augusto/Foto2: Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

O desabamento do aterro da Praça General Tibúrcio, noticiada pelo Correio do Ceará, como “Serviço mal feito”, nos deixa claro como o processo de remodelação do centro se efetuava com percalços pelo caminho, pois desabamento de aterros, acidentes de trânsito causados pelas obras, acidentes de trabalho nas construções, dentre outros, ocorria com uma assiduidade espantosa que já se tornara uma característica congênita do processo de urbanização da cidade. Fortaleza era na época um “canteiro de obras a céu aberto”. Porém, um canteiro sem uma infraestrutura segura para os operários e transeuntes, como verificado no caso do desabamento do Arco do Triunfo, na Rua Major Facundo, uma das mais importantes do perímetro central. Na época, quase toda a cidade estava eufórica com a visita de Getúlio Vargas, veiculada em todos os jornais da urbe como um grande acontecimento, até mesmo pelos matutinos que criticavam Getúlio, como ditador. Portanto, a cidade deveria estar bonita e “enfeitada”, para transmitir uma “boa imagem” da administração local.

 População aguarda ansiosa a chegada de Getúlio Vargas em frente a Estação Central
Fotos Acervo Assis Lima

Ontem cerca das 23, ½ horas, deu-se um horrível desastre do qual quase que perecem sem vida seis operários, a serviço da Prefeitura Municipal de Fortaleza. Estava em construção, há alguns dias, no trecho da Rua Major Facundo, esquina com a Travessa Senador Alencar, um arco em que seriam colocadas flores naturais, para o fim de ser saudado, com elas, a entrada da nossa cidade, o Sr. Chefe do governo provisório. Naquela hora, a mandado do humanitário Prefeito da Capital, uma turba de trabalhadores foi desobstruir o referido arco, pois, com a notícia da chegada, hoje a tarde, do Sr. Getúlio Vargas, todos os esforços seriam perdidos em concluir a obra em tempo. Quando despregavam as primeiras taboas, veio abaixo toda a armação, resultando da catástrofe saírem cincos operários com sérios ferimentos nos membros, e um contorcionado gravemente. (A RUA, 17/09/1933. P 02).

Rua Major Facundo

Após o acidente, os operários foram levados pela polícia para a Santa Casa de Misericórdia, onde receberam atendimento. Na verdade, era muito importante para Raimundo Girão, como administrador da cidade, apresentar Fortaleza como uma cidade “moderna”, resultado do seu trabalho. Pois, além dessa boa imagem garantir a sua permanência no poder, poderia receber mais incentivos financeiros para efetuar a modernização da Capital, visto que uma boa parte dos recursos era oriunda do Governo Federal. Para tanto, não bastava reformar as ruas, praças, logradouros etc., era necessário “vendê-la” como um arquétipo da modernidade, onde o centro era a sua vitrine principal. Os aspectos obsoletos, arcaicos, anti-modernos da Capital, como as favelas e os areais, deveria ser ocultada da visita de Getúlio.
A dinâmica da cidade foi transfigurada, nos dias 17 a 20 de setembro de 1933, período da estadia de Getúlio Vargas, as obras de calçamento das ruas tiveram que sofrer alterações no “calor da visita”, para resplandecer, cintilar, somente os aspectos positivos da urbanização.

Grande concentração de apoio a Getúlio Vargas na Praça do Ferreira. Acervo Lucas

Agora, porém, com a passagem da comitiva presidencial, o Sr. Prefeito deu nova feição aos trabalhos. Por quê? Ninguém sabe. O certo é que ele mandou que a picareta da prefeitura, desordenadamente, arbitrariamente, desalojasse todas as pedras de algumas travessas, e simultaneamente da Praça do Ferreira, de forma que hoje, ninguém mais pode andar por aqueles sítios. [..] Ontem, por exemplo, o mau serviço culminou. Ninguém sabia onde pisar. Tinha-se a ideia que um terremoto deslocara o empedramento da cidade, fazendo um estrago irremediável. (O NORDESTE 23/09/1933 p 04).

Porém, o que notamos é que a imagem construída pelo O Nordeste divergiu do projeto do Prefeito. O matutino na mesma matéria, ainda ironiza Raimundo Girão, insinuando que ele estava iludido, achando que parecia Getúlio Vargas, quando na verdade ele estava “interrompendo o trânsito, atestando o progresso e também atestando um serviço mal orientado”. O calçamento das ruas foi um dos pontos mais polêmicos no projeto de modernização na época. Primeiro, porque só contemplava o centro e as ruas comercialmente mais importantes. Segundo, porque foi um processo arbitrário, verticalizado onde a sociedade estava apartada das decisões, restando apenas, criticar os resultados. Noutra matéria do O Nordeste, percebemos melhor esses contrastes:

Fortaleza apresenta, em matéria de calçamento, o mais chocante dos contrastes. Enquanto a Praça do Ferreira, e algumas ruas ostentam o luxo da pavimentação a concreto ou a paralelepípedo, outras vias, mesmo centrais, se ressentem de qualquer melhoramento nesse sentido, e em várias, o calçamento existente é desolação. Trechos há, por exemplo, na rua “Dona Isabel”, quase intransitáveis, como há na rua “Major Facundo”, “Dona Bárbara”, etc. É uma tortura andar por ali, de veículo ou a pé. De forma que a capital está dando a impressão dessas moças vaidosas que usam vestido de seda e sapatos de solados rôtos. (IDEM, 16/12/1933. P 03).

Esse trecho é muito elucidativo sobre o processo de remodelação das ruas, e da implantação do calçamento a concreto. O calcamento a paralelepípedo estava sendo substituído pelo concreto, pois facilitava o transporte de carros, de pessoas, e era considerado mais moderno e esteticamente superior. Porém, como observamos essas melhorias só contemplavam o centro da capital, e mais especificamente, as ruas mais importantes. As áreas mais distantes como subúrbios, favelas, ou mesmo um bairro um pouco afastado do centro, não era alvo dessas reformas. A modernização numa cidade capitalista é, em essência, excludente. A produção de mercadorias é priorizada em detrimento das relações humanas, por conseguinte, os locais de saneamento com equipamentos modernos e condições salutares de moradia, também seguem essa ordem, a “hierarquia da mercadoria”. Não obstante, a própria rua e o calçamento, são também mercadorias, que também se depreciam.

Trechos há, em que dentro de pouco tempo, terá desaparecido por completo o cimento, tal é a precariedade do trabalho [...]. O serviço está mal feito em vários pontos, e a prefeitura deve-se lembrar de que o proprietário, que concorre com sua quota para o calçamento, tem o direito de exigir trabalho eficiente, seguro, para que amanhã, sob pretexto de remodelação no pavimento urbano não venha a recontribuir, onerosamente, para tal serviço. Faz-se preciso, destarte, fiscalização mais rigorosa no calçamento a concreto. (IDEM, 16/11/1933 p 03).

