Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



domingo, 14 de abril de 2019

O centenário Poço da Draga

Comunidade do Poço da Draga em 1964.
Acervo O Nordeste
O Poço da Draga se localiza nas proximidades da foz do riacho Pajeú, na orla marítima fortalezense, histórica pela formação portuária. Originalmente composta por uma colônia de pescadores, os primeiros habitantes se firmaram na região por volta de 1906 com a construção de um pequeno porto à beira do mar no local. Segundo informações de interlocutores, a Colônia de Pescadores Z-18 se formou em torno da região inicialmente por volta de 1906 devido à construção da Ponte Metálica, o píer improvisado que servia de ancoradouro de embarcações, embarque e desembarque de passageiros e fluxo de mercadorias. Este porto improvisado foi chamado de Ponte Metálica e tinha estrutura de ferro, servindo de ponto para ancoragem de embarcações. Conforme data esta manchete de jornal, a ponte tinha estrutura especializada para o trânsito marítimo daquele período:

A ponte metálica funcionava como porto na metade do século
passado. Com a revitalização e impossibilidade de seu restauro,
será construído ao lado um novo espigão que funcionará como
observatório e ancoradouro de pequenas embarcações.
Em 1860 foi iniciada a construção de um paredão no Meireles, e para a fixação das areias do Mucuripe, fazer o plantio de gramas nas dunas. Estudos do engenheiro Domingos Sérgio de Sabóia e Silva resultaram na construção de um viaduto na altura da Alfândega, todo de ferro, com piso de madeira, que ficou conhecido como “ponte metálica”. A construção foi iniciada no dia 18 de dezembro de 1902 e sua inauguração se deu em 26 de maio de 1906. Tinha uma escada móvel para acompanhar as marés, onde as pessoas subiam e desciam para embarque e desembarque. Também existia guindaste para transporte de mercadorias. Tanto as cargas como os passageiros embarcavam em lanchas e botes, indo até o navio. [...] Em 1922 foi reconstruída, desta vez em concreto armado. [...] No governo de Epitácio Pessoa, a ponte foi reconstruída e dado início à construção do Porto de Fortaleza, uma nova ponte, que ligaria a terra firme a uma ilha submersa à 900 metros dali. Chamou-se esta outra ponte de Ponte dos Ingleses, devido ser construída por uma firma inglesa, a Morton Griffths. A outra ponte começou a ser chamada de ponte velha (Jornal O Povo, s/d, apud FEITOSA, 1998, p. 191).


Essa estrutura da ponte ainda está presente atualmente. Serve de lazer para alguns moradores do Poço da Draga. Também atrai atenção de alguns visitantes que frequentam o local, principalmente os interessados em apreciar a paisagem e fazer incursões ao mar por meio de saltos. Contudo, a deterioração da ponte, que não foi mais reformada desde a desativação do porto, é notável. Vale ressaltar que a outra ponte construída, a Ponte dos Ingleses, fica próxima da “ponte velha”, a Metálica, distanciando-se dela apenas alguns metros.

Poço da Draga em 1974. Acervo Delberg Ponce de Leon

Com a instalação do Porto do Mucuripe, em 1950, a região do Poço da Draga, que incluía as duas pontes, foi abandonada pelos investimentos no setor portuário. Porém, o local passaria a ter outros focos de obras. Inclusive o nome do espaço se deve a este período anterior à construção do Porto do Mucuripe. Em história presente em algumas das muitas narrativas de moradores antigos, é possível entender que o “poço” é devido à profundidade do mar próximo à ponte que servia de ancoradouro de embarcações naquele período inicial de ocupação da região e a “draga” é o instrumento de sucção de areia e dejetos marítimos presentes nos tempos em que o porto funcionava no local.

Poço da Draga na década de 70.
Em mudanças paisagísticas constantes, o Poço da Draga se firmou como lugar de moradia para muitas pessoas. De casinhas na beira da praia aos sobrados duplicados e rearranjados, o espaço urbano se alternou durante gerações. Os moradores mais antigos são os mais surpresos com as modificações do meio. Clóvis, um portuário aposentado de 79 anos retrata suas próprias experiências de convivência durante pescarias e banhos de mar da adolescência à idade adulta. “Aqui [no Poço da Draga] é lugar de lazer desde sempre, quem veio pra cá quis ter trabalho e diversão desde o começo”, afirma ele. Chegado ao Poço da Draga quando criança, Clóvis viu desde menino seu pai pescador ir ao mar em busca do sustento da família. Acometido por problemas de saúde durante a infância e desestimulado à vida marítima pelo próprio pai, Clóvis decidiu ingressar em um emprego como funcionário do recém-criado Porto do Mucuripe logo após haver cumprido serviço militar no exército, aos 18 anos. Com o equivalente ao Ensino Fundamental incompleto, ele passou nas provas de seleção e foi aceito como portuário inicialmente no setor de transporte de mercadorias, descarregando objetos das embarcações.

Poço da Draga vendo-se a Sefaz
Eu já ajudava a carregar os peixes e as coisas dos barcos aqui [no Poço da Draga quando era porto]. Depois que mudaram o porto para o Mucuripe, a gente ia tudo pra lá de caminhão. O sindicato [dos portuários] ainda era aqui quando o porto de lá foi inaugurado. Vinha o chefe do sindicato aqui e fazia a chamada para a gente ir trabalhar. Nós íamos tudo num caminhão, que vinha buscar a gente aqui e levar pra lá. Aumentou muito a quantidade de mercadorias quando o porto foi pra lá, nem se compara. Aqui era pouquinha coisa. Eu era menino “véio” quando ia pra lá, achava era bom ir em cima do caminhão. Passeava até chegar ao cais. Quando voltava pra cá ainda ia era jogar futebol na praia (Sr. Clóvis, em 06/02/2014).

