Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Cinema
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.
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quinta-feira, 20 de junho de 2013

O culto ao cinema na Fortaleza dos anos 60



Arquivo Nirez

Em uma cidade onde o ponto de convergência das pessoas era o centro urbano, o cinema era uma das principais fonte de cultura e lazer. A realidade de Fortaleza, de certa maneira, impunha o convívio social centralizado, de forma que tudo acontecia no centro da cidade. Lojas, mercado, igrejas, restaurantes, espaços de lazer, bancos e órgãos públicos eram encontrados, quadra-a-quadra, nesse espaço de convergência citadina. 


O Palácio do Governo na Praça dos Leões

As lembranças pontuam o depoimento dos integrantes da geração que vivenciou a época. O
jornalista Augusto César Costa relata que “Tudo acontecia no centro da cidade. A cidade viva no centro. Ali você tinha o Palácio do Governo, a Assembléia Legislativa, o Fórum, a Faculdade de Direito – que era a faculdade mais importante da época –, o Theatro José de Alencar. Então, a vida social de Fortaleza estava toda no centro da cidade.” (Augusto César Costa, em entrevista concedida no dia 22 de abril de 2009).



Arquivo Nirez 

O arquiteto e compositor Fausto Nilo retrata que o centro da cidade simboliza o ponto de convergência da cidade, ressaltando a importância da praça nesta característica urbana:

“As pessoas que moravam nas áreas periféricas chegavam de ônibus, tinha um limite, e parte dos ônibus paravam na Praça do Ferreira e tinha o Abrigo Central: uma coberta de concreto e embaixo tinha engraxate, venda de bilhetes de loterias, lanchonetes, era um ágora. E naquele tempo não tinha essa degradação, esse declínio que tem hoje. As lojas eram tudo chique. Não tinha shopping, era tudo ali. Era convergente. As pessoas da Aldeota iam comprar lá, trabalhavam lá, os escritórios eram lá, os bancos era lá, tudo era lá.” (Fausto Nilo, em entrevista concedida no dia 6 de maio de 2009).



Abrigo Central 

O escritor e dramaturgo José Mapurunga elucida também a respeito da importância do centro na história da cidade:

“Você imagina uma cidade sem shopping center, sem supermercado. Se você quisesse comprar alguma coisa, ia ao centro. Existia também, no ponto de vista comercial, uma relação de confiança entre o dono da mercearia e o cliente. Havia as cadernetas e você poderia comprar fiado e o comerciante anotava nela, para que o cliente fosse pagar depois, como acontece ainda em algumas cidade do interior. O centro era também principal ponto de lazer da cidade. A Praça do Ferreira, o ponto de encontro”. (José Mapurunga, entrevista concedida no dia 5 de maio de 2009)

É natural, portanto, que encontremos a forma de lazer moderno mais comum na década de 1960 localizada especialmente no centro da cidade, onde havia a maior concentração de casas de cinema da época¹



Acervo Jornal O Povo

Num período em que a televisão ainda não tinha se consolidado como forma de lazer doméstico predileto, os shopping centers ainda não existiam e não tínhamos também as iniciativas de construção de centros culturais. As formas de lazer sociais e culturais eram muito restritas. Fixavam-se apenas na praia aos finais de semana, no futebol – principalmente para os rapazes –, nas quermesses e nos cinemas. As classes mais abastadas poderiam usufruir, ainda, de clubes sociais privados, como o Náutico Atlético Cearense.


Praia dos Diários - Anos 60

“Vamos pegar aí a vida de um garoto com 16, 17 anos de idade. Tinha as paróquias e as comunidades se faziam em torno delas. A Igreja também era um ponto convergente da cidade, ponto de encontro. Tinha a missa de domingo e as pessoas se encontravam. Então, essas pessoas tinham dois níveis de gravitação de convergência. Tinha o de todos, que era a Praça do Ferreira e tinha os particulares em seu bairro, que era a igreja, que ficava rodeada por uma praça. E o que é que acontecia aí? Cada época do ano, cada paróquia tinha sua quermesse. Era onde os garotos de classe média que não frequentavam os clubes da cidade encontravam as garotas. Era na escola, nas quermesses, na praia e no cinema. Esses eram o ponto de intercâmbio, de poder se encontrar. Os lazeres na cidade eram esses e para os garotos tinham também o futebol. E aqui-acolá íamos a uma tertúlia.” (Fausto Nilo, em entrevista concedida no dia 6 de maio de 2009).

Acervo Jornal O Povo 

Com um caráter representativo de progresso e modernidade, o cinema converteu-se 
em lazer amplamente frequentado, sendo um importante ponto de encontro da juventude na 
década de 1960. 

