domingo, 30 de junho de 2019

Fortaleza - Uma cidade colorida

Rua Almirante Jaceguai antes da intervenção
do Programa Cores da Cidade. Fonte Ofipro
O projeto Cores da Cidade em Fortaleza foi uma parceria entre o Governo do Estado, Tintas Ypiranga e Fundação Roberto Marinho e tinha como objetivo mobilizar e conscientizar a população para a preservação dos conjuntos urbanísticos das  principais cidades brasileiras e resgatar seu passado histórico
O programa foi implantado em áreas centrais de outras capitais como Curitiba, Recife e Rio de Janeiro


 Imóveis selecionados pelo Programa Cores da Cidade
No caso de Fortaleza, a Secretaria de Cultura do Estado indicou a intervenção em uma área que abrangia quase todo centro histórico. Porém, a Fundação Roberto Marinho decidiu por priorizar os galpões da Praia de Iracema de maneira a aproveitar o impacto do Centro Dragão do Mar sobre a áreaA área escolhida era limitada pelas  Avenidas Pessoa Anta, Almirante Jaceguai, José Avelino e a famosa Rua Boris, no entorno do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura


Edifícios ao lado do Dragão do Mar, antes e após a reforma pelo Cores da Cidade.
Fotos: Fausto Nilo (1995)/Sabrina Studart (2003)
Após a reforma
 Um total de 56 imóveis entre sobrados e armazéns típicos de regiões portuárias participaram da primeira etapa do programa. É necessário fazer uma crítica à seleção dos imóveis para o Programa Cores da Cidade por ter sido ignorado edifícios de grande valor histórico, arquitetônico e cultural - localizados a poucos metros do Centro Dragão do Mar – como a Igreja e Seminário da Prainha, Teatro São José etc. Apesar do arquiteto Francisco Veloso assumir este problema como um descuido da equipe do DEPAC, é condenável ignorar a entrada dos edifícios no programa.
Uma segunda etapa, entretanto, contemplaria as demais edificações também classificadas como relevantes, como a Igreja e o Seminário da Prainha e o teatro São José em um outro programa do Governo do Estado – o Projeto Fortaleza Histórica – que contemplaria quase todo o centro histórico. 

Além das fachadas pintadas, os prédios também tiveram seus interiores modificados. Os móveis foram transformados em bares e restaurantes. Foto Sabrina Studart (2003)

Rua Dragão do Mar
Os patrocinadores do projeto ficariam responsáveis por fornecer o material e a orientação técnica para a obra, enquanto os donos dos imóveis deveriam financiar a mão-de-obra para a execução. O escritório de arquitetura “Oficina de Projetos” foi selecionado pela Secretaria de Cultura para propor as reformas e acompanhar as obras nos imóveis. 


O arquiteto Francisco Veloso, chefe do DEPAC na época do projeto esclarece:

“As pessoas ficam perguntando assim: ‘mas essas cores eram originais?’ Não, foram feitas prospecções nessas edificações, foram detectadas suas cores originais. Originalmente, nós sabemos a limitação cromática era muito grande, você tinha 3 ou 4 cores e pronto. Hoje você tem uma infinidade de cores. Por outro lado, um dos grandes parceiros, talvez o maior parceiro deste projeto foi a AkzoNobel que é uma multinacional da Tintas Ypiranga. Nada mais justo que ela fizesse daqui um grande show-room do seu produto. Competiu aos arquitetos daqui buscar uma proposta cromática que destacasse essas edificações, que valorizasse seus elementos arquitetônicos e fosse harmonioso. Quanto a ser a cor original, ai, a gente entra nesta analogia. Amanhã ou depois as edificações podem ser pintadas com outras cores”.

Antes e depois do Programa Cores da Cidade.
Foto 1: Linda Gondim (1998)
Foto 2: Sabrina Studart (2002)
Sobre o encaminhamento do projeto em Fortaleza, os arquitetos do “Oficina de Projetos” afirmam:


“O primeiro passo dentro da metodologia a ser aplicada foi conhecer a história do lugar, suas transformações, evolução arquitetônica, seu contexto e o repertório da cidade onde foi gerado este conjunto. Iniciou-se o trabalho com a elaboração de um inventário arquitetônico e de deterioro para cada imóvel com preenchimento de fichas catalográficas para criar um banco de dados. Nestas fichas, se anotaram as caraterísticas morfológicas de cada edifício, dos seus elementos compositivos e se executaram prospecções em alguns pontos pré-determinados para garantir as hipóteses sobre algumas das alterações. Foram executados prospecções estratigráficas que nos revelaram as cores originais, que nortearam de forma inequívoca o nosso projeto”.