No período em que estava diariamente envolvido na empreitada de ir até o Porto do Mucuripe para trabalhar, Clóvis passeava pelo local de moradia geralmente nos finais de tarde. O pôr-do-sol visto da Ponte Metálica, atesta ele, é inigualável em beleza: “a satisfação de morar aqui desde quando eu era novo é ver essa lindeza de sol caindo no mar todo dia... quando você olha pra um negócio desses esquece até dos problemas que tem no trabalho”.

Antigo Porto e casinhas no Poço da Draga na década de 20. Acervo Carlos Juacaba

O senso estético aliado ao lazer da região está compreendido como marca registrada do Poço da Draga, destaca Francisca. A pedagoga, cujos pais vieram para a região antes mesmo dela nascer, guarda várias memórias do local anteriormente. “A vida pacífica daqui chamava a atenção antigamente, tudo era tranquilo, as crianças brincavam na rua até tarde, não tinha esse perigo todo que existe hoje em dia”, ela compara. Francisca recorda que, mesmo acometida por uma grave enfermidade durante boa parte de sua infância, costumava ir à praia quando podia e se admirava sempre com a beleza da região. “Era tudo menos complexo do que é hoje, a gente podia andar por aqui sem se preocupar se podíamos estar atrapalhando algo”, analisa ela ao afirmar que antigamente não havia interesses de governantes em promover modificações urbanísticas na região para deixar o ambiente “apropriado aos turistas” como ocorre atualmente.
Praia do Poço da Draga em 1980.
Acervo Celso de Oliveira Silva
Ao comparar as habitações do passado e do presente no Poço da Draga, Rosa se emociona. “As casas antigamente eram pequenas, na beira do mar”, enfatiza a vendedora. Rosa também afirma que devido às intervenções na região motivadas pela instalação de um estaleiro e especulações constantes em remover habitações de moradores para fomentar a transformação da área em local de construção de embarcações, as casas do Poço da Draga foram se modificando com o decorrer do tempo. Por ter nascido no local, ela pôde acompanhar de perto as mudanças na paisagem. Alguns aspectos de sua própria trajetória de vida se entrelaçam com as modificações espaciais que ela observa:

Nasci no Poço, meus pais também moram aqui. A gente morava na beira da praia numas casinhas de madeira, tinha colônia, mas depois que essa Indústria Naval que fica aqui nos fundos, nesse estaleiro, conseguiu tirar, indenizar as pessoas, muitas foram para outros cantos, acabou a colônia de pescadores. Quem pôde comprou a casa aqui, porque a gente que mora lá perto da praia, aqui era como se fosse a Aldeota, né? Só morava aqui quem tinha mais condições, então meu pai conseguiu comprar uma casa aqui e a gente mudou pra cá, mudou só de cantinho, mas continuou na mesma comunidade. Eu tinha uns dois ou três anos quando a gente saiu da beira da praia e veio pra cá, minha mãe ficou morta de feliz, o sonho dela era morar aqui porque lá quando a maré enchia a água passava por debaixo da casa. Eu não tenho muita recordação disso, pois eu era pequena; aqui era uma casa velha que meu pai comprou e fez uma mercearia, era a única que tinha, depois foram surgindo outros comércios; quando eu casei, ele me deu aqui para eu morar, porque aí acabou o comércio, mas ele ainda mora na mesma casa (passa duas casas da minha). Desde que eu já era menina eu via as casas de taipa, de madeira, que aqui era areia, eram palafitas, de madeira, com o tempo foi que as pessoas foram remodelando as suas casas, mas aqui quando era colônia de pescadores há 100 anos aqui era areia da praia e palafita (Rosa, em 04/11/2014).

Poço da Draga na década de 70. 

Construção da Ponte dos Ingleses. Site Poço da Draga

A alusão de Rosa à “Aldeota” se refere às ruas principais hoje presentes no Poço da Draga, mais valorizadas que as demais. Aldeota é um bairro de classe média alta, conhecido popularmente por ser foco de investimentos dos governantes e centro monetário da capital cearense. Assim, em divisão interna no Poço da Draga, a “Aldeota” do Poço são as duas ruas principais, mais valorizadas que o restante dos logradouros, inclusive os imóveis à beira da praia que foram retirados com a construção do estaleiro.

Acervo pessoal de Clóvis Acário
Relembrar um passado longínquo com habitações diferentes das atuais pode não ser um exercício apenas de nostalgia. Pelo contrário, é possível contemplar aspectos dificultosos nesse período anterior. Rosa afirma que no período em que o Poço da Draga era constituído basicamente por palafitas e casas de taipa havia problemas de abastecimento de água para os moradores. “Não havia água para nós, só tinha a água empoçada nas ruas, só no lamaçal quando chovia”, lamenta. Até hoje sem saneamento, o Poço da Draga sofria anteriormente também por não possuir água encanada para os moradores. Clóvis relaciona essa ausência de água antigamente com o descaso constante dos governantes, independente do tempo. “Nunca nenhum político fez nada por nós!”, reclama ele. E complementa afirmando que “até a água foi os próprios moradores que conseguiram junto à CAGECE.

Fotografia tirada por Amelia Earhart. Vemos o Poço da Draga, a Sefaz e a antiga Igreja de São José.