“Muitos de nós saíamos da escola ou da faculdade e íamos ao cinema no sábado. 
Aos domingos, como era de costume: praia de manhã, cinema à tarde. O cinema também era o programa preferido para sair com a namorada. A sala escura criava um ‘clima’. Como tínhamos pouco dinheiro, geralmente já marcávamos dentro da sala, para não termos que pagar o ingresso da moça". (José Mapurunga, entrevista concedida em 5 de maio de 2009).

O interesse da população pelo cinema era representado frequentemente em colunas de jornais que tratavam, em específico, da sétima arte. O jornal Gazeta de Notícias e O Povo
tinham páginas inteiras reservadas à divulgação e à crítica cinematográfica, além de notas 
sobre a programação semanal ou diária das casas de cinema, dispostas aleatoriamente no 
decorrer do veículo. 

De acordo com José Mapurunga, a juventude que frequentava o cinema em Fortaleza,
em especial as sessões de arte, é caracterizada pelo figurino que vestiam, pelo que liam e pelo
que conversavam. O cinéfilo dos anos 60 vestia-se como “proletariado”, reflexo de uma visão política que aproxima-se das camadas sociais mais populares, proporcionado pelos filmes e pelos livros que compunham o repertório de construção visual e intelectual do espectador da época.

 A geração de sessenta em Fortaleza, embora também assistisse a filmes norte-americanos que impunha o gosto pelo rock 'n' roll e o uso da minissaia pelas mulheres, também
era influenciada pelo cinema europeu, que explicitava a revolução sexual, onde mulheres
também poderiam vestir-se da mesma maneira como apenas homens se vestiam antes,
adotando agora o uso da calças jeans e camisa. E assim o faziam. Como opção musical,
tinham a música popular brasileira como preferência, devido a popularização e disseminação desta nesse período e de sua ligação com a brasilidade, também buscada nas produções
cinematográficas brasileiras.

Entretanto, é importante atentar que o esteriótipo visual com que vestiu-se a geração de sessenta não era unânime. Podíamos encontrar a juventude vestida de jeans, camiseta
branca e sandália franciscana, figurino característico da época, mas não devemos nos fechar
nessa única concepção.

Abrigo Central 

Isso também se aplica ao mito do livro embaixo do braço. Era comum à geração cinéfila de sessenta em Fortaleza, a cultura de usar sempre um livro embaixo do braço, representado aquilo que estava lendo. Poderia ser Marx, Tolstoi, Freud, Lênin; algo de caráter valorativo e que simbolizasse um status de intelectualidade.
Entretanto, o arquiteto Fausto Nilo, frequentador assíduo do cinema na cidade de Fortaleza,
afirma esse não ser um hábito praticado frequentemente por ele, mas afirma a existência deste fato e relata:

“Eu tinha um primo que era meu companheiro de formação. Eu morei na casa dele. 
As curiosidades eram juntas. A gente via muito cinema. Aí, parava num sebo na Rua Guilherme Rocha e tinha um livro pra vender que era assim: ‘A interpretação dos 
sonhos, Freud’. Aí eu olhava pra ele e dizia: ‘Cara, é aquele Freud. Se lembra daquele filme que o cara falou?’. Aí a gente comprou o livro e a gente lia coisas desse tipo, mas não tínhamos interlocutores. A gente lia aquilo só nós e ficava tentando fechar esse mosaico. Então, o CCF e esses jovens intelectuais que foram se identificando na cidade, eles foram ajudando a criar uma teia de sustentação intelectual uns dos outros. E a linguagem era essa: se encontrar no cinema, se ver de longe, depois se conhecer, alguém apresentar e a partir daí, se afeiçoar às características uns dos outros. Era comum desses jovens ler (ou parecer que lia) livros de formação política e intelectual, como Sartre, Marx, Freud. Tinha isso de vê-los sempre com um livro embaixo do braço.” (Fausto Nilo, em entrevista concedida no dia 6 de maio de 2009).

Abrigo Central 

A década de 1960 – era associado, no Brasil, a um momento de intenso desenvolvimento econômico e de efervescência cultural, com proliferação de tendências e manifestações no campo das artes e em outros setores de produção de bens simbólicos. Estes aspectos eram comumente reportados nos periódicos cearenses.

Além de representar uma forma de diversão pura e simples, o cinema funcionou naquele contexto histórico, sobretudo, como um veículo por excelência, de disseminação de ideologia e mensagens ligadas aos mais diversos propósitos. É um tipo de lazer sedutor, que logo se universalizou na preferência do público. E em meio a essa trajetória ditatorial que vivíamos em nosso país, o cinema inseriu-se como aglutinador de grupos, catalisador de pessoas e idéias, lugar onde havia a convergência de interesses. Isso se dava não somente no ato de ir ao cinema, mas nas convivências pré e pós exibições do filme, nos salões de espera das casas de cinema, nas filas para entrar nos filmes e nos bares, lanchonetes e restaurantes da cidade.