Esta citação expressa que a rua, mesmo sendo uma via pública, já era enxergada como mercadoria, da qual os “proprietários- consumidores” que pagaram os seus impostos teriam o direito de “usufruir” de um produto com qualidade e trabalho eficiente. Há uma inversão de valores, e uma apropriação do público pelo privado, pois não é um cidadão que exige um serviço bem feito mediante a cobrança dos seus impostos, mas um “proprietário”, que não quer onerar o seu bem. Outro elemento importante que podemos constatar, é que já se tinha a noção de que algumas obras eram construídas para terem uma vida curta, a pretexto de reconstruí-las e atrair novos investimentos. Ao que tudo indica as reformas na pavimentação de Fortaleza, não escaparam a esta lógica:

Quem se der a curiosidade de transitar pela travessa Senador Alencar, trecho compreendido entre a rua Major Facundo e Barão do Rio Branco, verificará de que maneira pouco recomendável está a prefeitura gastando os dinheiros do povo. Só nesse pequeno trecho encontram-se uma meia dúzia de remendos recentes, defeituando todo o serviço da pavimentação. Isso vem provar, simplesmente que na composição do concreto entra grande parte de areia e uma insignificância de cimento. O mesmo vem acontecendo com os paralelepípedos. Esse mal acabamento demonstra a sociedade que a prefeitura não fiscaliza os serviços que estão sendo executados a custa do povo e que vão ser pagos por esse mesmo povo. [...] Tudo isso ocorre agora em pleno e rigoroso verão. E quando chegar o inverno? Temos necessariamente de encomendar algumas canoas se desejarmos transitar pela Praça do Ferreira e rua Major Facundo. (A RUA, 29/10/1933 p 09).

A modernização numa cidade capitalista é, em essência, excludente.


O “libelo” acima critica a qualidade da pavimentação, destacando que o material utilizado na construção era adulterado, composto mais de areia do que de cimento. E a culpa seria da prefeitura, que não “fiscalizara as obras”. Diferentemente do relatório apresentado pelo Interventor Federal, Roberto Carneiro de Mendonça, que representou uma imagem edulcorada da remodelação de Fortaleza, alguns periódicos mostraram uma visão diametralmente oposta, esboçando que foi um processo constituído de diversas contradições. E as contradições iam desde o péssimo saneamento dos bairros pobres, até precariedade do serviço de saúde, proliferação da miséria nos areais ao redor da cidade, ausência de local para cuidar dos mendigos, propagação de doenças como: varíola, lepra e alastrim, aumento dos números de delitos, aumento exponencial dos acidentes de trânsito e de trabalho, divorciamento socioespacial do centro–periferia, dentre outros antagonismos provenientes do processo de “modernização” de Fortaleza, ou melhor, das reformas materiais realizadas no perímetro central. Deixando os demais logradouros, expostos á sorte.

Continua...


Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza

Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fonte: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará./http://memoria.bn.br/

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

O Centro e o conflito da Modernização na década de 30


Praça de Pelotas, atual Praça Clóvis Beviláqua.
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

No início da década de 30, o  Centro de Fortaleza viveu uma tensão permanente de reformas modernizantes. Apesar do velho e do novo se relacionando, o espaço urbano de Fortaleza estava caótico e desordenado e inúmeras críticas apareciam nos jornais. Podemos observar um exemplo, nessa matéria:

Segundo um documento da edilidade, as carroças não poderão trafegar na pavimentação a concreto. As ruas Major facundo e do Rosário, Praça do Ferreira, Travessa Senador Alencar, enfim, os pontos centrais da cidade estão sendo pavimentados a concreto. Diante desse impasse, o que poderá fazer o pobre carroceiro? Pagou o imposto adiantadamente durante o corrente ano, e não pode exercitar a sua atividade! Pensa que o Sr. Prefeito que a civilização está no caminhão Chevrolet, queimando gasolina da América do norte! Antes do contato da vertigem inhanque, o Ceará atravessava um período de grande prosperidade econômica e financeira. Hoje, entretanto, constatamos o contrário. Enquanto experimentamos o progresso na mecânica, nos ares, em terra, no mar, por outro lado o nosso dinheiro se escoa para o estrangeiro e caímos numa pobreza de job! O movimento de carroças é nosso. É regional. Fica entre nós. Mas o Sr. Prefeito não entende de finanças. Acha que a carroça afeia a nossa linda artéria toda recamada de concreto. E pronto. Com um decreto manda as favas o serviço de carroças pelo centro da capital. Bela visão de administrador! ( A RUA, 05/09/1933/ p 01.)

Rua Major Facundo, a primeira a ser pavimentada a concreto.
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

Outro trecho da rua Major Facundo.
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934


O jornal tece uma crítica ácida ao Prefeito Raimundo Girão, ao imperialismo Estadunidense, e defende o carroceiro com um discurso “anti-moderno” e regionalista. Também critica a noção de “civilização” baseada no caminhão Chevrolet, que segundo o matutino, só piorou as condições econômicas da cidade. Porém, percebemos como havia uma disputa ideológica a respeito da modernização da cidade. A realização da pavimentação a concreto do centro que, nos veículos oficias era apresentado como grande inovação e melhoria para Fortaleza, tem no jornal A Rua o antidiscurso, o reverso da medalha, realçando o “novo” como quebra de costumes e tradições citadinas. Em contrapartida, o carroceiro é concebido como símbolo regional e cristalizador de uma identidade.

A a polêmica continua quando Raimundo Girão resolve colocar uma placa na Faculdade de Direito:

As coisas do Ceará não mudam e nem mudarão. Em matéria de política, então, o negócio aqui é individualista até no modo de falar. O Sr. Governador da cidade entendeu de reformar a pavimentação a concreto da cidade por conta do particular e vem levando tudo de roldão, só pelo gosto de deixar o seu nome ligado a alguma concreta que perdure (per omnia secula seculorum)... “O que, porém, está chamando a atenção do público é a placa colocada na testa da faculdade de Direito, lado em frente ao Palacete Brasil, com o seguinte título: Travessa Morada Nova”. Morada nova é a terra dos Girão. Daí, certamente, a glorificação do nome numa das ruas de Fortaleza. Isso assim, também é demais. (A RUA, 05/09/1933/ p 01.)