Comerciante no Poço da Draga desde meados dos anos 1970, Valdir relembra a escassez de água como condição que desiludia muitas pessoas sobre a permanência no local. Abastecidos pelo manguezal anexo à foz do rio Pajeú, em água muitas vezes insalubre, Valdir conta que “o povo do Poço da Draga já se achava excluído desde essa época, até que se juntaram e fizeram um amontoado de gente pra ir até a Prefeitura pegar o direito de ter o que beber”. Este movimento de organização dos moradores para obter água encanada ocorreu somente no final dos anos 1980, devido basicamente a formação da Associação dos Moradores do Poço da Draga (AMPODRA, instituída em 1980). Hoje, o comerciante espera que a mesma vontade coletiva que angariou recursos para implantar o abastecimento de água se efetive na consolidação do saneamento básico das ruas. Ele indaga, que “se você perguntar para a maioria das pessoas que moram aqui o que elas mais querem, elas vão te dizer: esgoto! É muito ruim morar num canto em que os becos são como valas de porcarias correndo para o mangue”.

Poço da Draga em 1937. Vemos ao fundo, a Light, o Gasômetro e a Santa Casa. ano 1937

Valdir é proprietário de uma pequena mercearia no Poço da Draga. Vê movimento diário de pessoas nas ruas do aglomerado urbano. Sabe que as condições dos moradores já mudaram bastante para o que eram no passado. Como exemplo de alguém que viveu situações difíceis nas ruas encharcadas de lama, ele destaca a ferrovia que cruza o Poço da Draga como aspecto de deterioração de um passado que poderia ser mais promissor aos dias atuais. Da realização de transporte de mercadorias a uma velha plataforma desativada em frente ao seu comércio, “a linha do trem”, para Valdir, é sinônimo de que “algo errado” aconteceu àquele lugar. “A gente se sente inútil hoje em dia pela história que isso aqui tem [apontando para o trilho], aqui era pra ser um local importante, valorizado, amado por toda a cidade, mas o que a gente vê é que ninguém quer saber de nós”. Valdir deseja que a história antiga do Poço da Draga conjunta à da capital cearense poderia ser um alicerce para que a permanência dos moradores em condições sanitárias minimamente satisfatórias fosse garantida pelos órgãos estatais de governança.

Na fronteira entre as memórias de infância e o que se vivencia atualmente é que, muitas vezes, se estabelece algum tipo de insatisfação. Potencialmente exposto como causa de problemas sanitários, a ausência de saneamento básico nas ruas do Poço da Draga abrange outra série de ligações das pessoas com o meio onde vivem. Descaso por parte dos órgãos governamentais é uma queixa recorrente e alarmante. Estar em um ambiente à margem da execução de obras de melhorias sanitárias já seria um motivo de questionamento. E isso se amplia com a ausência de tais melhorias em um local que existe há muitos anos, como o Poço da Draga. Por saberem que o local onde moram cada vez mais faz parte de um processo de tentativas para o “enobrecimento” do espaço litorâneo voltado ao turismo fortalezense, as opiniões de muitos moradores se alternam em que possa haver benfeitorias futuras nas ruas do Poço da Draga ou que haja uma inevitável remoção que se complementa em anos de destruição gradativa da vontade deles mesmos em permanecerem no local pela não-efetivação de instalações subterrâneas de redes de esgoto na região.
Isadora, dona de casa aposentada, se pergunta diariamente sobre quando deixará de ver fluxos de dejetos, sem limpeza prévia, indo diretamente ao mangue anexo ao Poço da Draga. Isadora mora desde criança nas proximidades do mangue e não se conforma com a situação inóspita que vive. Ela relembra o passado em que “tinha menos gente aqui, o riacho era mais limpo e mais fácil seria do governo colocar os canos” (sic). Viúva de um marido estivador, Isadora mora há muitos anos com dois netos em sua residência que habita desde a juventude, herdada de seu pai e hoje reformulada. Próxima ao mangue, sua habitação foi modificada com ajuda de uma amizade pessoal de um de seus filhos com um agente de obras da Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF). A ampliação do teto da residência e a subida do chão evitaram constantes alagamentos que ela sofria no período de chuvas fortes. Com a intensidade da água invadindo a casa¹, ela constantemente tinha que colocar móveis em suspenso e dormir em redes improvisadas por sobre as camas. Para Isadora, a mudança de sua casa é decorrente de um processo maior de modificações em todo o espaço que também abriga as residências de seus vizinhos. “Do mangue limpo ao sujo, da rua velha encharcada ao calçamento que traz água pra dentro de casa, tudo cheio de gente aqui hoje em dia, as coisas tinham que mudar”, diz a aposentada. É interessante notar o destaque dela para as transformações ocorridas no Poço da Draga como uma perspectiva de aprendizado acumulado:
Quem nunca viu os barquinhos saindo daqui de casa [antigamente]? Era só pescaria animada. Armavam os barcos aqui mesmo, perto do riacho. Hoje tá tudo cheio de gente amontoada numas casas de papelão lá [no mangue]. Se continuar assim, não tem político que dê jeito aqui mesmo, vão achar mais fácil tirar a gente daqui. Eles [os políticos] confundem tudo, acham que o povo que mora aqui é tudo igual. Mas o que aconteceu era pra todo mundo ter cuidado, não ter deixado sujar tudo aqui... Queria ver se eles tivessem deixado tudo bonito se a gente ia ter medo de enchente hoje em dia! Duvido! Eles deixaram tudo se acabar, de propósito. A gente ainda luta, corre atrás, mas é difícil, sabe? Tudo tá diferente aqui, eles querem que fique pior para nós mesmos pedir pra sair (Isadora, em 14/02/2014).

