sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

O Urbanismo de Nestor de Figueiredo - Parte II



Essa citação é lapidar em revelar o outro lado da cidade, a falta de rede de água e esgoto para os bairros mais pobres, o problema da seca, o isolamento dos bairros pobres da cidade com o centro, e o mais importante, que tipo de urbanização a prefeitura estava realizando? Abrir ruas e derrubar coretos resolveria os problemas da maioria da população? Sem falar na mudança na estratégia do governo, que agora reconhecia a necessidade de contratar um especialista, e pensar a cidade na sua totalidade. É importante frisar que o projeto de urbanização do Estado, não mudou o seu foco central, separar os bairros pobres dos ricos, visando um maior controle da população e uma melhor circulação de mercadorias. Não obstante, os caminhos a serem percorridos sofriam constantes alterações, e não dependiam apenas dos desejos e anseios do prefeito ou de qualquer estadista.

Destarte, não se pode exercer o controle total da cidade, embora seja esse o intuito do urbanismo. Como dito no post anterior, esse urbanismo também tem como função homogeneizar os espaços, modelar as relações sociais heterogêneas, obliterando as características peculiares dos espaços sociais. Todavia, o projeto urbanístico de Nestor Figueiredo não é tão diferente dos projetos anteriores, na medida em que adota padrões eurocêntricos, mantém o traçado xadrez, e legitima as desigualdades sociais materializadas nas formas espaciais dos bairros, centro em oposição às periferias.


Vista aérea da cidade na década de 30. Nirez
Existia uma abissal diferença entre o discurso de urbanização do governo, e as práticas desenvolvidas na cidade. Um caleidoscópio quase infinito de problemas sociais norteava a capital, na mesma época em que a prefeitura inaugurava as praças e os equipamentos modernos. As reformas materiais da cidade se limitavam ao perímetro central, lócus por excelência do comércio e desenvolvimento do capital. O crescimento desordenado tinha endereço, os subúrbios, bairros que se erigiram na lógica da necessidade, próximo às linhas de trem, Porto e as fábricas. O Centro não poderia ser afetado por essa “desordem”, daí a necessidade de centralizar o poder e pensar a cidade na sua dinâmica total. Não obstante, em que medida se pode falar de um crescimento desordenado, se a separação do centro dos bairros mais pobres se manteve durante o período, e o traçado em xadrez permanece até os tempos hodiernos. O termo desordenado transmite uma impressão de que a urbanização de Fortaleza foi feita ao caso, sem a presença efetiva do Estado e frações capitalistas, como fosse resultado apenas de um aumento demográfico oriundo da seca de 1932. O plano urbanístico que tinha como meta racionalizar o caos, só se justificava por sua presença. E, aos olhos de muita gente não parecia viável, principalmente pelo alto custo, e por ter questões de primeira ordem, alicerçares para serem resolvidas antes.

O projeto em perspectiva, por mais perfeito agacemente falando, não fará muita coisa além do que já está feito, precisamos falar claro. Ademais, mesmo com as rendas assegurada do Matadouro- nova fonte de receita de vulto, para o município- essa despesa nos parece que bem poderia ser evitada. Não porque não a possa fazer a prefeitura, mas porque há serviços que estão reclamando mais urgentes providências para a sua realização. Neste caso vem em primeiro plano o calçamento. Temos ruas centrais já sem uma pedra; praças em idênticas condições e outras calçadas, mas em tal estado que melhor fora não o fossem, o que dá a impressão, ante o concreto das vias centrais, de assemelhar Fortaleza a uma girl de sapatos Lis XIV. [...] Não queremos condenar a tal urbanização. Achamos apenas que, com os nossos, é um tanto cedo para se tratar disto. (IDEM, 29/12/1933 p. 03).