A partir destas informações, uma série de desenhos foi apresentada aos proprietários que se encarregaram de executá-las. Sobre a escolha das cores nas fachadas dos edifícios, o escritório ainda afirma que seus critérios levaram em conta quatro aspectos: fator estilístico (códigos de construção de cada época, lugar ou estilo), pesquisa arqueológica, uso e o contexto urbano atual. Mas revelam:


Galpões vizinhos ao Dragão do Mar.
Antes e depois da reforma.
 Ao fundo, edifício Casa Boris.
Fotos: Fausto Nilo (1995)/Sabrina Studart (2002)

“Além dos fatores técnicos, estéticos e históricos, outro fator importante que determinou em muitos casos a escolha das cores de cada imóvel foi o desejo e a opinião de cada proprietário, ou inquilino. Tendo em conta todos estes elementos decidimos que deveríamos optar por cores fortes,  jogando com a possibilidade que nos permite a ampla gama das tintas Ypiranga e manter uma coerência cromática, mas sem purismo mal entendido, já que as cidades históricas, incluindo-se o centro de Fortaleza, foram dotadas de uma sutil e vibrante policromia. Tratamos de criar uma gramática da cor, para dar esplendor a sua linguagem.

 A partir de fotografias antigas, os arquitetos propuseram a recomposição de elementos decorativos das fachadas com desenhos e utilizaram reboco com cal para refazê-los.  As práticas de intervenção utilizadas nesta área da Praia de Iracema são polêmicas e podem levantar algumas discussões. Os arquitetos assumiram que se deveria optar pelas possibilidades oferecidas pelas técnicas modernas, quando optaram pela escolha das cores, mas escolheram recompor os elementos arquitetônicos, sem os diferenciar dos originais. Já esclarecia a Carta de Veneza em seu artigo 12º que “os elementos destinados a substituir as partes faltantes devem integrar-se harmoniosamente ao conjunto, distinguindo-se, todavia, das partes originais a fim de que a restauração não falsifique o documento de arte e de história(IPHAN, 1995: 111). Todavia, nestes edifícios não é explicita a diferenciação entre o que foi reconstruído e o que sofreu restauração. 
Vista à partir da rua Bóris em 2017.
Rua José Avelino antes e depois do restauro
promovido pelo Programa Cores da Cidade.
Fotos: Fausto Nilo (1995)/Sabrina Studart (2002)
Semelhante ao que ocorreu em outras cidades brasileiras, o resultado final do programa Cores da Cidade foi a recuperação parcial dos edifícios: enquanto as fachadas foram pintadas e seus elementos ornamentais recompostos, os interiores permaneceram degradados. Cada proprietário ficou encarregado de intervir em seu edifício da maneira que desejasse e, em muitos casos, os imóveis sofreram fortes intervenções que acabaram por descaracterizar o aspecto original de seus interiores. Em alguns deles, foram criados mezaninos ou mesmo vários andares – aproveitando os altos pés direito dos imóveis – com diversos desenhos arquitetônicos e estruturas de sustentação. 


É importante ainda informar que os proprietários não receberam nenhum tipo de benefício tributário, como ocorreu em outras cidades onde o Cores da Cidade atuou. Era ainda proposta do Programa Cores da Cidade sugerir a transformação dos usos nestes imóveis, mas isto não aconteceu. Muitos proprietários dos imóveis aproveitaram-se da supervalorização provocada pelas reformas do Programas e passaram a aumentar os preços dos aluguéis ou instalaram atividades mais lucrativas. 
Rua José Avelino. Foto de 2017

É relevante apontar aqui uma das recomendações das Normas de Quito:

“Da mesma forma, deve-se tomar em consideração a possibilidade de estimular a iniciativa privada, mediante a implantação de um regime de isenção fiscal nos edifícios que se restaurem com capital particular e dentro dos regulamentos estabelecidos pelos órgãos competentes. Outros desencargos fiscais podem também ser estabelecidos como compensação às limitações impostas à propriedade particular por motivo de utilidade  pública” (IPHAN, 1995: 141).