Palacete Brasil, Travessa Morada Nova e a Faculdade de Direito (Hoje Museu do Ceará). 
Acervo Assis Lima

O projeto de “urbanização” da cidade atendia aos interesses de governantes e capitalistas, no qual o papel do Estado era muito presente. As ruas eram reformadas e tinham seus nomes alterados de maneira arbitrária seguindo a perspectiva do enaltecimento.
A urbanização de Raimundo Girão, Roberto Carneiro de Mendonça, e inclusive Getúlio Vargas (representantes do Estado), se aproxima muito mais do conceito de urbanismo do que propriamente de uma sociedade urbana. Podemos observar melhor os interesses envolvidos na remodelação do centro, na matéria sobre aTravessa das Trincheiras:

O Sr. Prefeito continua com a picareta em funcionamento. Quando a sua ação destruidora é bem orientada, ainda bem; quando, porém, a mania demolidora, não se exerce em proveito coletivo, é claro que a imprensa precisa clamar.  É o caso da Travessa das Trincheiras. O S.s. é incapaz de justificar com argumentos aceitáveis o considerável dispêndio que vai fazer sem qualquer interesse aconselhável da parte da população. Vão ser gasto neste serviço, 200 ou 300 contos, sem nenhum proveito para a cidade. Pelo lado estético, a estrutura da travessa é uma pilheria, ridícula [...]48 quadra [...] parada pelo beco [...] um alejão. Pelo que toca ao descongestionamento da Praça do Ferreira, o absurdo não é menor, pois esse congestionamento só existe na cabeça dos inovadores apressados. O tal beco vai ser tão útil quanto o da travessa da Boa Vista... que o povo bem sabe a que ele é destinado. Perguntamos: não seria mais proveitoso para a população que essa avultada quantia fosse aplicada em calçamento, na zona afastada do centro ou em qualquer melhoramento que beneficiasse o contribuinte? Qualquer pessoa em bom senso ficaria com nosso ponto de vista. {...}nunca os que são refratários da imprensa, e nesse número o atual Prefeito bate o Record. Há, porém, uma {...}: se o dinheiro fosse do seu bolso, certamente que s.s. o aplicaria mais cuidadosamente. Mas que usa a pólvora alheia pouco se incomoda que o tiro atinja ou não o alvo... Se o programa é gastar, dinheiro haja... (IDEM, 14/09/1933 p. 01.)

Travessa das Trincheiras, atual rua Liberato Barroso.
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

Segundo o periódico, a reforma da Travessa das Trincheiras  seria, não só inviável como totalmente desnecessária para os “cofres públicos”.  Não atenderia as expectativas da população, seria dispendiosa, esteticamente não “aconselhável” e inoperante. Em contrapartida, sugere que o dinheiro gasto nessa reforma fosse aplicado nos bairros mais afastados do centro, pois teria uma maior funcionalidade pública. Todavia, o processo de urbanização de Fortaleza priorizou o centro, sua artéria comercial, mostrando uma tendência das cidades capitalistas em formação inicial. Reforma-se logo o lócus do poder econômico, depois se pensa no resto. Existiam duas Fortaleza, uma com infraestrutura e com conjunto de equipamentos modernos, e outra composta de areais, moradias sem saneamento, onde habitavam as populações mais pobres. Essa realidade se aplicava integralmente na década de 1930, principalmente após a seca de 1932, pois os bairros que eram mais pobres nessa época como Arraial Moura Brasil, Mucuripe, Lagamar, para citar alguns, se confirmarão como os mais pobres no período subsequente, ou seja, nas décadas de 1940 a 1960. A gênese dessa urbanização desigual se materializa ainda na década de 1930.

Arraial Moura Brasil. Acervo Lucas 

O cearense fez de Fortaleza a linda cidade cheia de alegria e de encantamento. Deu-lhe a imponência das ruas largas e simétricas. Deu-lhe agora a pavimentação a concreto. Deu-lhe tudo, enfim, que uma civilizada metrópole pode proporcionar aos seus insaciados turistas. Eis a cidade de Fortaleza. Encantada. Asseiada. Faiscante de reformas materiais e estéticas, o pano de boca do grande teatro da vida cearense... A plateia gosta de aplaudir a representação. Desconhece, entretanto, a tragédia dolorosa que se passa por detrás dos bastidores..(...) A pobreza nos arredores da cidade vive a sua grande tragédia anônima... Os homens públicos nunca penetraram a baiuca do vagabundo. Acostumados ao conforto social, jamais sentiram a angústia dos que peregrinam, noite e dia, pelas ruas da cidade, a procura de uma côdea de pão. A costureira que dá o último ponto da encomenda no atelier, e espera à tardinha de sábado, o pequeno salário, não pode compreender o que seja felicidade. O trabalhador da oficina e do campo, exausto do cansaço e da desilusão, não encontra nenhum conforto no regaço da família porque o governo não lhe pagou a jornada semana. (...) Nas obras do Porto, o governo não paga os vencimentos dos operários. A Inspetoria das Obras contra as Secas não satisfaz ao pagamento dos seus fornecedores. A cidade está cheia de flagelados, a toda hora descem dos sertões ressequidos, caravanas de famintos. Nos centros populosos das localidades sertanejas, agrupam-se milhares de camponeses a procura de pão e de trabalho. (...) A pomposidade, o luxo, a sela, o pompom, o frou-frou da alta sociedade, todo esse requinte de beleza não pode viver sem o auxílio do trabalhador anônimo que habita os subúrbios, envelhece nas fábricas e nas oficinas e morre de tuberculose nos hospitais. A cidade é o pano de boca dos subúrbios e dos campos. Sem o concurso das gentes dos bastidores, a farsa da vida não terá uma boa representação e a plateia chicoteará com apupo o elenco da Companhia. Não se iluda o governo com o julgamento dos moralistas. O povo tem fome. E a fome, diz um ditado, tem cara de hereje... (IBIDEM, 10/08/ 1933 p. 05).