Cine Diogo

No momento no qual dispomos de um já consolidado circuito cinematográfico comercial variado surge em Fortaleza o Cinema de Arte do Cine Diogo – melhor dizendo, ressurge² – como uma opção diferenciada de cinema que, a exemplo de outras experiências
vivenciadas no país, exibiria filmes não identificados com o circuito comercial convencional
que normalmente ocupava a programação do Cine Diogo. A ideia surge com objetivo de que
os filmes alternativos³ produzidos na França, Itália, Grécia, Japão, Inglaterra, Estados Unidos, etc., pudessem atrair também um espectador mais jovem.

Cíntia Mapurunga
(recém-graduada em Comunicação Social, com habilitação 
em Jornalismo pela Universidade de Fortaleza)

Continua...

 (13220 bytes)¹No início dos anos 1950, a cidade contava com dezoito salas de exibição localizadas não só no centro da cidade, mas também em bairros e zonas periféricas, numa clara demonstração do nível de importância que essa forma de lazer assumia no cotidiano fortalezense nos vários segmentos da população. (PONTES, Albertina 
Mirtes de Freitas. A cidade dos clubes: modernidade e “glamour” na Fortaleza de 1950-1970. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2005, p.45). Encontramos registrados em jornais da década de 60, o anúncio constante de seis casa de cinema: Cine São Luiz, Cine Diogo, Cine Moderno, Cine Jangada – pertencentes ao Grupo Severiano Ribeiro, que construiu um “império” de exibições cinematográficas no Brasil –, CineArt, Cine Samburá e Cine Familiar – este também com um circuito de Cinema de Arte. O Clube de Cinema de Fortaleza também tinha sua programação semanal divulgada nos jornais estudados.

 (13220 bytes)²O Cinema de Arte do Cine Diogo surge em 1963. Em 1967, o Cinema de Arte estava ressurgindo, no dia 4 de março, após um longo período de paralisação. 

 (13220 bytes)³ Aquilo que não se afina com valores e métodos convencionais ou tradicionalmente conhecidos. O convencional em questão é o cinema comercial hollywoodiano. 

Fonte: O culto ao Cinema de Arte na geração de sessenta em Fortaleza 

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Cine Atapu - Cinemar


Arquivo Ary Bezerra Leite


Inaugura-se em Fortaleza, no dia 11 de março de 1950, o Cine Atapu, da Empresa Cinematográfica do Ceará - Cinemar, de Amadeu Gomes Barros Leal (Amadeu Barros Leal*), na esquina da Avenida Visconde do Rio Branco nº 3725, com a Avenida 13 de Maio, trazendo a película francesa Monsieur Vicent, a mesma que inaugurou o Cine Jangada.


O Cine Atapu foi um dos mais apreciados cinemas de bairro de Fortaleza, no final dos anos 50 e década de 60. O nome Atapu logo caiu no gosto do fortalezense. Assim, sugiram em seu entorno o Posto Atapu, a Farmácia Atapu, a Borracharia Atapu, a Padaria Atapu. O Chaveiro Atapu e a Panificadora/Mercadinho Atapu permanecem em pleno funcionamento. A área tornou-se referência, chamada carinhosamente de Atapu. Ainda hoje existe empresa de transporte coletivo urbano que conserva exposta, na indicação do itinerário, a citação Atapu.


Amadeu Barros Leal - Arquivo Ary Bezerra Leite

O Cine Atapu integrava a Empresa Cinematográfica Brasileira – Cinemar, cujo escritório ficava na rua Pedro Pereira, 166, altos. Concorria com a Empresa Luiz Severiano Ribeiro (que posteriormente adquiriu todas as suas salas. A Cinemar foi fundada pelo advogado Amadeu Barros Leal, que homenageou os jangadeiros batizando as cinco salas de seus cinemas com nomes ligados ao mar: Cine Jangada (rua Floriano Peixoto, virou estacionamento); Cine Araçanga (cacete para matar peixes) ficava na Barão do Rio Branco, depois Cine Art que hoje é um estacionamento do Hospital IJF - Instituto José Frota); Cine Tuaçu (pedra que serve de âncora às jangadas), ficava na Praça José de Alencar; Cine Samburá (cesto feito de cipó ou taquara usado pelos pescadores para colocar peixes), era na rua Major Facundo, deu lugar ao Cine Fortaleza e atualmente é uma livraria; e Cine Atapu (búzio que serve de trombeta aos jangadeiros para chamar os companheiros ou fregueses à praia). Que a Unimed Fortaleza evidencie o nome do saudoso cinema, pois o seu Hospital também está na área do Atapu que desbravou o local.