Mestre Teotônio construindo um barco. Detalhe para a Catedral (em construção), que ainda podia ser vista sem muitas dificuldades da praia e também para as casinhas de pescadores. Acervo Joanna Dell'Eva

Lido Mar II já concluído no Poço da Draga. Acervo Joanna Dell'Eva

Na fronteira entre as memórias de infância e o que se vivencia atualmente é que, muitas vezes, se estabelece algum tipo de insatisfação. Potencialmente exposto como causa de problemas sanitários, a ausência de saneamento básico nas ruas do Poço da Draga abrange outra série de ligações das pessoas com o meio onde vivem. Descaso por parte dos órgãos governamentais é uma queixa recorrente e alarmante. Estar em um ambiente à margem da execução de obras de melhorias sanitárias já seria um motivo de questionamento. E isso se amplia com a ausência de tais melhorias em um local que existe há muitos anos, como o Poço da Draga. Por saberem que o local onde moram cada vez mais faz parte de um processo de tentativas para o “enobrecimento” do espaço litorâneo voltado ao turismo fortalezense, as opiniões de muitos moradores se alternam em que possa haver benfeitorias futuras nas ruas do Poço da Draga ou que haja uma inevitável remoção que se complementa em anos de destruição gradativa da vontade deles mesmos em permanecerem no local pela não-efetivação de instalações subterrâneas de redes de esgoto na região.

Poço da Draga na década 1970.  Site oficial Poço da Draga

A desesperança de Isadora quanto aos governantes parece se adequar a uma vontade mais ampla deles de que os moradores do Poço da Draga saiam do local onde vivem. Um dos principais aprendizados do depoimento dela (aliado um pouco aos discursos de Valdir e Rosa) é que a não-execução de obras pode ser indício proposital para que, como afirma Francisca, “cada um faça só pra si mesmo” e assim se “perca o senso de coletivo”. O que se percebe, historicamente, no passado desses interlocutores diante do espaço onde moram é que os indicativos de mudanças para melhorias das condições de subsistência e higiene (buscar água e esgoto) estiveram sempre à parte dos interesses dos gestores públicos. As próprias pessoas é que tiveram que lutar para se ter água independente da iniciativa dos agentes de governança. 

Poço da Draga na década de 70. Vila de pescadores. Site oficial Poço da Draga

Francisca destaca o processo precário de pavimentação das ruas do Poço da Draga como mais um exemplo de não-assistência direta e explícita dos órgãos governamentais que são encarregados do planejamento urbano.
Com o fim gradativo da colônia de pescadores e a ampliação de construções nas habitações mediante muitas vezes às invasões de novos moradores em áreas adjacentes ao Poço da Draga, a diversidade de pessoas no local se tornou foco de inquietações principalmente nos moradores mais antigos. Vale ressaltar que o Poço da Draga se consolidou como local de habitação não só por meio da colônia de pescadores, mas também por ser um ambiente fornecedor de mão de obra portuária. Nesse sentido, é possível verificar o caráter urbano do espaço desde a sua fundação. Nunca se tratou de uma aldeia de pescadores com autossuficiência numa prática comunitária de subsistência somente a partir da pesca. As construções da ponte e da ferrovia indicam que os moradores do Poço da Draga sempre estiveram vinculados a cadeias produtivas e comerciais de escala maior do que a da “comunidade”.

¹As queixas recorrentes de alguns moradores do Poço da Draga com inundações de suas residências se devem a, principalmente, dois eixos de fatos ocorridos na região: a instalação recente de habitações na área do mangue, obstaculizando o fluxo de águas pluviais, que antes iam do mangue em direção ao mar; e a instalação do estaleiro por tomada de parte do terreno do mangue que dá acesso ao mar, pela Indústria Naval do Ceará (INACE), em meados dos anos 1970.

Crédito: ADERALDO, Mozart Soriano. 1993. História Abreviada de Fortaleza e Crônicas sobre a cidade amada. Fortaleza, CE: Edições UFC./Edson Alencar Collares de Bessa - O Poço da Draga e a construção do aquário/Arquivo Nirez/Site Comunidade Poço da Draga/ Jornal O Povo/Acervo pessoal

terça-feira, 2 de abril de 2019

A expansão urbana de Fortaleza: O desinteresse da cidade pelo mar

Do ponto de vista histórico, Fortaleza teve seu crescimento urbano voltado em direção ao sertão. A faixa litorânea fortalezense passa dessa forma alguns séculos sendo ignorada pelos seus citadinos. O mar, ponto de início da colonização cearense, vem configurar-­se nos primórdios do crescimento da cidade, como um local fora de Fortaleza. Este curioso fato de rejeição do fortalezense ao mar deu-­se principalmente pela origem daqueles que chegaram. Fortaleza, até 1799 (ano do desmembramento do Ceará da Província de Pernambuco), era uma vila sem importância econômica. Destacavam-­se naquela época as vilas de Aracati, Icó, Sobral, Crato, Camocim, Acaraú e Quixeramobim. Isso se dava pelo motivo da principal atividade econômica da província ser a pecuária, com a exportação de carne, couro e animais de tração para a zona ­da ­mata nordestina. 