Mucuripe em 1931 

Esta longa citação, escrita por Gastão Justa¹, tinha como objetivo defender o jogo do bicho, pois o governo aprovara uma lei considerando esse jogo ilegal. Por conseguinte, o referido periódico abriu uma campanha nas suas páginas defendendo o jogo do bicho como fonte de renda para a classe trabalhadora. Porém, o que é sintomático nesta matéria é que ela sintetiza as principais contradições por que passava a cidade na época, salientando que existia uma Fortaleza representada para turistas, “asseada, faiscante de reformas matérias e estéticas”, ao mesmo tempo em que os subúrbios estavam repletos de problemas sociais, tais como falta de pagamento aos trabalhadores, excesso de migração para Fortaleza, que continuava no ano de 1933, mesmo com a estratégia do governo dos campos de concentração, além da epidemia de tuberculose que afetava principalmente os pobres da cidade, devido à subnutrição, precária condição de moradia e falta saneamento e carga horária extenuante da classe trabalhadora nas fábricas, que tornavam rotineiros os diversos acidentes de trabalho. Todos esses elementos são componentes do processo de urbanização de Fortaleza na década de 1930. Enquanto havia uma proliferação da miséria, existia, também, um aumento no crescimento de estabelecimentos comercias como bancos, construtoras, maior número de automóveis na cidade, e um crescimento substancial de empresa particulares. E a picareta do governo, para usar uma expressão do jornal, não parava. Se compararmos os serviços de construções de ruas e calçamentos, de 1927 a 1933, notaremos um acréscimo substancial nos anos de 1932 e 1933, ou seja, no período da seca as obras foram intensificadas. Como podemos verificar na tabela abaixo.

Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1934 confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 187 e 188.

Todavia, se cotejarmos o ano de 1931 (“véspera da seca”) com os anos de 1932 e 1933, veremos que o aumento chega a ser bastante considerável em relação a calçamentos novos e reconstruídos. Isso significa dizer que a seca de 1932 foi um elemento importante para a remodelação do espaço urbano de Fortaleza, especialmente, o centro. Por ilação, se houve aumento na construção de ruas e calçamentos nesse período, também houve aumento da verba para realização de tal empreendimento. O Governo Municipal acabou angariando mais investimentos do Governo Federal e as despesas com melhoramentos passaram de 484:117$006, em 1931; para 698:325$087, em 1932; e 558:332$700, no ano de 1933. E a arrecadação total do município de Fortaleza, passou de 1.926$252$439, em 1931; para 2.249$007$416, em 1932; obtendo uma ligeira queda no ano de 1933 para 1.862$703$600²

Interessante ressaltar que houve um aumento de investimentos dos governos (Municipal e Federal) no setor de construção e melhoramentos de ruas, mesmo num momento crítico e tênue que o País estava passando, devido à crise de 1929. Fortaleza passou por um “ajuste espacial”, no qual Raimundo Girão encetou o momento para aplicar reformas no centro da cidade, atraindo recursos, desenvolvendo o setor secundário, e absorvendo a mão de obra dos retirantes, que, além de ser barata, gerava uma acumulação adicional de capital, retirava os flagelados da “ociosidade e do perigo do banditismo social”.

Lançamento do lençol de concreto na rua General Sampaio. 
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

Serviço de pavimentação em plena atividade na rua São Paulo
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

No Ceará os investimentos se processaram em duas frentes distintas: 1) recursos para construção de açudes, poços profundos e estradas de rodagem no interior; 2) recursos para melhoramentos do centro e construção do porto na capital.
E as reformas na capital, continuavam! Porém, a insatisfação de alguns periódicos com a administração municipal também. Como podemos observar em relação à mudança das novas placas e dos números das ruas:

A prefeitura no desejo iconoclasta de tudo reformar desta terra resolveu mudar as placas dos números das casas da cidade. Ao tempo da administração do Sr. Godolfredo Maciel, o assunto mereceu o cuidado do chefe municipal e a colocação do nosso número se processou de forma rápida e prática. Presentemente o serviço não corresponde à necessidade do meio. Em vez de substituir a placa velha pela nova, a edilidade atrapalha o serviço, mandando pintar na parede dos edifícios um número provisório, para o mesmo ser substituído depois pela placa efetiva. O funcionário postal encarregado pela distribuição de cartas e jornais encontra séria dificuldade para normalizar o serviço. Ficando também prejudicado o particular que não recebeu, com regularidade, a sua correspondência. Urge uma reforma contra a reforma. [...] Reformar para melhor, vá lá! Para pior, é melhor deixar a coisa como estava. (IDEM, 17/08/1933. P 03).

A rua da Praia, atual Avenida Pessoa AntaArquivo Nirez
Uma das únicas (se não a única) foto a mostrar uma placa de rua com números. 

Qualquer alteração no cotidiano, na normalidade da rotina diária era criticada pela maioria dos periódicos da época. A mudança dos números das casas foi o proscênio de disputas quase homéricas, pois a efemeridade dos nomes e números, além de dificultar o serviço postal regular, transfigurava a identidade dos lugares. A crítica geralmente vinha de forma comparativa com administrações pretéritas, no caso dessa matéria do jornal A Rua, elogiava a forma como Godofredo Maciel tinha executado a mudança dos números das ruas, de forma “prática e efetiva”. Enquanto isso, as ruas do centro iam sendo reformadas, mas nem sempre da maneira que o governo gostaria.



¹Redator chefe e secretário do jornal A RUA. Boa parte das matérias de crítica ao governo foi escrita por ele. Na grande maioria das vezes com tom ácido e irônico.

²Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1934 confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 187 e 188.

Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza

Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fonte: JUCÀ, Gisafran Nazareno Mota. Verso e reverso do perfil urbano de Fortaleza. São Paulo: Anablume editora. 2 ed., 2003./Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

As melhorias urbanas durante a seca de 1932 - Parte III


Que Fortaleza modificou o seu espaço urbano a partir da seca de 1932, é fato! Agora, como esse processo de modernização e como toda essa modernidade era utilizada através dos discursos das elites para legitimar a vertiginosa urbanização que ocorria na década de 1930? E como as camadas mais pobres viviam essa modernidade?

No relatório do Interventor federal Roberto Carneiro de Mendonça, vemos como o discurso da modernidade estava presente, no que se refere à justificativa da implantação de um relógio na Praça do Ferreira e em relação à própria remodelação da praça:

Sobre a praça no Relatório do Interventor 

A Praça do Ferreira era considerada o coração da cidade, segundo o interventor, a praça era o principal “órgão” da cidade, uma vez que ela é o “centro de convergência das atividades”, atividades essas que poderiam ser culturais, mas principalmente comerciais. Por isso o interventor justifica a implantação de um “relógio oficial”, pois o ritmo de trabalho da cidade estava mudando, e era importante que a população tivesse um controle mais racional de tempo, uma das características da modernidade.

O relógio se tornava fundamental para uma cidade que estava passando por um processo de modernização desde o final do século XIX, mas que tinha uma população hegemonicamente rural e que não era adaptada à disciplina de trabalho capitalista, racional e moderna, que ocorria na cidade, já que o caráter disciplinador das relações de trabalho, que a implantação do relógio objetivava, se tornava ainda mais necessário a partir da seca de 1932, pois o fluxo migratório foi muito intenso, e o governo demonstrava um maior nível de organização racional, no que tange ao controle social dos retirantes. Desta maneira, essa massa de “flagelados” que ocupava a cidade deveria se adaptar a uma disciplina de trabalho moderna, sincronizada e racional, onde não haja “desperdício” de tempo. Aliás, não só os retirantes deveriam se acostumar com esse tipo de vida, como os demais habitantes da cidade.


