domingo, 17 de agosto de 2014

O transporte coletivo em Fortaleza - Entre 1945 e 1960 (Parte IV)




Os tramways de Fortaleza foram paralisados numa segunda-feira, 18 de maio de 1947, enquanto o capitão Josias* procurava solução para a crise da companhia inglesa junto com as autoridades no Rio de Janeiro. Findo o prazo de cinco dias, a empresa anunciou o prolongamento da suspensão dos bondes por mais alguns dias. Depois, publicou que precisaria de três meses para concluir os reparos na usina.

No final do mês de maio, as esperanças de que os bondes elétricos voltassem ao tráfego pareciam sepultadas, uma vez que o Ministro da Agricultura recomendara como prioridade manter-se o serviço de luz e força para a indústria de Fortaleza. Segundo o capitão Josias, isso só seria viável se a Light se dedicasse exclusivamente a ele.

Além disso, havia a forte possibilidade de ser suspensa a intervenção federal, legando a companhia à própria sorte. Por isso, o capitão Josias começou a montar uma engenharia de recuperação mínima. Visitou a embaixada inglesa, acertando a importação de um novo motor para substituir as caldeiras de força danificadas. Marcou audiência com o Presidente Dutra (Foto ao lado) para pedir-lhe uma subvenção e transformar a Light numa empresa de economia mista, com a participação de brasileiros e britânicos. Finalmente, calculou faturar mais de 800 mil cruzeiros com a venda dos trilhos aos ferro-velhos de Fortaleza, criando receitas para quitar as obrigações com os trabalhadores do tráfego.

Sem que as autoridades ensaiassem qualquer desfecho, durante junho e julho de 1947, os trabalhos para a recuperação do material da usina prosseguiam em Fortaleza


Nesse tempo, quem mais sofreu com a situação foram motorneiros e condutores. Há mais de um mês sem trabalhar, prejudicados pela postura titubeante do Governo e da direção da empresa, eles recebiam metade dos salários, sem perspectivas de retorno aos volantes ou de afastamento da Light para se engajarem em outra ocupação. Logo eles se reuniram no sindicato, lançando manifestos e apelando para a solidariedade das “demais classes 
cearenses no movimento que empreendem para serem tratados de maneira mais condigna”

A publicação das queixas nos jornais gerou réplicas da gerência da empresa, que argumentava que os salários de no mínimo Cr$ 12,20 eram mais elevados que o mínimo industrial da cidade.

Em 30 de julho, tanto patrões quanto trabalhadores já não acreditavam na retomada dos bondes elétricos, mas parecia certo que a Light arcaria com os custos das demissões ou ofereceria qualquer tipo de indenização aos empregados. Em entrevista à Gazeta de Notícias, o presidente do sindicato, seu Otávio Sebastião da Silva, desmentiu uma afirmação do capitão Josias de que fizera um acordo no qual os trabalhadores aceitariam receber somente 70% ou 75% das suas rescisões de contrato. Segundo ele, os operários “não desejavam indenização e sim trabalho, o que [significava] dizer que [poderiam] ser admitidos pela Companhia em qualquer serviço”.

De fato, os bondes não voltaram às ruas e o provisório se tornou definitivo. E não houve recolocação de pessoal no quadro da empresa. Ao voltar do Rio de Janeiro, o capitão Josias anunciou a demissão dos 311 operários do tráfego.

Sem emprego e com o dinheiro da indenização – que chegaria a cerca de Cr$ 3 milhões, eles pretenderam montar uma empresa de ônibus, como que antecipando o legado do transporte da Light à cidade. Seria a primeira empresa desse tipo montada exclusivamente por trabalhadores no Brasil



Se houve quem sentisse a falta dos bondes, foram poucos os argumentos defendendo sua superioridade em relação aos ônibus. Os defensores dos tramways não negavam o “estado lastimável em que se encontram os veículos da Ceará Light, que, em sua grande maioria, rodam ininterruptamente desde 1913, encontrando-se assim num estado de extremo desgaste”. Construíam um discurso benevolente, porque, na ameaça de vê-los fora de circulação, era possível declinar de algumas exigências. 


Bonde de tração animal passando entre o Colégio Jesus Maria José e a Igreja do Pequeno Grande. - Foto do Álbum Boris. - Arquivo Nirez

Espera-se na linha o veículo [bonde elétrico]. A demora não é deste mundo, porém, logo que o mesmo se aproxima, todos ficam satisfeitos na certeza que o pobre animal, embora cansado, conduzirá os passageiros aos pontos destinados.


Antigo bonde de tração animal

Os bondes estavam no afeto popular como símbolos da cidade antiga, que ainda ensaiava seus passos na modernidade. Representavam quase uma resistência silenciosa às tecnologias do segundo pós-guerra

Estou decepcionado, Vicente Roque, com o fato de vê-lo colocado na fila dos que não querem mais bondes na nossa velha cidade. Admira-se que você, um cronista popular, nascido no século XIX e amante das coisas velhas, das modinhas ao violão e das serenatas, das coisas, enfim, que o nosso tempo levou, não queira mais bondes, porque estes 
são velhos e desengonçados.