A Zona ­da ­mata começava a se dedicar ao cultivo da cana ­de açúcar, cabendo ao Ceará a venda dos produtos pecuários para a região. Dessa forma, é dado início a movimentação econômica interna no território cearense. Fortaleza vem crescer justamente a partir da elite oriunda do interior da província. Dessa forma, o mar passa a se configurar por muitos anos como um local esquecido, ausente de qualquer tipo de interesse do homem. Se utilizando das plantas históricas de Fortaleza, esta pesquisa vem analisar a expansão urbana da cidade, verificando as mudanças de olhares do fortalezense em relação ao mar e observando a tomada da ocupação do litoral. 



Analisando a consolidação de Fortaleza enquanto capital, Dantas (2002) afirma que a cidade nascera voltada para o sertão, contradizendo sua natureza litorânea, dado as relações no campo cultural e econômico da sociedade com o interior do Estado, configurando-­se dessa forma como uma cidade litorâneo ­interiorana. O litoral passa a ser vislumbrado pela sociedade fortalezense quando em busca de uma vida político ­econômica mais independente, a cidade apresenta-­se como ponto de exportação dos produtos produzidos no Ceará, notadamente o charque e o algodão, através do Porto, implantado em fins do século XVIII, nas intermediações da Praia do Peixe, atual Praia deIracema
A oferta de mercadorias para o exterior já era presente desde meados do século XVII nas principais cidades brasileiras, uma vez que vendiam seus produtos para a Europa e outras capitanias. 

A vila encontrava-se ainda sem infraestrutura básica para o surgimento da economia de exportação vigente em outras capitais. A ausência de um porto em Fortaleza, capaz de exportar os produtos produzidos no Ceará, levava o crescimento de outras localidades, portuárias, como Aracati e Acaraú, passando a colocar o Ceará na rota de exportação do algodão. Essa precariedade infraestrutural de Fortaleza é percebida a partir da análise da Primeira Planta da Cidade de Fortaleza, rascunhada em 1726 por Manuel Francês que apresenta a Fortaleza do início do século XVIII. Desenhada pelo capitão-­mor daquele período, a planta surge com o objetivo de apresentar à Coroa Portuguesa o domínio lusitano sobre a região. O brasão português sobre o forte e as dez cruzes espalhadas pelo desenho, com o objetivo de reforçar a dominação católica no local, vem como uma tentativa de mostrar características que favorecessem a elevação da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção à categoria de cidade. Percebem-­se nessa planta as poucas edificações presentes em Fortaleza, que contava com algumas dezenas de casas ainda não arruadas, o forte (ainda de madeira), uma igreja e um mercado. Nota-­se a provável inexistência do sobrado localizado a leste do riacho Pajeú, dado pelo fato de não haver nenhum relato que afirme a existência do mesmo e por ser um local apático à ocupação fortalezense da época. Essa construção serviria apenas como uma alusão ao crescimento de Fortaleza, proposto pelo capitão-­mor ao reinado português. 


O desinteresse pelo litoral já era percebido, dado pelas poucas edificações na área. Com a construção das linhas de vapores, que percorriam várias cidades do interior com destino à capital, surge as relações econômicas e sociais do sertão com Fortaleza. Outro fator favorecedor dessa ligação foi a construção do porto nas proximidades da Prainha (atual Praia de Iracema). Nesse sentido, Fortaleza toma um novo rumo. 


Na segunda metade do século XIX, Fortaleza toma de Aracati, responsável até então pela exportação dos produtos cearenses, o comando das relações comerciais de boa parte do Vale do Jaguaribe e Sertão Central, devido o estabelecimento das linhas de vapores diretamente para a capital. A planta da cidade de Fortaleza de 1850, organizada por Antônio Simões Ferreira de Farias, e há muito perdida, reencontrada nos dias atuais por José Liberal de Castro, vem reforçar a expansão da cidade para longe do litoral. A área litorânea mostrava uma ocupação irregular, quase espontânea, indicado no desenho de modo um tanto confuso, fato que teria motivado a contratação de Farias para organizar uma outra planta, unicamente referida aquela parte da cidade (CASTRO, 2005). 
Nota-­se também que o riacho Pajeú continuava a constituir uma barreira física à expansão para o leste, embora já estivesse aberta a rua do Norte (atual GovernadorSampaio), delineada por Paulet no começo do século. A rua Governador Sampaio passava a servir naquela época como eixo direto de um futuro crescimento de Fortaleza para o leste. 

Observando a planta de Simões percebe-se também um caminho cruzando o riacho próximo a foz. Essa estrada que vem ligar o litoral oeste do riacho Pajeú ao litoral a leste do mesmo vem a ser a estrada do Meireles (Mucuripe). Essa estrada, um simples caminho arenoso, atuais Rufino de Alencar e Monsenhor Tabosa, encontrava-­se com uma capela (Conceição da Prainha), cujas obras, iniciadas uma década antes, ainda estavam por completar. Desse ponto, a estrada continuava para o leste, atingindo o Meireles, de onde prosseguiu até o Mucuripe, desviando-­se das dunas (CASTRO, 2005). 


No detalhamento da planta de 1850, onde se destaca a Prainha, nota-­se a predominância da paisagem natural, composta por dunas e lagoas interdunares, tendo como sinal de ocupação a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, o quartel da Fortaleza, a Tesouraria provincial e a Alfândega (capitania dos portos). 

O fato de a cidade instalar-­se no litoral permanecia sem contar muito na formação do imaginário social dos seus habitantes. Segundo Gustavo Barroso, o imaginário interiorano continuava a se legitimar por toda Fortaleza, até mesmo aqueles imóveis localizados à beira-mar, faziam referência a presença do homem do sertão e de seus utensílios.