O prédio do antigo Cine Atapu, escondido por tapumes e uma placa da Unimed 

Quem passa pelo cruzamento da Avenida Visconde do Rio Branco com a Avenida Pontes Vieira visualiza um imóvel com inscrições nas paredes informando ser o mesmo de propriedade da Unimed. Desde que as li, planejei escrever sobre o assunto, pois, como Cidadão Honorário de Fortaleza, atento à memória de nossa Capital, e confiante na sensibilidade dos dirigentes da Unimed Fortaleza, e ainda na condição de veterano usuário do daquele conceituado Plano de Saúde, permito-me sugerir que não deixem escapar a possibilidade de resgatar a tradicional denominação daquela região da cidade. Desconheço a destinação que a Unimed dará ao referido espaço. Contudo, seja qual for o destino utilitário do imóvel, seria de muito bom grado trazer o nome de Atapu. Representaria, pelo ângulo da preservação, um oportuno presente que a Unimed daria à cidade, possibilitando inclusive conhecimento histórico aos moradores mais jovens. Por exemplo: Unidade Unimed Atapu, Laboratório Unimed Atapu, Depósito Unimed Atapu, etc... Seria uma homenagem justíssima posto que, originariamente, no local funcionou e marcou época o Cine Atapu. O que restou da sua estrutura permanece na mesma esquina - na Visconde do Rio Branco no 3731: Calçada elevada, degraus, e altas paredes. Mesmo sem o telhado, distingue-se ainda o formato da sala de projeção que outrora tantas alegrias trouxe para a juventude do Joaquim Távora e adjacências. Lá também era o término da linha de bonde do Bairro e Quilômetro Zero da BR – 116, entrada da cidade. O atual Parque Rio Branco, que fundou em 2007 o Cine Clube Atapu - nome que sugeri ao jornalista Aldemir Costa, do Movimento Pró-Parque, um sítio cortado por três riachos, e no local do atual Bradesco da Borges de Melo tinha uma vacaria, em meio a grande areal...

Concluo agradecendo as informações prestadas pelo cineasta e publicitário José Carlos Moreira de Oliveira, sobrinho do Dr. Amadeu Barros Leal

Paulo Tadeu
Jornalista

*Amadeu Barros Leal

Não se sabe ao certo qual a motivação inicial que fez o advogado Amadeu Barros Leal ingressar com determinação na seara cinematográfica, mas não há dúvidas que a partir de março de 1948 ele começa a desenvolver um sonho, decisivo e marcante em sua vida. Ele mesmo confirma essa firme disposição: “Idealizamos e, ato contínuo, lançamo-nos em campo, na batalha árdua de instalar em Fortaleza um circuito exibidor cinematográfico”. Desafio aceito e vencido sob a simpática acolhida do povo cearense.
Amadeu Barros Leal nasceu em Quixeramobim, no dia 13 de março de 1914, sendo seus pais o farmacêutico Afro Pimentel de Barros Leal e Maria Gomes de Barros Leal. Vindo para a capital cearense, aqui cumpriu seus estudos, iniciando-se como aluno do Liceu do Ceará, em 1931, e obtendo o diploma de grau superior pela Faculdade de Direito do Ceará, em 1942. Esta conquista coroou sua disposição para a luta, pois, ao longo desses anos, no período de 1934 a 1942, obtinha recursos para custear seus estudos como carteiro dos Correios e Telégrafos do Ceará.
No exercício de sua carreira jurídica, encontrava tempo para marcar presença como jornalista, alternando-se ainda na direção de negócios como a Ceará Mineral Industrial Ltda., firma exploradora de minérios da qual foi diretor gerente, e incursões políticas como militante do Partido Social Progressista, que indicou seu nome à Câmara Municipal de Fortaleza.
A paixão pela imprensa tinha se manifestado em sua terra natal, garoto ainda, quando produzia jornais manuscritos, e o seu lado combativo também já se revelava nos títulos: A Tesoura, A Navalha e O Bisturi. Aluno do Liceu foi responsável, na companhia de Alaor Albuquerque, Mardônio Botelho e Elissade Bacelar e outros, pelos jornais A Greve e A Luta. Tudo isso resulta na militância no jornal O Estado, quando responde pela coluna diária De Olhos Abertos. Esse histórico de luta prepara a estrutura de um corajoso empresário de cinema.
Seu idealismo transpassa muitos segmentos da vida cearense até alcançar a edificação da Companhia Cinematográfica do Ceará S.A.CINEMAR -, cuja materialização ocorre em 1950 com a abertura dos cinemas Jangada e Atapu, comandada de um pequeno escritório à rua Pedro Pereira, 166, altos. Seguem-se episódios de persistente luta para ampliar seu circuito de cinemas e mantê-los sobrevivendo em mercado até então monopolizado. Infelizmente, o magnífico empreendimento desapareceu após 12 anos de sobrevida, deixando-lhe a mais profunda mágoa. Certa vez Barros Leal confessou porque vendeu a sua metade na empresa, passo fatal para a sua liquidação: “A CINEMAR representava tudo para mim. Pena é que eu tenha tido a burrice de ser bairrista e feito negócios com quem não merecia fazê-lo. Deixei de associar-me com o Lívio Bruni, grande exibidor no Rio e que desejava penetrar aqui, reformando os cinemas e dotando-se de ar-condicionado e outras melhores e modernas condições. Entretanto, o meu ex-sócio queria a destruição da CINEMAR, o seu desaparecimento. Conseguiu o seu criminoso intento, embora não tenha podido alijar o seu nome da lembrança do cearense...”
Amadeu Barros Leal faleceu em Fortaleza, em 10 de novembro de 1978**, cumprindo a sua última missão, ao redigir um libelo contra o cigarro.