Bonde de tração animal puxados por burros,
implantado em 1880 em Fortaleza. Foto: Acervo Nirez

E se a suspensão do tráfego de bondes e a encampação da Light pela Prefeitura não foram alternativas às demandas das ruas, certamente responderam aos problemas internos da própria companhia, cuidadosamente esquadrinhados pelo capitão Josias Ferreira Gomes. Nesse sentido, foram evidências da superação do antigo modelo de exploração do transporte, tanto do ponto de vista da reordenação econômica dos serviços públicos quanto das novas relações entre os poderes públicos e sociedade depois do Estado Novo e das construções culturais de progresso. 

Em 01 de junho de 1946, é Decretada, pelo Governo Federal, a intervenção na Ceará Light, sendo nomeado interventor, o capitão Josias Ferreira Gomes. Fonte: Cronologia Ilustrada de Fortaleza - Roteiro para um turismo histórico e cultural - 2005 Autor: Miguel Angelo de Azevedo - Nirez 

O Fim dos bondes anunciado pelo Jornal Correio do Ceará, clique e leia:


Créditos: Patricia Menezes (Mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará). Dissertação: FORTALEZA DE ÔNIBUS: Quebra- quebra, lock out e liberação na construção do serviço de transporte coletivo de passageiros entre 1945 e 1960


domingo, 3 de agosto de 2014

O transporte coletivo em Fortaleza - Entre 1945 e 1960 (Parte III)


A retirada dos bondes 


Arquivo Assis Lima

Em 19 de setembro de 1946 o capitão Josias, seu Batista e o advogado da Ligth apresentaram pela primeira vez ao governo no Palácio da Luz um plano para suspender o tráfego de bondes em Fortaleza e salvar as finanças da companhia.
Os bondes já não serviam para a cidade e modelo de exploração estava esgotado. 
Restava garantir a continuidade do serviço de luz e cuidar para que os fortalezenses não pagassem a conta. 
Por outro lado, os apelos para a manutenção dos bondes sensibilizaram o novo interventor federal no Ceará, coronel José Machado Lopes, que, em resposta ao Memorial da Federação das Associações de Comércio e Indústrias do Cearáconsiderou que somente autorizaria a retirada dos bondes se a Light garantisse o transporte da população lançando mão de outra estratégia. Afinal, até então, “economia, eficiência e comodidade [eram] artigos que a Light reserva[va] exclusivamente para uso próprio”.



Vista de um postal de 1940 da rua Major Facundo - Arquivo Nirez

Se a suspensão dos bondes elétricos dividia opiniões, a ineficiência da Light em acompanhar o crescimento de Fortaleza era consensual. A cidade estava no caminho do progresso. Em breve atingiria a população de 200.000 habitantes e necessitava de mais bondes, mais linhas e da duplicação das que já existiam.
Os caminhos do Centro à Vila de Messejana e da Praia de Iracema ao promissor lugar do Mucuripe, onde estava sendo construído um porto, mereciam cuidados urgentes¹. Isso demandava recursos da concessionária – talvez por isso a sugestão do interventor José Machado Lopes em manter o novo transporte ainda sob a batuta inglesa não tinha agradado a opinião pública. 

Mas, infelizmente, a Ceará Light pouco ou nada liga ao progresso da nossa urbs. [...] parece primar em tratar-nos como se fôssemos povos coloniais, de civilização rudimentar e aspirações limitadas. [...] É o caso de perguntar-nos: quando nos veremos livres dessa malfadada companhia estrangeira que tão acintosamente abusa de nossa paciência?


Bondinho na Avenida Pessoa Anta - Arquivo Nirez

Em março de 1947, o governo brasileiro firmou contrato com a Inglaterracriando uma comissão mista com representantes dos dois países para avaliar as condições financeiras e as necessidades da empresa “Great Western da Leopoldina Railway e dos serviços de força, luz e bonde de Manaus, Belém e Fortaleza”, com interesse de nacionalizá-los.
Como de praxe, no dia 17 de março, o capitão Josias prestou contas ao Governador Faustino de Albuquerque sobre “a calamitosa situação em que encontra a Light”. Revelou que o governo inglês repudiara a proposta brasileira de ceder os capitais congelados em Londres para os reparos nas instalações em Fortaleza, o que dificultava ainda mais a gestão da empresa. Sem manutenção na usina, a cidade corria sério risco de ficar às escuras. Entretanto, o interventor acreditava que, em cerca de um ano, a Light estaria saneada, com a usina operando com óleo diesel e livre do oneroso serviço de transporte público. 


Serão muito provavelmente retirados de circulação os bondes da Light, com o que os fortalezenses ficarão privados do seu principal meio de locomoção, pois não se pode negar que assim é, malgrado a quase imprestabilidade dos antiquados tramways.