As zonas de praia em Fortaleza caracterizam-­se nesse período como área de escoamento dos esgotos da cidade, vindo a ser ocupada somente em fins do século XIX, com o surgimento das favelas, devido ao aumento do contingente de imigrante pobres do sertão. 



Com Fortaleza apontando como centro político-econômico do Estado, ela passa a despertar o interesse da elite cearense para a fixação de moradia. A urbanização de Fortaleza é também favorecida pela vinda dessa elite, pois com ela surge a necessidade de melhorias infraestruturais e de serviços na capital. 

Percebe-­se o incremento de equipamentos urbanos em Fortaleza, como a construção de um novo cemitério, a criação da Academia Francesa, a iluminação a gás carbono, entre outros. Surge também a Planta Topográfica de Fortaleza e Subúrbios, de autoria do engenheiro Adolfo Herbster. Integrante da diretoria de obras de Pernambuco, Herbster é cedido ao Governo Provincial do Ceará em 1855, sendo contratado pela municipalidade fortalezense. Dois anos depois, sendo solicitado para a elaboração de plantas da cidade. O urbanista traça um plano urbanístico de desenvolvimento para a cidade, dado pela necessidade de expansão àquela época, devida o aumento de sua população, que passa de uma população estimada em 1500 habitantes em 1800, para 16000 habitantes em 1863 e a 21872 em 1872. 


A referida planta possui um traçado xadrez com grandes boulervards, imitando o modelo parisiense implantado pelo Barão de Haussman, e já idealizado para as ruas da capital cearense cinquenta anos antes de Herbster, por Silva Paulet
Além de retratar a cidade, Herbster propôs sua expansão, elaborando cintas de avenidas, circulando o espaço urbano habitado, configurados através dos boulervards do Imperador, Duque de Caxias (logo prolongada para leste), e da Conceição (atual Avenida Dom Manuel), que comporia as vias de acesso à cidade, estabelecendo um modelo secção de vias urbanas em voga até os dias atuais. Dessa forma, percebe-­se que Herbster desprezou o arruamento proposto por Simões de Farias em 1850, evitando cortar o Pajeú em trechos centrais, já ocupados por residências. 


A proposta de expansão de Fortaleza por Herbster fez-se, portanto, pela continuação da Avenida Duque de Caxias, atual Avenida Heráclito Graça. Essa solução visava contornar o riacho cruzando pela Avenida Dom Manuel e suas paralelas, em trechos já distantes da foz. 

Essa nova proposta de expansão da cidade para o sul e para o leste, reforçava o desinteresse de fixação de moradia na faixa de praia pela classe abastada. Nesse período, algumas das mais importantes edificações da cidade foram se instalando próximo ao Forte de Nossa Senhora da Assunção. O Passeio Público, a Santa Casa de Misericórdia, a Penitenciária e a Estação da Estrada de Ferro terminaram por formar uma barreira entre a cidade e o mar, afirmando o desinteresse de uma possível urbanização do litoral. O acesso à praia tornava-­se mais difícil, já que somente o Passeio Público tinha suas vistas voltadas para o mar. É importante ressaltar que mesmo com o Passeio Público estando voltado em direção ao mar, isso não leva a crer numa possível tomada de consciência da sociedade para o mar, já que o andar em que se encontrava mais próximo da praia era reservado aos pobres e miseráveis (o Passeio Público possuía três andares representados pelas classes sociais da época). 




O desinteresse dado pela faixa praiana fortalezense resultava na distribuição de serviços insalubres instalados próximos à zona costeira, como o velho Paiol da Pólvora, o Gasômetro, dos tempos da iluminação a gás (1867), a Santa Casa de Misericórdia, bem como o depósito de lixo da cidade. O espaço entre o mar e essas edificações, passou a ser ocupado pelo comércio de exportação, próximo ao desembarcadouro e o Arraial Moura Brasil, formado pela população sertaneja foragida da seca. 



Nesse contexto, é criado o Código de Posturas, vindo em confluência com as preocupações de ordem higienistas e urbanísticas que tinham por objetivo salvaguardar o decoro, a moral e os bons costumes dados à explosão demográfica decorrente do êxodo rural naquele período. Essa legislação reforçava o desinteresse pela zona de praia, ao afirmar, por exemplo, a regulamentação de que os dejetos fecais não poderiam ser despejados nas ruas, mas sim na Praia do Porto das Jangadas, denominação antiga da Praia de Iracema

Tornava-se evidente o desinteresse do litoral por parte da elite da cidade, de natureza interiorana. Mesmo com os discursos médicos afirmando dispor o litoral fortalezense de excelentes condições climáticas para o tratamento de doenças respiratórias, os abastados ainda não se voltavam para o mar.