Todavia, a coluna da hora não pode ser entendida apenas como uma obra para embelezar a cidade. Além da preocupação estética, havia o interesse funcional que o relógio tinha para a Fortaleza “moderna”. A estratégia do governo era “otimizar” o tempo para a produtividade. Isso não significa dizer que assim que o relógio foi erguido, as relações de trabalho mudaram radicalmente. Pois há conflitos entre a temporalidade do relógio e a temporalidade da população, que no caso de Fortaleza, era substancialmente rural.

Fortaleza estava passando por um processo de modernização, que se refletia em vários aspectos: culturais, econômicos, políticos e sociais. Os retirantes eram utilizados para construir e remodelar o espaço urbano da cidade. Em contra partida, eram obrigados a morar em locais que não eram planejados de maneira racional, mas a partir das necessidades imediatas de ter uma moradia. Assim sendo, a modernização como palavra de ordem nos discursos políticos do governo, passava a quilômetros da periferia e dos bairros pobre da cidade.

A cidade era ainda bem pequena, como se percebe através da planta levantada em 1932, época em que conseguia recobrir bem pouco a mais do que as vias planejadas por Hebster em 1875! A partir do início do decênio de 30, desenvolve-se a cidade toda, zoneando-se de acordo com a estrutura preexistente. Os bairros mais modestos vão se espalhando ao longo das ferrovias, junto das quais, principalmente na zona oeste, surgem as indústrias. As pessoas mais abastadas começam a preferir a Aldeota”. (CASTRO, 1977, p 35 e 36).

Planta de 1932

Após a seca de 1932, a cidade aumenta consideravelmente o seu espaço urbano. Mas esse espaço é modificado a partir dos grupos que o habitam, pois bairros mais modestos vão se formando próximos às linhas de trem que estavam surgindo. Isto ocorreu provavelmente devido às estratégias do governo de controlar as levas de retirantes que chegavam à capital pelos trens e lá já se “instalavam” em campos de concentração, ou fora deles, construindo as embrionárias favelas. Também se instalavam próximos às indústrias, pois seriam eles os operários, sem falar que ficariam distantes dos grupos mais abastados que não gostavam de ter “flagelados” como vizinhos.

Construção da Coluna da Hora na Praça do Ferreira. Acervo Ricardo Figueiroa

Neste sentido, as formações dos bairros de Fortaleza estão intrinsecamente ligadas às diferenças sociais dos grupos que o habitavam. Assim, a modernização de Fortaleza é excludente, pois só uma parte da população usufrui da sua urbanização e também é contraditória, pois a maioria da população da cidade é de origem rural, ou seja, “não-moderna”.
É interessante percebermos o choque que havia entre os retirantes e a elite fortalezense que “lutava” para transformar Fortaleza numa cidade moderna com uma população hegemonicamente rural:

Mesmo na época em que se fixam as primeiras grandes levas de imigrantes rurais, trazidas pela seca de 1932, período de grandes transformações sociais e econômicas, quando grupos recém-chegados, sem tradição de vida urbana, se tornam demograficamente majoritários, mesmo nesses dias, jamais se apegaram as características do viver fortalezense, ora traduzidas pela complacência diante da novidade, ora marcadas pela ironia demolidora e amarga aos valores mais consagrados, herança do elevado nível de vida intelectual de fins do século XIX, perfeitamente configurado pela posição antiprovinciana daquele grupo sério da Padaria Espiritual. (IDEM, 1977, p. 44).

Praça na década de 30 - Arquivo Nirez

Através da fala de José Liberal de Castro, é possível observar o choque cultural entre a elite intelectual de Fortaleza e os retirantes. Esses considerados como provincianos, sem tradição urbana, espantados diante da “cidade moderna”, que tinha uma população mais intelectualizada, adaptadas aos “ideais de modernidade” desde o final do século XIX.
Torna-se plausível questionar se Fortaleza era uma cidade moderna na década de 1930, principalmente após a seca de 1932, uma vez que ao mesmo tempo em que ela passava por reformas urbanas, que modernizavam seu espaço físico, era habitada por uma população majoritariamente rural, que tinha costumes, hábitos, considerados pelos grupos dominantes como não modernos.

No discurso do cronista Mozart Soriano Aderaldo¹ numa crônica do livro História Abreviada de Fortaleza, referente a Fortaleza moderna, percebemos sua visão acerca dos retirantes, da modernidade e as contradições que a permeavam:

Se assim procediam as chamadas "elites‟, o que não dizer da "massa‟, dos habitantes de nossos subúrbios? Levas de emigrantes em consequência das secas, constroem "favelas‟ em seu derredor e trazem para a cidade problemas sociais, os mais variados, da prostituição de infelizes mocinhas pobres ao "biscatismo‟ consequente da mão-de-obra não qualificada. Do costume de cuspir no pé das paredes ao alimentar-se nas ruas e jogar nas calçadas as cascas se bananas, manga e laranja ali mesmo consumidas. Dos pés descalços à roupa em trapos e mal lavada. (ADERALDO, 1974, p 60).

Apesar de a crônica ter sido escrita posteriormente à década de 1930, pois o livro não traz a data específica da crônica, é muito importante para analisarmos como o autor representava os retirantes. Segundo ele, são os emigrantes que traziam os problemas sociais para a cidade, como a prostituição, o biscatismo, mão de obra desqualificada, sem falar que seus costumes eram “péssimos”. Jogar cascas de bananas nas calçadas, andar de pés descalços, esfarrapados, alimentarem-se nas ruas, etc. A partir de uma representação negativa sobre os retirantes, podemos observar como se davam as contradições entre os grupos sociais em Fortaleza, onde os costumes dos retirantes se mostravam diametralmente opostos aos das elites. A modernidade da Capital mostrava-se deveras paradoxal.

Apesar dos costumes sociais que Fortaleza presenciava no inicio da década de 1930, como a seca de 1932 e a invasão de uma população de “flagelados” em seu território, havia em contrapartida a introdução de novas tecnologias que animavam as classes abastadas, que associava essas tecnologias ao desenvolvimento do progresso na capital. “Ainda em 1933, a título de experiência, em trecho da cidade se inaugurou a pública iluminação elétrica, denunciando-se, em consequência, o contrato com a Ceará Gás, cuja duração se alonga por muitos anos, entravando o nosso progresso.”(ADERALDO, 1974, p. 55).