Em reconhecimento ao idealismo de Amadeu Barros Leal, a Fundação Demócrito Rocha, sob a presidência de Albaniza Dummar, instituiu, em 1985, o Prêmio Samburá. O troféu foi conferido pela primeira vez aos participantes do I Festival de Fortaleza do Cinema Brasileiro: a uma personalidade destacada no cinema nacional, ao melhor longa e ao melhor curta metragem.
Nas palavras de agradecimento, proferidas pelo filho Vladimir Barros Leal, traça-se o perfil do empreendedor e a dimensão de sua contribuição à cultura e lazer na capital cearense: 

“Durante muitos anos o cearense, particularmente o fortalezense, deveu a Amadeu Barros Leal a sua Cinemar, com uma cadeia de casas de espetáculos espalhadas pela cidade, numa época em que o cinema era a grande opção de lazer, quase a única.
Enfrentando tempestades que só a um valente jangadeiro é dado vencer, arrastando em sua trajetória poderosos ventos contrários e ondas gigantescas, Amadeu Barros Leal soube se impor e foi em frente e seus contemporâneos são testemunhas de sua vitoriosa aventura.
Inovador, projetou em sua telas memoráveis festivais do cinema europeu. Competitivo, adaptou às suas telas o Cinemascope e garantiu a exclusividade da Metro Goldwyn Mayer, brindando o seu público com majestosas películas, tais como: “Quo Vadis”, “Ben Hur”, “E o vento levou”, entre muitas outras.


Audaz, exibiu em suas telas filmes considerados atentatórios à falsa religiosidade e moral da época - década de 50 - como por exemplo: “Lutero”, “O Direito de Nascer”, “Veneno Lento”, um deles proibido pelas autoridades, e garantida a sua exibição na Justiça, através de Mandado de Segurança, assim mesmo em sessões separadas para homens e mulheres, que a posição ‘despudorada’ de uma mulher a ter um filho provocava vexames aos olhos mais puros.
Criativo, lançou a ideia da realização de um filme sobre a vida de Padre Cícero, chegando a convocar produtores, diretores e artistas para a consecução do projeto, só não o realizando devido a dificuldades econômicas, intransponíveis e à insensibilidade e indiferença daqueles que podiam tê-lo ajudado neste seu mais acalentado sonho.
Se os homens públicos da terra que tanto amou não lhe renderam a homenagem, digna de sua dimensão, o Prêmio Samburá vale como uma consagração da sua obra, fazendo-lhe justiça, numa prova de que o cearense sabe ser grato aos homens que realizaram verdadeiramente alguma coisa em seu benefício. Se meu pai fosse vivo, não conteria a emoção. Na certa estaria se sentindo profundamente gratificado com o reconhecimento público à gigantesca luta que empreendeu em prol da Cinematografia no Ceará.”


**10/Novembro/1978-Morre, em Fortaleza, às 14h, na Casa de Saúde São Raimundo, o advogado, jornalista e empresário Amadeu Gomes de Barros Leal (Amadeu Barros Leal), fundador e presidente da empresa cinematográfica Cinemar, cearense de Quixeramobim nascido em 13/03/1914.
Foi sepultado no Cemitério de São João Batista.



Crédito: Jornal O Estado/Memória do Cinema/Livro Cronologia Ilustrada de Fortaleza de 
Miguel Ângelo de Azevedo

sábado, 28 de julho de 2012

Cine Nazaré - Uma demonstração de amor pelo cinema...Parte III



A paixão pela sétima arte levou um aposentado cearense a reabrir as portas de um dos cinemas de bairro mais tradicionais da cidade


O que as novas gerações não sabem é que o cinema é uma antiga paixão do aposentado. Em 1949, seu Vavá, como é conhecido no bairro, tornou-se carregador de filme do Cine Familiar, que pertencia à Paróquia de Nossa Senhora das Dores (Otávio Bonfim). Ficaria na empresa até 1968, assumindo outras funções - de revisor até gerente geral. Ao longo dos anos, entre um filme e outro, seu Vavá desenvolveu uma grande paixão pela sétima arte, que continua acesa até os dias de hoje.