Fontes: A cidade e o mar: considerações sobre a memória das relações entre Fortaleza e o ambiente litorâneo - Fábio de Oliveira Matos. 
DANTAS, Eustógio Wanderley. Mar à vista: estudo da maritimidade em Fortaleza. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 2002. 
BARROSO, Gustavo. Terra do sol: natureza e costumes do Norte. Rio de Janeiro: Benjamim Aguila, 1912.  
LINHARES, Paulo. Cidade de água e sal: por uma antropologia do litoral do Nordeste sem cana e sem açúcar. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1992.

quinta-feira, 21 de março de 2019

Bar do Anísio - Parte III


Beira-Mar, de Ednardo

Na Beira-Mar, entre luzes que lhe escondem
Só sorrisos me respondem
Que eu me perco de você
Você nem viu a lua cheia que eu guardei
A lua cheia que eu esperei
Você nem viu, você nem viu
Viva o som, velocidade
Forte praia, minha cidade
Só o meu grito nega aos quatro ventos
A verdade que eu não quero ver
Na Beira-Mar, entre luzes que lhe escondem
Só sorrisos me respondem
Que eu me perco de você
E o seu gosto que ficando em minha boca
Vai calando a voz já rouca
Sem mais nada pra dizer
E eu fugindo de você
Outra vez me desculpando
É a vida, é a vida...
Simplesmente, e nada mais
E um gosto de você que foi ficando
E a noite, enfim findando
Igual a todas as demais
E nada mais.


Fachada do bar do Anísio. Acervo Roberto Aurélio

A namorada de Ednardo, à época, costumava reclamar dizendo que ele trabalhava e estudava muito e, por isso, “não comparecia” ao relacionamento. Ele respondeu dizendo que faria uma canção para ela, como pedido de desculpas. O resultado é a romântica Beira-Mar, uma declaração de amor que, na realidade, foi uma maneira de se “livrar de uma suja”, como o próprio músico disse em reportagem publicada pelo jornal O Povo no dia 17 de abril de 2005.


Ao lado: Anísio sentado. Marisa abraçando a “Pingo”*, outra frequentadora do bar. Acervo da família


A verdade é que, além de declaração à namorada, Beira-Mar é uma homenagem à praia de todos os dias, à vista que se tinha do Bar do Anísio. ComoBeira-Mar, outras canções eram apresentadas na varanda do Anísio – espécie de primeiro palco dos jovens compositores. Raimundo Fagner, em entrevista ao jornal O Povo, no dia 11 de abril de 2004, revelou que as primeiras músicas que compôs com Belchior começaram ali, no bar. Fagner era um dos mais novos do grupo – três anos a menos do que Belchior – e não frequentava o bar de forma assídua como os outros. “O Fagner não era muito da noite nessa época não. Ele ia às vezes de dia, no fim de semana”, rememora Fausto. Mas, ainda assim, muitas composições de Fagner foram feitas e/ou apresentadas no Anísio. Afinal, ali estavam as grandes promessas da música cearense da época.

As mesas do bar falavam por si. A letra de “Cavalo Ferro” foi feita de uma sentada só, por Ricardo Bezerra e Fagner em uma noite no local. “O violão estava sempre na mão. Já burilávamos poesia e dávamos vazão à arte”, sintetizou Ricardo Bezerra. (Trecho da reportagem publicada no jornal O Povo, no dia 11 de abril de 2004)

Ricardo Bezerra também era estudante de Arquitetura na UFC (como Fausto e Brandão) e compunha músicas em parceira com os colegas de curso, e também com Augusto Pontes, Rodger e, principalmente, Fagner. Cavalo Ferro é uma das composições de maior destaque da parceria de Ricardo com Fagner.



Cavalo Ferro, de Fagner
com parceria de Ricardo Bezerra

Montado num cavalo ferro
Vivi campos verdes, me enterro
Em terras trópico-americanas
Trópico-americanas, trópico-americanas
E no meio de tudo, num lugar ainda mudo
Concreto ferro, surdo e cego
Por dentro desse velho, desse velho
Desse velho mundo
Pulsando num segundo letal
No planalto central
Onde se divide, se divide, se divide
O bem e o mal
Vou achar o meu caminho de volta
Pode ser certo, pode ser direto
Caminho certo sem perigo, sem perigo
Sem perigo, sem perigo fatal.

A música é, dentre outras e muitas interpretações possíveis, uma explosão de juventude. Achar-se-á o caminho, certo ou não, direto ou não, e, ainda por cima, sem perigo fatal. O importante é seguir pulsando e montando num cavalo ferro em busca do que ainda não se sabe. Esse era o espírito de Fagner, Ricardo e tantos outros que se permitiam sonhar nas mesas no Anísio.
Outro dos grandes parceiros musicais de Fagner era Belchior. Este, que fora colega de classe de Fausto Nilo e, posteriormente, tentou seguir a vida eclesiástica, mas logo desistiu para voltar à companhia dos amigos boêmios.
Juntos, Fagner e Belchior compuseram canções memoráveis. Dentre elas, a belíssima Mucuripe. A música foi tocada pela primeira vez por Belchior no Bar do Anísio, numa noite estrelada. Na letra, observa-se claramente a imagem que se via (e se sentia) das mesas do bar: velas, pescadores, mar, vento e estrelas. Vista que inspirou e embalou a juventude desses e de tantos outros frequentadores do Anísio.


Mucuripe, de Belchior e Fagner

As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vão levar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar
Hoje à noite namorar
Sem ter medo da saudade
Sem vontade de casar
Calça nova de riscado
Paletó de linho branco
Que até o mês passado
Lá no campo inda era flor
Sob o meu chapéu quebrado
Um sorriso ingênuo e franco
De um rapaz moço encantado
Com vinte anos de amor
Aquela estrela é bela
Vida vento vela leva-me daqui
Aquela estrela é bela
Vida vento vela leva-me daqui.