Centro da cidade. Vemos o quarteirão entre a rua Guilherme Rocha e a Liberato Barroso na década de 30. 

A eletricidade se torna sinônimo de “novo”, urbanização, modernização, em detrimento do velho, antigo e “insuportável” gás carbônico. Outra inovação para a cidade na época foi a primeira transmissão a rádio realizada na inauguração da Coluna da Hora, representando dois marcos simbólicos que denotavam a cidade de “progresso e modernização”.

No dia da inauguração da coluna, 31 de dezembro de 1933, foi realizado nos estúdios da casa Dummar, futura PRE-9, então nos altos da atual sede da CIMAIPINTO, a primeira transmissão radiofônica no Ceará, para aparelhos receptores fixados no referido monumento do centro da Praça, a não mais de 200 metros de distância... Mas que progresso para época! (IDEM, 1974, p 54 e 55).

O ano seguinte, em 1934, vai ser inaugurado à primeira radio do Estado do Ceará. É a Ceará Radio Clube (PRE-9), que significava então para a ascendente burguesia urbana de Fortaleza, que a capital estava se modernizando e em constante “progresso”.

A praça na década de 30 - Arquivo Nirez

As classes abastadas são as que mais se beneficiam da modernidade e urbanização de Fortaleza, pois as principais obras de urbanização, saneamento, aterramento, são realizadas no centro da cidade, e a grande massa de retirantes, não vai ter acesso, nem, vai usufruir da urbanização da cidade. Porém, essa população de retirantes não era passiva nesse processo de transformação da cidade. Eles se organizavam, questionavam o governo e faziam saques de mercadorias, forçando assim a burguesia e o governo a cederem as suas pressões. Nesse sentido, os retirantes também são protagonistas da cidade, chegavam a incomodar a “paz urbana” das elites e ameaçar a quebra da ordem. Consequentemente, sendo eles o “flagelo” da elite, que era obrigada a conviver com essa população que lotava a cidade a partir da seca de 1932. Miséria e luxo coexistiam não como um antagonismo indissolúvel, mais como fruto de uma modernidade paradoxal e excludente.
Contudo, nos períodos de secas, como a de 1932, intensificavam-se os conflitos e exacerbavam-se as contradições na capital. Uma população de retirantes sem recursos materiais, devido a uma série de fatores como concentração de latifúndio no campo, má distribuição de renda, conflito de interesses entre classes sociais, política excludente do Estado, dentre outros, contribuía para aumentar a violência na cidade.

Praça na década de 30 - Arquivo Nirez

O governo e as classes abastadas da capital queriam expurgar o centro e os seus bairros de moradia, o que significava afastar do seu convívio as camadas mais pobres. Porém essa não era uma tarefa fácil, pois as camadas mais pobres representavam a grande maioria da população, que tinha migrado para a capital devido à seca de 1932, e que buscavam em Fortaleza uma melhoria na qualidade de vida, e não um recrudescimento da miséria.

É importante compreender a modernidade como sendo um complemento do desenvolvimento capitalista na cidade, uma vez que as reformas urbanas que ocorreram em Fortaleza no inicio da década de 1930, mais especificamente nos anos 1933 e 1934, estavam relacionadas também ao contexto de uma nova classe social que emergia no País, a burguesia industrial urbana.


¹Mozart Soriano Aderaldo, apesar de ter nascido no Maranhão era descendente de uma tradicional família cearense de Mombaça. Ocupou vários cargos no governo chegando a ser prefeito de Senador Pompeu, diretor da Imprensa Oficial do Estado, secretário Estadual de administração do governo Plácido de Aderaldo Castelo. Foi também professor universitário e participou efetivamente do grupo Clã. Fizemos essa lacônica apresentação para que possamos entender melhor o seu lugar social da fala. Portanto, entender melhor o seu discurso.



As melhorias urbanas durante a seca de 1932
As melhorias urbanas durante a seca de 1932 - Parte II

Leia também:
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza



Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fontes: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça 22/09/31 à 05/09/34. Arquivo Público do estado do Ceará/ Livro Fatores de Localização e de Expansão da cidade de Fortaleza, do arquiteto José Liberal de Castro/ http://memoria.bn.br/

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

As melhorias urbanas durante a seca de 1932 - Parte II


Trecho da rua General Sampaio pavimentado a concreto. 
Foto do Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça

Conforme relatei no post anterior, durante a seca de 1932 Fortaleza foi agraciada com várias melhorias urbanas, tanto por causa da mão de obra barata, como pelos recursos atraídos do governo federal devido à seca. Outro aspecto da morfologia urbana que sofreu alteração nesse período foi o calçamento. Houve um investimento exorbitante do governo e de alguns setores capitalistas, nos anos de 1932 a 1934 em relação à pavimentação das ruas, e desenvolvimento de um novo calçamento. As ruas estando mais bem pavimentadas favoreciam o desenvolvimento do comércio e da indústria da construção civil, uma vez que nesse período várias cooperativas de construção se instalam em fortaleza, abrindo possibilidade até para o parcelamento de casa em várias prestações, refletindo uma expansão do crédito e aumento do capital financeiro.

Fortaleza era uma das cidades do Brasil de pior pavimentação. Depois do surto de renovação verificado nos últimos anos e que tem dado à capital cearense aspecto de cidade moderna, era triste ver como destoava do seu progresso a velha e antiquada pavimentação das suas ruas de pedra irregular, em péssimo estado de conservação e sem os indispensáveis serviços de escoamento das águas pluviais.
(Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 292.)

Esta situação é lapidar em relação aos interesses do governo. Ele utiliza o discurso do “progresso”, da “modernidade”, em contrapartida de uma cidade velha e antiquada, que tem por urgência ser pavimentada, remodelada, em que o serviço de escoamento das águas estava obsoleto, aliás, “nem existia”. O calçamento era feito de pedras irregulares, em péssimo estado de conservação, criando assim uma imagem de caos em Fortaleza antes dessas obras, como sendo indispensável modernizá-la. Mas os interesses do governo, e desse setor capitalista, tornam-se mais cintilante e ganha um sentido mais abrangente, ao observarmos a continuação do trecho citado acima.

A prefeitura, chegada a oportunidade, resolveu tão importante problema mandando abrir a necessária concorrência pública para a construção de dois tipos de calçamentos – a concreto e a paralelepípedo. [...] continua, revelando os interesses da burguesia [...]. Venceu a concorrência a firma Industrias Brasileiras Portela S/A que executou muito bem o seu contrato, cobrindo 10.000m² daquele primeiro tipo e 10.000m² do segundo. Aberta nova concorrência em janeiro deste ano, foi vencedor o Dr. Omar O`Grady; com quem foi contratada, de acordo com o edital de concorrência, a cobertura de.... 100.000m², distribuídos em três exercícios financeiros consecutivos sendo 25.000m² em 1934, 35.000m², e ....40.000m² em 1936. 
(Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 292.)