A motivação para reabrir o Cine Nazaré, portanto, foi mais romântica do que comercial, o que remete ao Totó do filme “Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tonartore. Boa parte da vida de seu Vavá foi passada dentro de um cinema. “Sempre me senti em casa vendo aqueles filmes.” Depois de deixar o Cine Familiar - a sala fechou -, seu Vavá aproveitou a experiência para montar cinemas em outras cidades do Ceará, entre eles o Cine Ideal, em Juazeiro do Norte, no final dos anos 60. Mas, em 1970, resolveu tocar seu próprio negócio, alugando o prédio do antigo Cine Nazaré - funcionou de 1945 a 1952 -, transformando o espaço em uma nova sala, que recebeu o nome do antigo cinema.



Ao mesmo tempo que tocava o Cine Nazaré, seu Vavá arrendou outras salas no Interior do Estado. “Meus filmes faziam o circuito Fortaleza, Sobral, Crateús, Aracati e Russas”, recorda. Esta rotina durou três anos. Em 1973, seu Vavá teve que fechar o Cine Nazaré e sair do ramo. Anos difíceis para os cinemas de bairro e de pequenas cidades. “A legislação federal da época beneficiava só os grandes exibidores. As exigências eram absurdas e a perseguição intensa. A Polícia Federal vivia na porta do meu cinema, vigiando tudo, até as fotos dos cartazes. As pessoas temiam ser presas”, diz.


Foi o golpe de misericórdia nos cinemas de bairro. De uma em uma, as pequenas salas foram fechando suas portas. Tinham ficado para trás os anos dourados de pequenos cinemas como o Ideal (Damas), o Familiar (Otávio Bonfim), o Mucuripe (Beira-Mar), o Odeon (Otávio Bonfim) e o América (Jardim América). “A gente chegou a ter uns 15 cinemas de bairros, fora os luxuosos, como o Moderno, o Majestic. E todos os dias com um filme diferente. Era assim...”, relembra.


Délio Rocha

Depois de andar por alguns quarteirões, chegamos a uma rua de pedras, onde encontramos uma casa rosa de dois andares. Quando apertamos o botão para acionar o interfone, percebemos algo incomum no lugar onde se coloca as correspondências. 
Não havia só o lugar para as cartas. Além da porta para as cartas, havia também duas portinhas. Em uma estava escrito pão e na outra leite.


Logo em seguida escutamos uma voz mansa ao interfone, do senhor que mesmo após uma operação de catarata, nos recebeu para uma entrevista. 
Perguntava: É a Natália? E eu respondi que sim. Logo em seguida com uma risada calma, seu Vavá perguntou se o “batalhão” tinha vindo também. 
O senhor simpático de 81 anos, já com a cabeça repleta de cabelos brancos veio abrir a porta nos cumprimentando e pedindo-nos para entrar. Entramos todos. Eu, Renata, Georges, Soraya e Julianna.


Ao chegar na sala da casa que assim como as casas antigas, tem um imenso vão, encontrei muitos objetos antigos - o rádio, os porta-retratos - coisas que lembram o passado.
A partir daí nos sentamos e começamos uma conversa que durou por volta de duas horas, onde seu Raimundo Getúlio Vargas Carneiro de Araújo  nos contou histórias sobre cinema, religião, família, ditadura, conflitos e armações de gente poderosa. A história do Cine Nazaré é contada como uma história de vida, que durou anos e vive até hoje através da paixão pelo cinema.


Seu Vavá, morador do bairro Otávio Bonfim, fez da paixão pelo cinema, a sua vida.
Desde muito novo despertou uma imensa satisfação pelo cinema, que surgiu ainda quando criança ao assistir filmes de faroeste onde o bem sempre triunfava sobre o mal. “O heroísmo do mocinho dominar o bandido que estava errado, aquilo me deu simpatia de ver. Também o heroísmo dos animais, o Rin Tin Tin, o Cavalo Silver, quando o artista estava em alto perigo ele assobiava e o cavalo vinha em socorro dele, tirava as cordas que estavam o amarrando. Aquilo para o espectador e principalmente para a criança, que queria ver o herói triunfar… me deu cada dia mais afeto em ver o cinema”, diz.


Desde essa época aproximou-se cada vez mais do cinema, e para isso valia de tudo. Mesmo sem dinheiro para o ingresso, entrava escondido para ficar assistindo das brexas, ou em alguns cinemas, do palco, onde dava para se esconder.


Durante a juventude, a paixão pelo cinema continuou a crescer, e então surgiu a oportunidade de trabalhar em alguns cinemas, como o Cine Familiar dos frades, e por lá confrontou até Luís Severiano Ribeiro, dono de mais de 80 cinemas, dominava um verdadeiro monopólio em todo o país.
Seu Vavá conta que quem trabalhava para o Ribeiro tinha cinema, quem não trabalhava, não tinha.