No trecho “Vida, vento, vela leva-me daqui” evidencia-se a vontade latente de se ir embora (como emCarneiro, de Ednardo), de buscar e encontrar novas perspectivas em outros ares, mais ao sul. Quem sabe lá, distante do provincianismo alencarino, fosse possível afundar as mágoas e sorrir, mesmo que ingenuamente.
Entre uma música e outra, as noitadas na Beira-Mar eram, muitas vezes, interrompidas por uma tradição da época, também musical: as serenatas. Nos anos 1960 e 1970, os prédios ainda não eram maioria na cidade, sendo possível cantar para as namoradas ou mesmo surpreender uma paquera e conquistar corações no meio da madrugada.
Grande parte dos frequentadores do Anísio eram músicos, futuros músicos ou aspirantes a cantores. Ou seja, todo mundo participava das tais serenatas, nem que fosse apenas para apoiar um amigo apaixonado. Patrícia*, amiga de Annuzia e de Maria Zélia, era lésbica. Se a homossexualidade ainda é vista, nos dias de hoje, com bastante preconceito, pode-se imaginar como era nos anos 1970. Muitos homossexuais tinham medo de se assumir em determinados ambientes, principalmente aqueles mais conservadores que se apresentavam hostis.
Ataliba em pé de óculos. Um dos inimigos do ritmo sentado, com o violão. Acervo da família.

Ao lado: Da esquerda para a direita: Maria Zélia, Airam, Annuzia, Mineiro* sentado e os Inimigos do Ritmo. Não se sabe quem são os outros homens. Acervo Maria Zélia.

Mas no Anísio não havia essa atmosfera de repressão. Pelo contrário, ali cada um podia ser e agir como bem entendesse. Patrícia, nos primeiros dias de frequentadora do bar, ainda não se “assumia”Foi dizer-se lésbica depois, talvez ao perceber que ali, sim, estava segura.
Mudou inclusive a maneira de se vestir, ficando mais à vontade para usar as blusas do pijama, como gostava de fazer.
Certa vez, ela levou Annuzia e Maria Zélia para ajudarem-na a fazer uma serenata para a namorada à época. Para acompanhá-las no violão, as meninas chamaram os Inimigos do Ritmo. As três passaram no Anísio e “botaram” os irmãos dentro do carro para irem todos juntos à serenata.

A gente comprou um violão pra eles. Era muito legal. A gente ia fazer serenata na puta que pariu e eles iam com a gente. Tudo eles faziam pra gente. (Maria Zélia)

Já no caso dos rapazes era mais fácil, pois a maioria já sabia tocar algum instrumento. Não era preciso “laçar” violeiros para compor a banda. Eles próprios se reuniam e formavam uma espécie de conjunto musical. A serenata tornava-se uma espécie de show particular.
Flávio se lembra de que, nessa época, Rodger tocava contrabaixo na banda do padrasto. Assim, os amigos se relacionavam com todos os músicos do grupo. As serenatas que faziam, portanto, eram de “primeira grandeza”. “Era o melhor pianista da cidade tocando escaleta
(instrumento de sopro e teclas). Serenata de alto estilo, menina! De qualidade”, conta Flávio.


Esquerda para direita: Elizete*, Marisa com o copo na mão, abraçando Anísio (sentado) e “Pingo”. Acervo da família.

Na lembrança de Rodger, porém, as serenatas eram feitas apenas com voz e violão. “Eu fazia muitas. Aliás, eu comecei a me soltar mais fazendo serenata”, lembra-se, divertido. Poucos rapazes tinham carro próprio. Por isso, na maioria das vezes, Flávio era o motorista.
Primeiro, no fusquinha. Depois, ganhou do pai uma Kombi que logo se transformou no transporte oficial dos amigos.


À esquerda, Isabel Lustosa de cabeça baixa. Ao lado de Isabel, a jornalista Ângela Borges. Na cabeceira, Cláudio Pereira. Todos no Anísio. Acervo Roberto Aurélio.

Cabia uma turma enorme, né? (risos) Então a gente comprava um balde, isopor de gelo, tirava aquele banco do meio e a Kombi era um bar. Era cheio de rum, coca-cola, gelo. E cabia todo mundo! Aí eu era o transportador oficial da turma. (Flávio)

Guto Benevides também adorava fazer serenatas. Desenrolado e sociável, o jovem chamava cantores de outros estados, que vinham a Fortaleza se apresentar, para o acompanharem nas tais serenatas. Na época, Guto já trabalhava no jornal O Estado e tinha uma coluna intitulada Curtição do Guto. Assim, estava sempre em contato com os artistas que passavam pela cidade.

Cauby Peixoto, Altemar Dutra. A gente convidava eles [sic] para beber. Depois, parava o carro na casa da namorada e pedia pra eles cantarem uma música. Elas abriam a janela ou davam sinal: acendiam a luz e apagavam. Aí todo mundo ficava feliz no outro dia. (Guto)

Casa do Pereira no início dos anos 1970. Acervo Roberto Aurélio.

Guto começou a frequentar o Bar do Anísio no início dos anos 1970. Acabara de ganhar um prêmio publicitário, por uma campanha que fez, e queria comemorá-lo. Foi, então, ao Anísio – que nessa época já era bastante conhecido – e disse: “Eu quero saber se tem alguém aqui pra beber até de manhã”. O alguém que levantou o dedo e disse “eu” era Cláudio Pereira. Iniciou-se, assim, uma grande amizade entre os dois, que passaram a virar noites no bar e a compartilhar brincadeiras etílicas e conversas, por vezes, sóbrias.

*Nomes fictícios


Crédito: Livro Bar do Anísio - Casa de Liberdades de Isabela Bosi - 2012
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