Fachada da Fábrica Myrian (Hoje boate Armazém) - Foto do Álbum Fortaleza 1931
Operários em frente a Fábrica Myrian (Hoje boate Armazém) - Foto do Álbum Fortaleza 1931
Boate Armazém depois do restauro promovido pelo Programa Cores da Cidade.
O Centro Dragão do Mar inseriu-se em quadras onde anteriormente existiam galpões e sobrados remanescentes do início do século XX, alguns dos quais se encontravam bastante descaracterizados. Depois de sua inauguração, o entorno do Centro Cultural passou a acolher novas atividades que contribuíram para consolidar a Praia de Iracema como o maior pólo de turismo de Fortaleza, mas também trouxeram problemas para o bairro: poluição sonora, visual, deficiência de estacionamento, entre outros. 

Foi realizado no mês de fevereiro de 2003 um levantamento geral do uso, ocupação e estado de conservação dos imóveis próximos ao Centro Dragão do Mar. O objetivo era entender até que ponto o complexo cultural exerceu influência sobre as edificações ao seu redor. Infelizmente, não foi feito nenhum levantamento semelhante, antes ou depois da implantação do centro cultural, pelos órgãos de planejamento municipal e estadual, outra instituição ou organização. 

Rua José Avelino
Ficou claro que a grande maioria dos imóveis que passaram por reformas recentes tinha participado do Programa Cores da Cidade. Poucas reformas ou intervenções aconteceram por iniciativa de proprietários ou locatários dos imóveis buscando aproveitar a nova dinâmica econômica da área.  Além disto, foi possível também constatar que grande parte dos edifícios reformados não acolhe funções relacionadas à produção cultural ou à habitação, mas passou a receber atividades voltadas ao lazer e turismo: lojas, restaurantes, bares, casas de espetáculos, entre outros. Foi possível ainda observar que muitos lotes ainda se encontram sem ocupação ou utilizados como estacionamentos privativos. 
Rua Dragão do Mar com Almirante Jaceguai
Diretamente relacionada à utilização destes imóveis para fins comerciais está o problema do uso quase que exclusivamente noturno. A área de entorno do Dragão apresenta fluxo intenso de pessoas no período de final de tarde até a madrugada. Durante os períodos do dia, a área encontra-se subutilizada, embora alguns galpões ainda funcionem como depósitos e gráficas.

Fausto Nilo defende que este é um problema que poderia ter sido resolvido com uma ação mais forte da Prefeitura após a implantação do edifício na área. Seu projeto de arquitetura, apesar do programa e da escala com que se inseriu na região, não teria como reverter este problema ou propor soluções numa escala urbana.

Avenida Almirante Tamandaré
“Isto ai (o planejamento da área de entorno do Centro Dragão do Mar) demanda um papel importantíssimo da Prefeitura, uma política que o Jaime Lerner chama de acupuntura urbana. Tem colegas meus que são contra isto, eles dizem que “ah, eu sou contra fazer obras isoladas”, “obra  pontual”, como se fosse possível numa cidade fazer obra que não seja  pontual (...) é preciso começar com alguma coisa.



 Autoridades relacionadas ao Governo do Estado e a Prefeitura Municipal por vezes admitem o problema, mas esclarecem que não podem agir sobre a área. Pádua  Araújo - diretor-presidente do Centro Dragão do Mar – afirmou:
“É certo que o processo de ocupação não está ocorrendo da forma como idealizamos no início. A dinamização de todo aquele trecho deveria ocorrer não só à noite, mas durante o dia, quando funcionariam ateliês de arte, estúdios fotográficos, livrarias, escritórios e equipamentos afins. Mas os imóveis vizinhos são privados, os proprietários podem alugá-los para qualquer tipo de negócio(O Povo, em 24/01/2001).

Rua Bóris com a Dragão do Mar
Teria sido ideal que os órgãos responsáveis da Prefeitura de Fortaleza, pensando no impacto urbano do conjunto, tivessem revisado a legislação que trata do uso e ocupação do entorno, buscando estabelecer funções que garantissem o aproveitamento da área também durante o dia, entre elas moradia e educação.