O transporte, mais que nunca, virara um tema indigesto. Tanto a disposição pública em nacionalizar os prejuízos da empresa quanto a retirada dos bondes inspirou a indignação popular. Os deputados estaduais enviaram um ofício para o governador pedindo informações sobre o futuro dos serviços de força, luz e transporte da Capital e sobre o destino da Light, recebendo como retorno respostas lacônicas


Bonde Soares Moreno

E, com a inglesa com os dias contados, os bastidores das suas relações com o governo passaram a ocupar os políticos da ocasião. Udenistas e pessedistas protestavam na tribuna da Assembleia Legislativa contra o descaso da companhia com a população. Bradavam opiniões contra a proteção especial que os governos reservavam à empresa, fazendo vista grossa aos compromissos contratuais, elevando tarifas e deslocando recursos públicos diretamente para a empresa. 

Confrontando dados estatísticos de 1920 e 1940, o deputado Valdery Uchoa fez ver que aquela empresa estrangeira continuava, numa data e noutra, com o mesmo capital empregado na sua usina e no seu serviço de transporte. Ao referir-se à encampação da Light, foi aparteado pelo deputado Barros dos Santos, que perguntou: 
- V. Excia. sabe quanto a Light tem do governo? Estou informado de que o coronel Machado Lopes entregou 2.000 contos do povo àquela companhia! 
Ouviram-se palmas.


Interior dos antiquados Tramways.

É provável que os motivos de tantas reclamações de políticos se fundamentassem no impacto que o tema causava nos humores do eleitorado. A aceleração da urbanização das maiores cidades brasileiras no período pós-guerra fez com que os problemas de transporte público se destacassem nas preocupações da ainda tímida mas relevante classe média urbana, usuária de ônibus e bondes. Isso chamava a atenção dos candidatos.²
A presença da falida companhia estrangeira em cada uma das principais artérias da capital exaltava os ânimos dos defensores do nacionalismo econômico. Os privilégios que outrora a Light tivera podiam ser identificados com a proteção inconsequente do período autoritário. Em 24 de maio de 1947, a Gazeta de Notícias publicou uma reportagem com a manchete: Nos tempos da ditadura - Quando reclamar contra a cobiça da Ceará Light era considerado crime contra a segurança do regime em que era denunciada a perseguição a um ex-deputado opositor da empresa.



Vista Parcial da Usina da Light

No meio do debate, em maio de 1947, a Light resolveu paralisar duas caldeiras da Usina de Força e Luz que estavam danificadas e em risco de explosão. A medida, aprovada pelo governador para evitar o colapso total dos serviços, acarretaria uma considerável diminuição da geração de energia e gerava um impasse contratual: 

Impõe-se uma medida urgente para o racionamento de energia [...] A Light não pode tirar os bondes de circulação por não ter com que pagar as indenizações garantidas aos operários pelas leis trabalhistas. O Estado, igualmente, não pode autorizar tal retirada porque consequentemente se responsabilizaria pela indenização decorrente da 
dispensa dos operários. Outrossim, a suspensão de energia para deixar os bondes em circulação traria uma crise muito maior pois a consequente paralisação da indústria traria desemprego [...] ao passo que uma crise transportes seria de mais fácil solução.
Outrora símbolos do progresso da Capital, os bondes eram, passados 35 anos de funcionamento, obstáculos ao desenvolvimento. Entre paralisar a indústria e enfrentar uma crise de circulação, anunciavam-se os problemas de transporte de Fortaleza que chegavam. A solução, como de costume, foi conciliatória e improvisada. No dia 17, o prefeito da Capital, Jorge Moreira da Rocha, o capitão Josias e a comissão de técnicos federais acordaram com o Governo do Estado um plano emergencial para garantir o fornecimento mínimo de eletricidade, estabelecendo reduções do uso nas indústrias, nas ruas e retirando os bondes de circulação provisoriamente por cinco dias.


¹“Em 24 de janeiro de 1948, a Empresa Iracema inaugura a linha Centro, da Praça Waldemar Falcão ao Cais do Porto, no Mucuripe, utilizando quatro ônibus mistos, para o transporte de cargas e passageiros”. O Porto do Mucuripe tinha um ramal ferroviário que o ligava à Parangaba desde 1941. ESPÍNOLA, Rodolfo. Caravalelas, jangadas e navios: uma história portuária. Fortaleza: Omni, 2007. 


Praça Waldemar Falcão

Ônibus da Empresa Iracema

² A constituição de 1946 excluiu o direito de voto aos analfabetos, legando à classe média, embora numericamente incipiente, um papel determinante nas escolhas políticas. Suas inclinações nacionalistas ligadas ao desenvolvimento e o processo de urbanização no segundo pós-guerra podem ser acompanhadas em SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo (1930 a 1964). Rio de Janeiro: Saga, 1969 e SAES, Décio. Classe média e sistema político no Brasil. São Paulo: TA Queiroz, 1985.  

Créditos: Patricia Menezes (Mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará). Dissertação: FORTALEZA DE ÔNIBUS: Quebra- quebra, lock out e liberação na construção do serviço de transporte coletivo de passageiros entre 1945 e 1960