Planta de Fortaleza em 1932 - Ano de seca.
A precariedade da urbanização, e das obras erigidas durante o ano desacreditava um setor da imprensa, que achava primordial resolver os problemas centrais de moradia, calçamento, rede de abastecimento de água, que causou enorme transtorno em 1932, e persistiu em 1933, mesmo com a o advento das chuvas. As epidemias de doenças que se espalhavam na cidade, como lepra, alastrim, varíola, tuberculose, etc, os acidentes de trabalho, tudo isso se propagava numa imensa velocidade, com o aumento das obras, os diversos casos de saques em lojas, casa e prédios, os acidentes de trânsito, que não eram mais raros, e diuturnamente faziam vítimas estampando as páginas dos periódicos. Neste sentido podemos falar de caos e desordem, mas que não foi uma peculiaridade da urbanização de Fortaleza.

A Fortaleza dos fícus Benjamin em 1932.
A produção capitalista do espaço se baseia na distribuição assimétrica da riqueza, pois tem como essência a manutenção da propriedade privada. O projeto do governo, orquestrado por Nestor Figueiredo, não poderia fugir desse axioma. A centralização da prefeitura na perspectiva de criar um plano que projetasse o crescimento da cidade estava pautada na administração dessas desigualdades, jamais na sua solução. Todavia, o projeto não sai do papel, provavelmente devido ao seu custo operacional. O governo ainda cria uma subcomissão para executar o plano, reunindo quase todas as lideranças da prefeitura, com o apoio da interventoria, e sob a liderança do engenheiro, mesmo assim não vai adiante.

Vista aérea parcial do Benfica num raro cartão postal dos anos 30, com destaque para a
Avenida da Universidade à direita. Acervo Marcos Siebra
Apesar do plano urbanístico não ter se materializado no sentido como foi pensado, nas cláusulas do artigo do contrato, não podemos compreender Fortaleza na década de 1930 sem a sua intencionalidade, e como principio “educativo” para as administrações posteriores. A cidade não poderia ser construída por forças “naturais” do acaso e da aglomeração, os ricos não poderiam pleitear o seu sono na morada dos pobres, residências, comércio e indústria, são coisas diferentes e deveriam, por conseguinte, habitar espaços diferentes, o centro deveria ser tomado como prioridade urbanística, a circulação de mercadorias é tão importante quanto a circulação de capitais.
Em linhas gerais, esses conjuntos de fatores que ilustraram a cartilha de Nestor Figueiredo definiram, em boa medida, a morfologia espacial de Fortaleza na década de 1930. O fato do plano não ter sido aplicado de uma vez, como uma racionalidade matemática que tenta planificar e padronizar tudo, não retira a importância do sentido da urbanização que estava sendo implantada no período, que tinha por objetivo efetuar mudanças espaciais para deixar tudo exatamente como estava a cidade era pensada como uma reta, porém, mesmo o Estado, mais centralizado, não tinha o poder de definir quem andaria e “entortaria” essa reta.


Leia também:
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A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
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Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.


Fonte: http://memoria.bn.br

domingo, 7 de janeiro de 2018

O Urbanismo de Nestor de Figueiredo


Plano Nestor de Figueiredo. Arquivo FbioMatos
É linguagem comum falar de um crescimento desordenado do espaço urbano de Fortaleza a partir da década de 1930. Em grande medida, contribui para essas análises a explosão demográfica causada pelas secas, em especial, a seca de 1932. Porém, não se analisou até que ponto essa urbanização foi realmente desordenada. Não havia planejamento do estado? E se havia planejamento, em que medida foi eficiente? Qual foi o papel que o urbanismo exerceu nesta urbanização?
Jornal A Ordem - 22/04/1933
A tentativa de traçar um plano urbanístico para Fortaleza data de meados do século XIX, com o plano em xadrez de Silva Paulet, e depois em 1875, com ampliação do traçado em xadrez por Adolfo Hebster, influenciado pelas reformas do Barão de Haussmann, na França, contornando o centro comercial com um conjunto de avenidas chamadas de Boulevards. De acordo com Castro (1977, p. 30), “o plano em xadrez está intimamente ligado a objetivos colonizadores ou de expansão urbana. Era o traçado helenístico por excelência, empregado por Alexandre, o Grande, nas cidades recém-criadas em seu vasto império. Era o traçado da colonização romana, introduzida algumas peculiaridades”. Não obstante, a perspectiva de se estabelecer um plano urbanístico continua na década de 1930, especialmente após a seca de 1932, sendo, inclusive, criado um conselho consultivo para desenvolver um plano de urbanização para a capital. “O conselho consultivo em sua sessão de ontem deliberou acerca da consulta feita pelo Sr. prefeito municipal sobre o projeto de urbanização da cidade a ser contratado pela prefeitura com o engenheiro Nestor de Figueiredo”. (O NORDSTE, 12/07/1933 p. 01). Todavia, o conselho não se mostrou favorável ao plano de urbanização apresentado pelo arquiteto Nestor de Figueiredo, dando o seguinte parecer:

Nestor de Figueiredo
De todo o exposto, resulta que sem negar a necessidade de retoques e ampliações no plano atual de desenvolvimento de Fortaleza, discordo todavia da conveniência de uma obra geral de reforma do mesmo plano, com o caráter amplo e suntuário que necessariamente teria o projeto do engenheiro Nestor Figueiredo. [...] Julgo que as necessidades urbanas, determinadas pelo crescimento da cidade, as modificações que acima aludi à conveniência enfim de disciplinar esse crescimento, poderá ser atendida gradativamente, sem dispêndios extraordinários e onerosos pela própria Secretaria de Obras e Viação da prefeitura. [...] Toda questão está naturalmente em aparelhar esse departamento de recursos necessários, provendo-o dos meios para a elaboração desse plano- o que se deve ir fazendo gradualmente, a medida das reais necessidades de Fortaleza, de acordo mesmo com a mentalidade ambiente e na proporção, o que é essencial, dos recursos econômicos normais do município. (O NORDESTE, 12/07/1933 p. 01).

Jornal A Razão de 09 de setembro de 1936


Continuação. Jornal A Razão de 09 de setembro de 1936

Final. Jornal A Razão de 09 de setembro de 1936
Existiam, portanto, dois projetos de controle do crescimento da cidade. Um projeto elaborado por Nestor de Figueiredo, que pensava numa reforma mais radical, de investimentos mais vultosos, para uma reforma geral da urbe. E, num sentido diametralmente oposto, o plano defendido pelo conselho consultivo, que deveria ser executado pela própria Secretaria de Obras do Município, tendo como prioridade mudanças gradativas de acordo com os recursos econômicos do Estado, em outras palavras, sem gastar muito dinheiro com as reformas. Porém, o que havia de similar em ambos os projetos, era o reconhecimento de “disciplinar” o crescimento urbano. A cidade tinha que ser apreendida por uma racionalidade instrumental, não poderia ser deixada ao fluxo espontâneo da desordem provocada pelo aumento populacional. Esta era a tarefa do “urbanismo”, padronizar a cidade, dirimir sua heterogeneidade, considerada como uma contradição. Como o urbanismo conseguiria resolver.

Foto aérea de meados da década de 30, vendo-se o Parque da Liberdade.
O projeto de Nestor de Figueiredo se enquadra numa tentativa de ordenar a cidade, da aplicação de uma lógica industrial e evacuação da “racionalidade urbana”. Porém, ele é apresentado travestido de uma couraça reluzente que chega a ofuscar os seus objetivos.

Realizou-se ontem na sede da prefeitura municipal, a anunciada exposição do plano de urbanização de Nestor Egídio Figueiredo. [...] Começou tecendo algumas referências ao alcance e responsabilidade desse contrato, que devia ser mais uma obra de previsão que de momento. Discorreu sobre o urbanismo, analisando-o sua existência na antiguidade, no seu colapso na idade média, e em seu recente ressuscitamento no século passado, novamente preocupado com os planos urbanísticos. Explicou aos presentes como esses planos devem obedecer não somente a técnica pura, mas também ao lado emocional, poderíamos dizer, romântico, de acordo com a psicologia dos povos habitantes das diversas cidades. Para o plano de urbanização de Fortaleza, havia a considerar, portanto, estes dois lados igualmente importantes e necessários. Seus habitantes têm sentimentos morais próprios, que constituem um delicioso motivo de beleza coletividade cearense. (A RUA, 20/12/1933, p. 03).