Com observação desta fonte, é possível inferir como essas obras representavam um lucro exacerbado para esse setor. Havia uma disputa pelas licitações, que demonstrava qual fração do capital tinha uma relação mais “íntima” com o governo. Nesse caso, o Dr. Omar O´Grady venceu a concorrência das Indústrias Brasileiras Portela S/A, e continuou com uma “ boa relação com o governo” durante mais três exercícios financeiros consecutivos até o ano de 1936. Essas melhorias também movimentavam um grande mercado da indústria da construção civil.


Até hoje, por conta da metragem do exercício em curso, foram construídos 2.217 m² de concreto e 11.614 m² de paralelepípedo, num total de 18.831 m². No período de janeiro de 1933 a esta data, se construíram 68.376 m² de calçamento comum em ruas menos centrais e reconstruídos 80.647 m², ou seja, 107.480 m², assim distribuídos:
Calçamento a paralelepípedo -------------------------------------------- 21.887 m²
Calçamento a concreto --------------------------------------------------- 17.217 m²
Calçamentos comuns ----------------------------------------------------- 68.376 m²
Total ---------------------------------------------------------------------107,480 m² 
(Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 292-293.)

Assim, essas reformas urbanas foram fundamentais para o desenvolvimento do circuito secundário da sociedade e da indústria da construção civil. Essa urbanização ocorreu concomitantemente à industrialização de Fortaleza, pois era necessário ter um aparato tecnológico desenvolvido para possibilitar a construção em larga escala, sem falar na mão de obra livre e barata das pessoas que vinham do campo e que, rapidamente tinham que se metamorfosear de camponeses em operários. Esses dados acima também mostram como o volume de melhoramentos foi intenso a partir da seca, e como algumas frações de capital souberam aproveitar o momento para ampliar sua margem de lucro e desenvolver suas indústrias.

A cidade de Fortaleza, ao mesmo tempo em que era a mais desenvolvida do Ceará, e que tinha uma maior industrialização, uma maior rede de comércio e uma maior urbanização, também passa a ser o lócus das contradições de classes, onde existiam vários sujeitos disputando os seus espaços. Daí o medo do governo e dos grupos privilegiados no que se refere ao controle social dos retirantes.
O governo, porém, continua a sua propaganda urbanista:

Como conseqüência natural do preparo da nova pavimentação, teve a prefeitura que estudar e construir as galerias de vazão das águas pluviais, serviço de que a cidade se ressentia quase totalmente. Correspondentes aos trechos cobertos com calçamentos a concreto e a paralelepípedo, foram construídos 724 metros de galeria, as quais produziam resultados magníficos durante o ultimo inverno, ficando assim provada a sua eficiência. 
(Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 294.)

Fortaleza, a partir da seca de 1932, virou um verdadeiro “canteiro de obras”. Ainda foi feito nesse período um serviço de colocação de meios-fios, no qual a prefeitura aproveitou para fazer propaganda do seu governo, comparando com o governo anterior. Portanto, as melhorias eram utilizadas das mais diversas maneiras possíveis, desde a propaganda do governo, lucro da indústria da construção civil, valorização do capital imobiliário, até o controle social dos retirantes através do trabalho. Podemos perceber como a seca contribuiu para aumentar a quantidade de obras na cidade, se observarmos o quadro abaixo que mostra a quantidade de meio-fios que foram colocados na capital:

(Dados do Relatório do Interventor federal Carneiro de Mendonça).

Se compararmos o triênio anterior à seca, que foram construídos 15.028 metros, com o triênio da seca que foram construídos 28.984 metros, houve, portanto, um aumento considerável, e a administração Raimundo Girão, a partir de abril de 1932, ao assumir a prefeitura, não hesitou em considerar ser este resultado mérito de sua administração. Porém, diversos elementos contribuíram para isso, como a seca, que atraiu recursos, os retirantes servindo de força de trabalho barata e volumosa, o investimento de capital por parte de alguns capitalistas, e a industrialização de Fortaleza que estava mais desenvolvida.

Além dos serviços de meios-fios, galerias de vazão de águas pluviais, terraplanagem de dunas, construção de praças, Fortaleza foi dotada de um novo sistema de numeração, considerada no discurso oficial, como mais adequada ao aspecto de “cidade moderna”.

Através do Decreto municipal nº 75, de 31 de dezembro de 1932, modificou e normalizou a nomenclatura das ruas e logradouros públicos da cidade, até então incongruentes, desordenada e falha. Em consequência, foram colocadas e substituídas inúmeras placas e iniciado o serviço de numeração dos prédios, já tendo sido apostos mais de 18.000 números. 
(Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 294.)

Desta forma, a cidade passou por diversas reformas infraestruturais para torná-la mais “moderna”, ou seja, mais apta a desenvolver o capitalismo. Mudou-se até mesmo o sistema de limpeza pública que “foram substituídos por auto-caminhões convenientemente adaptados, as velhas carroças que desde tempos imemoriais faziam transporte do lixo domiciliar. Desta maneira o serviço é hoje feito com rapidez e eficiência, sem aquele aspecto moroso e antiquado.” - Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 297.

O Estado (interventoria e governo municipal) vai substituindo todos os aspectos mais rurais de convívio da sua cidade. O logradouro cada vez mais vai ganhando um aspecto urbano, apesar de parte da população que habita ainda ser rural. Os retirantes passam a viver numa cidade que apesar de participar do seu processo de produção, a enxerga como algo que lhe é “exterior e estranho”, não usufruindo dos seus benefícios. Sendo eles deslocados para os subúrbios, favelas, distante das elites e do convívio social. Esses trabalhadores construíram um espaço urbano “moderno”, e não puderam ser beneficiados com seu uso, abrindo possibilidades para que as classes abastadas e setores capitalistas legitimem-se como sujeitos do processo, criando discursos como: “a modernização de Fortaleza foi realizada pela elite”; “o governo do Raimundo Girão urbanizou Fortaleza”, dentre outros.

Jornal a Razão em visita ao Morro do Moinho em 1936, local para onde foram deslocados alguns retirantes da seca de 32.

Uma parte da historiografia do Ceará legitima Adolfo Herbster, Silva Paulet, Nestor Figueiredo, sujeitos criadores da cidade, como se um processo complexo como a construção de uma cidade se resumisse a um conjunto de ideias e/ou projetos frutos da intelectualidade de uma plêiade.