Rua Almirante Tamandaré com José Avelino
Ateliê de José Tarcísio

Outra grave consequência dessas transformações foi a forte especulação imobiliária que se impulsionou e expulsou uma parte dos antigos moradores e usuários do bairro. Aproveitando o novo sucesso comercial, proprietários de imóveis da região aumentaram seus aluguéis e abriram novos espaços destinados ao comércio e lazer. José Tarcísio, artista plástico e antigo morador da área, relata:

“Há mais de 20 anos moro e trabalho em um dos galpões do calçadão do centro cultural. Mas hoje a gente vive com a barba de molho. Tive 100% de aumento no aluguel do meu ateliê e vivo no meio de uma feira: as mesas e cadeiras dos bares invadiram o lugar dos transeuntes; cada um deles apresenta um tipo diferente de música ao vivo, às alturas, promovendo uma ensurdecedora cacofonia. (...) Isso preocupa o artista, que esperava ter ali um corredor cultural e agora está sendo progressivamente expulso da área” (jornal o Povo, em 24/01/2001).

Rua José Avelino

Rua Bóris com a José Avelino

O deputado estadual Paulo Linhares, secretário de cultura do Governo Estadual à época do projeto do Centro Cultural, defende que havia inicialmente um projeto que visava diminuir os efeitos desta especulação e manter as funções existentes antes da implantação do edifício. O chamado Projeto Quarteirão do Artista buscava desapropriar alguns imóveis adjacentes ao Dragão do Mar e estimular a presença de produtores culturais na área. Segundo Linhares, “A gente sabia que ia ter uma supervalorização daquela área e ia ter expulsão de pessoas. Infelizmente o mercado de arte e cultura ainda é frágil em relação aos outros, então a gente tinha que ter um esquema de  proteção para que o artista pudesse ter lugar ali. Fizemos um projeto que se chama Quarteirão do Artista, apresentei para o representante do Banco Mundial em Brasília e ele adorou. Era para desapropriar inicialmente 40 imóveis. E ai, o Estado passaria a ser agente regulador, permitindo que cantores, escritores, pintores habitassem ali” (O Povo, 02/02/2001).

Casinha de 1919 na rua José Avelino
Este projeto, porém, não foi implantado pelo Governo Estadual.

Após a construção do Dragão do Mar e execução do programa Cores da Cidade, o Governo do Estado acreditou na potencialidade da área e não procurou interferir em sua dinâmica. Uma parceria com a prefeitura municipal, comunidades locais e a iniciativa privada poderia colaborar para a qualidade e vitalidade da área. A prefeitura não revisou a legislação da região, de maneira a coordenar os usos existentes, nem buscou incentivar os proprietários da região a investir em seus imóveis a partir da isenção de impostos ou benefícios fiscais.


Leia também:







Fonte: Intervenções na cidade existente - Um estudo sobre o Centro Dragão do Mar e a Praia de Iracema/2003 -  Sabrina Studart Fontenele Costa / Site oficial tintas Ypiranga/ 


quinta-feira, 27 de junho de 2019

Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura - 20 Anos


A construção do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura foi uma iniciativa da Secretaria de Cultura do Governo Estadual na gestão de Ciro Gomes (1991-1994). 
A Carta Convite para seleção do escritório responsável estabelecia que o projeto deveria buscar a reordenação física e revitalização de parte do setor urbano compreendido entre a avenida Leste Oeste (Praça Cristo Redentor), Rua Boris, Rua Almirante Jaceguai e Avenida Almirante Barroso, com área aproximadamente de 16.500 m² tendo como foco de irradiação  programática o 'Centro de Cultura do Estado do Ceará' e como consequência contextual o uso de áreas livres com atividades de lazer (Carta Convite, 1993). 

No centro da praça, vemos o Café Avião
Ainda estabelecia que os projetos deveriam conter os seguintes equipamentos: ponte cultural (sic), auditório para shows e conferências, salão de exposição com áreas de administração, manutenção e montagem, sala de vídeo, cafeteria, salão de cinema e oficinas de artes.



Uma concorrência pública envolveu cinco escritórios de arquitetura da cidade e o projeto selecionado foi concebido pelos arquitetos cearenses Delberg Ponce de Leon e Fausto Nilo. O complexo ocupa atualmente uma área de 30 mil m², sendo 13 mil de área construída. O Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura começou a funcionar, em caráter experimental, em 28 de agosto de 1998; e foi inaugurado oficialmente em 28 de abril de 1999. Segundo a Secretaria de Cultura do Estado, o espaçoé um centro cultural de alta modernidade, que além de trazer ao Ceará eventos artísticos de nível internacional, abre espaço para as manifestações culturais do nosso povo, democratizando o acesso ao lazer e à arte.