Vista aérea do Centro nos anos 30. Arquivo Nirez
Figueiredo tem consciência do papel que o urbanismo exerce na remodelação de uma cidade. Não é por acaso que no seu discurso ressalva a importância dos sentimentos, valores morais, e costumes dos seus habitantes, pois o urbanismo age exatamente no sentido oposto.
A exposição do plano urbanístico continua, salientando que “o plano urbano deve presidir sempre o critério de previsionar, isto é, impedir males futuros. A utilidade pública está acima da obra de luxo. As cidades de hoje apresentam estas falhas que obstam a expansão e a formação de uma futura cidade”. (A RUA, 20/12/1933 p 01). O traçado da cidade continuaria na linha desenhada por Paulet, Boticário e Hebster, porém ampliando o perímetro e a sua dimensão global. Não apenas a divisão das ruas seria levada em consideração, mas um conjunto amplo de fatores. Observamos melhor as características do plano, nas suas cláusulas contratuais, que define como seria desenvolvido o projeto.

1 Parte- Análise da aglomeração nos seus múltiplos aspectos no tempo e no espaço de acordo com os pontos de vista físico, geológico, hidrogeológico, geográfico, hidrogeográfico, meteorológico, histórico, social, econômico. 2 Parte- Elaboração do plano em cartas, quadros sinópticos, etc. 3 Parte- Organização do plano diretor que deverá compreender a ossatura do plano, os meios de transporte e zoneamento, organização do comércio varejista, bairro industrial e zona do porto, localização dos bairros residências, determinação dos espaços verdes, gabaritos, legislação e regulamento, estudo de uma legislação especial do plano diretor com conexão com o código municipal de construções. O plano geral para o desenvolvimento sistemático da cidade atende a uma população de 250 mil habitantes. (O NORDESTE, 20/12/1933 p 01).

Vista aérea do final da década de 30.
As partes do contrato mostram a dimensão do plano urbanístico. Tratava-se de um projeto para a cidade envolvendo aspectos econômicos, sociais, políticos, estudos geográficos, geológicos, hidrogeográficos. A capital foi pensada na sua estrutura global, pois havia separação de bairros industriais dos residenciais, organização do comércio varejista, do sistema de transporte, criação de uma legislação própria em conexão com o código de construção do município, análise das aglomerações, que na época já se tornara um problema, e, por fim, uma projeção para o futuro, pois o plano tinha como base atender uma população de 250.000 habitantes, ou seja, o dobro da população do período¹.
O projeto de Nestor de Figueiredo sofreu muitas críticas, dentre um dos motivos, o fato de pensar em 250.000 habitantes, sem levar em consideração a realidade financeira do município. No contrato, ficaram acordados que a prefeitura pagaria o valor de 120.000$ ao engenheiro, em cinco prestações. Além do valor da obra em si, que pela vultuosidade do projeto, envolvendo desde arborizações a separação de bairros, não se podia ter um número preciso do gasto. Uma crítica mais contundente analisava os principais problemas sociais da cidade, destacando-os como prioridade, em detrimento de um projeto, que além de custar caro para a população, não resolveria as dificuldades dos que mais necessitavam de urbanização.

Fortaleza em 1937
¹A população do Brasil, no ano de 1933, foi estimada em 43.340.000 habitantes, tendo o Estado do Ceará, 1.800.000, e Fortaleza 126.000, a sétima cidade mais populosa na época. Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1934 confeccionado por João da Camara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 30. No ano de 1934, a população de Fortaleza teve um ligeiro aumento, passando para 133.066, tornado-se a oitava cidade mais populosa . Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1935 confeccionado por João da Camara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 140 à 144. Portanto, o projeto se balizava num crescimento futuro da cidade.


Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza

Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fonte: http://memoria.bn.br