A propaganda sobre as melhorias da cidade que, segundo os grupos dominantes estava se tornando moderna, continua. Agora é em relação ao Horto Municipal da cidade:

Continua tendo o maior desenvolvimento o Horto municipal, como a prefeitura pôde construir e refazer os seus jardins, arborizar ruas e logradouros e fornecer a quase todas as municipalidades do interior do estado. Infelizmente a sua atual situação é de todo inconveniente. Era pensamento do governo municipal localizá-lo nos terrenos adquiridos pela prefeitura a empresa Matadouro [...] aponto, o que para a prefeitura, seriam as vantagens [...] Além da excepcional localização e da fertilidade da baixada, a instalação do Horto, ali, terá a vantagem de contar com o adubo e o barro provindos do Matadouro, sendo quase nulas as despesas de transportes.
(Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 296.)

A prefeitura se demonstrou tão interessada em transportar o Horto para as proximidades do Matadouro, que na época ficava localizado próximo à lagoa do Tauape, que é plausível questionar os interesses em questão. As vantagens apontadas pelo governo sobre o terreno são tão explícitas e “convidativas” que se poderia pensar que se tratava de valorizar o terreno próximo ao Horto.
No entanto, o que é mais importante notar, é que as obras em Fortaleza não paravam de serem executadas. “No espaço de tempo compreendido entre janeiro de 1933 e esta data, foram abertos treze(13) kilômetros de novas ruas, tendo sido levantados 2.180 metros de cerca de arame”. (Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 295.)

Veremos algumas dessas obras através das fotos do Relatório do Interventor federal Roberto Carneiro de Mendonça.

No Relatório do Interventor, boa parte das fotos são mostradas fazendo uma comparação entre o antes e o depois das melhorias. Com isso, fazia sempre uma propaganda positiva do Interventor e do Prefeito Tibúrcio Cavalcante ou Raimundo Girão, dependendo do período.
Era comum também no relatório fazer comparações, de maneira discreta, com a administração anterior, criando uma imagem negativa da cidade, antes das “melhorias urbanas”. No caso, a cidade era termômetro para se avaliar se a administração foi boa ou ruim. A cidade era compreendida apenas no seu aspecto físico, infraestrutural, tornando-se, portanto, a vitrine de propaganda do governo, que a utilizava sempre com o adjetivo de moderna.


Ponte do Jacarecanga depois de sua nova reconstrução.

O governo utiliza a reconstrução da ponte como mais uma das melhorias que deixou Fortaleza uma cidade moderna.  Percebemos melhor a propaganda do governo nessa citação:

A prefeitura teve necessidade de reconstruir a ponte de Jacareganga, a Avenida 5 de julho, que por força das chuvas torrenciais deste ano, quase veio a ruir completamente. Os trabalhos da reconstrução pode-se dizer consistiram em uma nova construção, porquanto, para corrigir os defeitos da obra anterior e os danos causados pela invernada, tiveram de ser levantados novos muros de arrimo, feito todo o piso, construídas novas balaustradas e outros passeios laterais. A ponte apresenta agora um aspecto moderno, amplo e agradável. (Página 288-289)


Pista de patinação construído no Passeio Público na administração Major Facundo.


Esta foto demonstra a suntuosidade do governo e da elite¹, que em meio a vários conflitos na cidade: seca, explosão demográfica, campos de concentração, saques dos retirantes, movimento em prol da constituinte, não se esqueciam de seus momentos de luxo e lazer. Esse também é mais um indício do aumento de verbas que chegava à cidade, devido à seca. A cidade era remodelada num ritmo acelerado, ou melhor, o centro da cidade e alguns bairros da classe abastada.

Em relação ao centro da cidade, se observarmos as fotos das suas principais ruas como a Major Facundo, a Barão do Rio Branco dentre outras, verificaremos a presença de automóveis, os edifícios começando a se verticalizar, sua pavimentação a concreto, todos os indícios de um centro comercial que se tornava efervescente e moderno.


Essas fotos nos dão um panorama de como era o centro da cidade de Fortaleza, ou melhor, algumas possibilidades da reconstrução do centro, partindo da perspectiva que essas fotos foram selecionadas para propagandear o governo.
Podemos questionar como eram feitas essas melhorias, visto que as fotos mostravam as melhorias já em estado de conclusão. No entanto, são poucas as fotos no Relatório do Interventor que mostram as obras em andamento e, por conseguinte, os trabalhadores em atividade, pois não era intenção do governo mostrar a que custo era feitas essas melhorias, sendo muito mais interessante para efeito de propaganda exibir os resultados.


Esta foto é uma das poucas que mostram os trabalhadores no processo de construção das melhorias. Ela se refere ao serviço da nova pavimentação da Rua São Paulo. Não podemos afirmar pela foto que aqueles trabalhadores sejam retirantes. Porém ela é bastante significativa, pois revela quem são os sujeitos que constroem materialmente a cidade. Percebemos na foto a presença de trabalhadores em atividade, e a quantidade de trabalhadores que era necessário na época para se pavimentar uma rua. Como todas as ruas do centro foram pavimentadas, remodeladas, junto com a construção de praças, pontes, e outras obras, temos uma noção da quantidade enorme de trabalhadores necessários para realizar esses serviços, visto que as obras foram feitas em período concomitante.

Em 1932, os campos de concentração e várias frentes de serviço procuravam prender o flagelado no sertão. Entretanto, muitos retirantes conseguiram chegar à capital, onde eram recolhidos e alocados em obras como a construção de calçamentos e prédios. Além disso, os retirantes também trabalharam em construção de estradas de ferro, na oficina do Urubu, que foi mantida durante todo ano de 1933.
É importante salientar o caráter contraditório da urbanização de Fortaleza, que privilegiou o centro e os bairros nobres, e acelerou o crescimento das periferias e favelas.

¹“A patinação era um desporto em voga, com o qual a Jeunesse Dorée aproveitava os passeios cimentados das novas praças para exibir-se”. Daí em se pensar em projeto de modernidade e não apenas de modernização. A elite cearense se espelhava nos costumes europeus, e queriam uma cidade não apenas com novos equipamentos modernos, mais com uma população “culturalmente moderna”. (Castro, 1988, p 216)


Leia também:
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fontes: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça 22/09/31 à 05/09/34. Arquivo Público do estado do Ceará/ CASTRO, José L. de. Arquitetura Eclética do Ceará. São Paulo, Nobel, editora da universidade de São Paulo, 1988: in Ecletismo na Arquitetura Brasileira. Org: ANNATERESA, Fabris.- São Paulo: Nobel; editora da universidade de São Paulo, 1988./ http://memoria.bn.br/

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