O programa do Centro Dragão do Mar pode ser dividido em três partes. No primeiro bloco, está localizado o acesso principal do edifício, a partir da avenida Presidente Castelo Branco. Em seu pavimento superior, foram instalados o Memorial da Cultura Cearense e o Museu de Arte Contemporânea, além de outros espaços ligados à cultura: livraria, áreas livres de exposição e informações. O acervo do Museu de Arte Contemporânea é composto por obras de  Antônio Bandeira e Raimundo Cela, consagrados pintores cearenses, que integram uma exposição permanente. No pavimento superior, encontra-se um espaço destinado a oficinas de arte. Este primeiro bloco é marcado por uma colunata branca e pés-direitos bem altos. Também se liga com a Praça Verde – também conhecida como  Ágora - onde acontecem periodicamente apresentações culturais.



O segundo bloco é formado pela passarela metálica que liga os volumes localizados nos extremos do terreno. A passarela cruza a rua José Avelino e se liga ao solo por meio de escadas. Ali também se encontra um café que funciona como espaço de permanência e encontro dos visitantes do complexo. Para a construção desta “rua aérea” foi necessária a demolição de alguns edifícios. O último bloco é o mais próximo da praia e seu acesso pode ser realizado pela avenida Pessoa Anta. Neste espaço, encontra-se a maioria dos equipamentos culturais: teatro, cinemas, planetário, auditório e anfiteatro. O acesso a estes três últimos localiza-se no pavimento superior que pode ser realizada por uma grande rampa e escadas. O Planetário Rubens de Azevedo oferece dois tipos de programa, com um total de três sessões diárias.


Diário do Nordeste



O projeto incorporou à quadra original a antiga Praça Almirante Saldanha que também recebe eventos culturais abertos ao público, entre elas feirinhas populares, apresentações de dança e música. Seu paisagismo, com poucas árvores e bastante árido, contribui para contemplação do complexo, mas dificulta a permanência das pessoas no período diurno. O antigo Café Avião também foi incorporado ao complexo e hoje é um dos grandes pontos de encontro da região. 



Esta implantação dos equipamentos no terreno permitiu o surgimento de muitas áreas livres e de circulação pública. Estas áreas enfatizam a relação entre o interior e o exterior e uma contemplação do entorno. Segundo o arquiteto Fausto Nilo, “Tudo isto ali foi trabalhado com esta visão [de circulação]. E se comunica com o espaço público de maneira a realizar um edifício de escala urbana que é muito difícil de trabalhar com este tipo de coisa. É uma edificação, mas a transição entre ele e a cidade é gradativa, democrática e super aberta. Porque no fundo ele é uma rua aérea que você se conecta com o chão”.


Registro de 25 dias antes da inauguração em
caráter experimental. Diário do Nordeste
Em diversos espaços do Dragão do Mar é possível vislumbrar os galpões da antiga área portuária e o centro histórico de Fortaleza e esta relação de diálogo entre o edifício novo e os existentes sugere uma contemplação entre eles. Segundo Fausto Nilo:


“Você percebe que tem um ângulo lá no planetário que você vê os  pináculos da igreja, aquela coluna de Trajano que tem na praça superposta aos nossos pináculos, tem uma hora que você sai do café e vê a igreja da Sé. Tudo aquilo é o cinema planejado que se contou com os edifícios pré-existentes dentro de papéis coadjuvantes daquilo tudo.


Diário do Nordeste


A despeito destas informações, o Centro Cultural não parece integrar-se com os edifícios culturais localizados em sua vizinhança. Sua programação cultural não menciona a existência do Seminário da Prainha – complexo religioso que abriga diversos cursos de línguas, artes e teologia – nem do Teatro São José, entre outros. A Biblioteca Pública Menezes Pimentel, apesar de vizinha imediata do Dragão, somente uma discreta passarela de concreto – construída posteriormente - permite a ligação entre os dois edifícios. Sua implantação também não faz nenhuma referência espacial àqueles marcos da história cultural da cidade, nem os respeita como entorno, uma vez que sua escala contrasta diretamente com a volumetria original dos edifícios do bairro. Os arquitetos responsáveis pelo projeto afirmam que o desenho do Dragão do Mar reflete muito da arquitetura tradicional cearense. 




“Ali tem elementos característicos do Ceará, que contribuem para a formação de padrões locais de condições de vida ao ar livre: espaços de transição que não são fechados nem abertos; um clima de varanda; os elementos de ordem mais formal, decorativos, que se assemelham ao popular, como aqueles triângulos ou quadradinhos, tipo vazados 

(Fausto Nilo em declaração ao  jornal O Povo, 30/07/99).