Nessa época, o Cine Familiar ficou independente, e passou a exibir filmes que seu Vavá se encarregava de conseguir até mesmo com os empregados do Ribeiro por uma quantia de 50 reais. “Eles sempre liberavam”, diz.
O Cine Nazaré foi adquirido depois que perdeu o emprego no Cine Familiar dos frades, onde trabalhava. Sem saber fazer outra coisa, acabou alugando o prédio onde hoje funciona o Cine, que passou a ser seu próprio cinema. 
A montagem do Cine foi rápida. Já tinha a máquina de rodar o filme, que foi comprada em uma de suas viajens ao interior, as cadeiras foram adquiridas do Cine São Luís, quando a Eva ligou oferecendo-as por uma quantia que seria sugerida por seu Vavá. Depois de um tempo descobriu que o Cine São Luís precisava ser desocupado, e eles gastariam milhões para levar todas aquelas cadeiras para o Lixão. “Eu acabei fazendo um favor para ela”, conta. O grande acervo de filmes que tem, foi doado por vários colegas como o Nirez para quem presta serviços como conserto de discos.
Na época do Regime Militar, com o Cine Nazaré enfrentou a censura da polícia federal dentro do seu cinema, revistando seus filmes e fotografias. Essa época, segundo seu Vavá, foi um tempo difícil para o cinema no Brasil, onde houve uma desestruturação, e o cinema que não sofria com nenhuma burocracia, começou a entrar em crise.



Os filmes tinham que passar pela polícia, para ter aprovação do Estado para poder ser colocado em cartaz. Seu Vavá conta, que a sensação que sentia, era a mesma que ele via nos filmes sendo vivida pelos judeus na Alemanha, de Hitler, quando eles iam receber o visto para poder sair do País.
Hoje, o Cine Nazaré vive outra realidade.
Seu Vavá, exibe sessões de filmes antigos de faroeste, bíblicos e romances, as quartas-feiras, às 17 e 19 horas, sábados e domingos, às 19 horas.


As sessões costumam ter um número de 75 pessoas, sucesso atribuído ao nome dos filmes exibidos, que apesar de antigos, são muito bons de rever, segundo seu Vavá, que exibe filmes mais antigos, pois precisa ter os direitos comprado desses filmes.
Apesar de ser um cinema feito para a comunidade, o Cine Nazaré tem contado com a presença de pessoas de todas as partes da cidade, de variadas idades, e diferentes classes sociais. Pessoas mais humildes e com mais dinheiro, demonstrando uma preferência pelos mais idosos, que são mais calmos, e segundo ele, respeitam o cinema, sabem aproveitar o lugar. Já as crianças, os mais jovens, são muito bagunceiros, e chegam até mesmo a estragar as cadeiras e jogar lixo no chão.
Diferentemente dos cinemas dos shoppings, no Cine Nazaré o preço da sessão tem um valor simbólico, que chega a ser espontâneo. Existe uma urna na entrada da sala, e as pessoas passam e depositam alguma quantia de dinheiro. Uns mais, e outros menos. Seu Vavá diz que dificilmente alguém entra sem colocar nada, até por ficar meio sem jeito. 
Segundo ele, o preço do cinema tem que ser bem mais barato do que se cobra. “R$ 7, R$ 8, é algo absurdo, o cinema deveria cobrar R$ 1, R$ 2, no máximo”, diz.


O cinema para seu Vavá, é um empreendimento, pois tira algum dinheiro para mantê-lo, mas é um valor que é necessário para manter a subsistência do cinema. Envolvido pela paixão, seu Vavá procura fazer seu cinema baseado nos seus ideais, naquilo que acredita ser de fato o cinema. Suas pretensões nunca passaram de fazer cinema com amor e com tudo aquilo que acredita, talvez esse, seja o grande segredo do sucesso do Cine Nazaré.


Natália Cristina Guerra

Fontes: Diário do Nordeste e Jornal O Estado

Cine Nazaré - Uma demonstração de amor pelo cinema...Parte II


Do Bang-bang à Bíblia, até de tamanco

Para atrair o público, seu Vavá recorre aos mais variados filmes antigos. “Escolho aqueles não são encontrados nas locadoras e que não passam na televisão. Assim, não tenho concorrência e ainda ofereço produtos de qualidade”, explica. A programação é puro saudosismo. Entre os filmes que entraram em cartaz, estão “O Ébrio” (1946), que consagrou a música homônima de um dos grandes ídolos do rádio, Vicente Celestino; os faroestes “Abutres Noturnos”, com o cowboy das matinês Allan Rocky Lane, e outro faroeste clássico, “O Dólar Furado” (1969), ambos em versões dubladas.