“Nós (Fausto Nilo e Delberg Ponce) nos calcamos, entre construções típicas do interior que o pouco que temos de herança de arquitetura cearense, construções de engenhos, de rapadura, construções de casas de fazenda, oitões, alvenarias. O trabalho do sol com o prédio como se fazia da luz da antiguidade, mediterrânea, na Argélia, como se faz no interior do Ceará, em algumas regiões ensolaradas. Quer dizer, você trabalhar com este arco do sol e da arquitetura em várias horas do dia, réstias etc. E a noite, fazer uma metáfora com isto, com artifício. Então, de noite, você ilumina para combinar esse dia e noite do edifício e a luz. E tudo isso, também sempre dizendo isso: “olhe, nós somos de outro  período e aqui estão os velhinhos, e nós estamos juntos formando uma terceira situação.



A maior referência à arquitetura cearense parece estar mesmo nas vastas áreas de circulação – com ventilação abundante – que remete às varandas nordestinas. Esta ventilação garante um ambiente natural associada nos pés-direitos altos na maioria dos ambientes. Aparelhos de ar-condicionado foram utilizados somente onde era tecnicamente necessário: museus, cinemas, teatro, planetário e outros espaços fechados.


O arquiteto Fausto Nilo defende que sua ideia inicial era realizar uma conexão entre o Centro Dragão do Mar com outras áreas da Praia de Iracema. Isto se daria a partir de um boulevard a ser implantado na avenida Almirante Tamandaré, em continuidade ao eixo do edifício do Dragão do Mar, até a Ponte dos Ingleses. Ainda segundo ele, a Secretaria de Cultura optou por construir apenas os dois pontos extremos, sem realizar sua conexão. O projeto também se destaca pelo contraste que estabelece com seu entorno imediato. Críticos do projeto defendem que o prédio desrespeita a memória do lugar, pois o complexo cultural inseriu-se em quadras onde anteriormente existiam galpões e sobrados relacionados à atividade portuária original da área. 

Muitos destes sobrados são remanescentes do século XIX e encontravam-se bastante descaracterizados.  As duas quadras onde o Centro Cultural foi implantado foram adquiridas pelo Governo do Estado. Ali existiam oficinas mecânicas, depósitos de materiais de construção e alguns barracões. Segundo o arquiteto Fausto Nilo, nenhum deles com importância histórica ou arquitetônica. Nas outras quadras, os edifícios mais importantes e melhor conservados foram mantidos e integrados ao complexo.


Transformação física de seu entorno


 Na época da foto antiga, funcionava no prédio a
Superintendência de Obras do Estado do Ceará
(SOEC),  hoje extinta.
Até a inauguração do Dragão do Mar, a área entre a Prainha e a Praia de Iracema esteve em estado de abandono e degradação, a despeito de seu papel na evolução urbana de Fortaleza. A Carta de Veneza, em 1964, já afirmava em seu artigo 1º que:


“A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Estende-se não só às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural”

(IPHAN, 1995: 109).



Mas a importância da região como referência histórica de Fortaleza, não foi trabalhada durante muitos anos. Somente ao final da obra do centro cultural, foi publicado seu processo de pré-tombamento a nível estadual. Não foi possível localizar este documento nem mesmo no Departamento de Patrimônio Cultural (DEPAC) da Secretaria de Cultural do Governo do Estado




Entretanto, o Jornal O Povo publicou o edital de notificação em 1º de dezembro de 1997:



“Artigo 14, inciso IV, e 16, inciso VII da Constituição do Estado do Ceará Lei n.9109, de 30 de julho de 1968, considerando necessário a requalificação da área de entorno onde está sendo implantado o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, formado pelas edificações relacionadas o anexo deste edital, FAZ SABER aos proprietários dos respectivos imóveis que esses se encontram em processo de tombamento”.



O arquiteto Francisco Veloso, à frente do DEPAC na época do anúncio, afirmou que, devido à pressão dos proprietários de imóveis, o tombamento da região não foi concluído. Mas se resolveu investir na sua recuperação.




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Fonte: Intervenções na cidade existente - Um estudo sobre o Centro Dragão do Mar e a Praia de Iracema/2003 -  Sabrina Studart Fontenele Costa / Arquivo Nirez