Para o período da Semana Santa, seu Vavá abre uma exceção na programação e coloca em cartaz filmes mais recentes, como “Judas” (2000), da Coleção Bíblia Sagrada; “Sansão e Dalila” (1996), com Dennis Hoopper e Elizabeth Hurley; e “Pedro” (2006), com Omar Shariff. E, claro, não podia também faltar uma versão de “Paixão de Cristo”. “Só lamento a falta de cultura religiosa nas pessoas. Tem gente que não quer assistir a ‘Paixão de Cristo’ porque acha o ‘artista’ do filme mole, já que apanha muito sem reagir. Já ouvi este tipo de comentário, que revela a ignorância de valores”.

Cine Nazaré - Acervo de João Otávio Lobo

Cena de “O Ébrio”, produzido em 1946


Nada, porém, tira o entusiasmo de seu Vavá pela sétima arte. Mas ele sente saudades dos tempos áureos dos cinemas de bairro. “Ir ao cinema era um acontecimento. As pessoas passavam duas horas na frente da tela e iam pra casa felizes, já pensando numa nova sessão”, conta.



Tamanco permitido

O figurino do público também era outro. “As pessoas se arrumavam mais, principalmente aos domingos. Com o tempo, as exigências foram ficando menores, mas o uso de tamanco ficou proibido por muito tempo. Quem chegasse na porta do cinema de tamanco, só entrava com ele na mão. Senão era aquele toc-toc, toc-toc. E isso não podia”, sentencia. “Agora pode”, avisa. 

Histórias de cinema

22 cinemas já chegaram a funcionar simultaneamente em Fortaleza, no início da década de 50, quando a cidade mal chegava aos 300.000 habitantes. Um número que impressiona, até mesmo em relação aos de hoje. A maioria dessas salas exibidoras localizava-se nos bairros ou no entorno do Centro, onde ficavam os grandes cinemas lançadores como o São Luiz, o Diogo e o Majestic Palace, este último especializado em faroestes e filmes em série.

1950 foi o ano da implantação da cadeia exibidora Cinemar, fruto da ousadia do empresário e cinéfilo Amadeu Barros Leal. Ele ousou enfrentar o monopólio dos grandes circuitos nacionais, dominados pelos produtores de Hollywood, e trazer até Fortaleza os grandes clássicos do cinema europeu. Mas, a corajosa iniciativa só vingou pouco mais de uma década e as salas tiveram que ser vendidas a outros grupos.

1974 foi o ano da inauguração do primeiro cinema de 'shopping' em Fortaleza, o Cine Gazeta, localizado no Center Um da Aldeota, onde funcionaram por algum tempo as sessões do Cinema de Arte coordenado pelo crítico de cinema do Diário do Nordeste, jornalista Pedro Martins Freire


Continua...

Parte I

Matéria publicada no Jornal Diário do Nordeste

Cine Nazaré - Uma demonstração de amor pelo cinema!


Foto

1945 - Abre-se, no Otávio Bonfim, em prédio na Rua Padre Graça nº 65, o Cine Nazaré, pertencente ao marchante do Mercado São Sebastião, José Marcelino, que tinha paixão por cinema. Depois foi adquirido pela empresa Luís Severiano Ribeiro que o fechou em 1954.
Em 18 de maio de 1969, o antigo operador do Cine Familiar, Raimundo Carneiro de Araújo (Vavá), adquire e reabre o Cine Nazaré, na Rua Padre Graça nº 65, com o filme "Desafio de Gigantes".


 
Foto George Hudson

Matéria de 05/07/2006 do Diário do Nordeste:

Em frente à Lagoa da Onça, a um quarteirão do Cercado do Zé Padre, no Otávio Bonfim, o número 65 da Rua Padre Graça é cheio de história. É a Oficina São Pedro, mas ali já funcionou o Cine Nazaré, que faz parte da história do bairro e de Fortaleza. Apesar de a lagoa ter sido aterrada, de o cinema não funcionar mais e de o lugar hoje ter carros no lugar das cadeiras, o que aconteceu no local e nos seus arredores reaparece como um filme na lembrança dos moradores mais antigos. Talvez a sala seja a única que, quando chovia, ninguém reclamava de assistir ao filme com os pés na água. O bairro, considerado calmo por muitos dos moradores, ainda tem casas antigas, principalmente perto da Igreja de Nossa Senhora das Dores, construída em 1951, pela Ordem Franciscana Menor (OFM). Ali próximo ficava também o Cercado do Zé Padre, faixa de terra em duas ruas, que abrigava diversas famílias. Nas imediações, onde hoje se encontram casas, comércios ou onde foram abertas ruas, ficavam os pontos de aluguel de carros e bicicletas. É que, na época, o transporte mais comum era o bonde. Já o trem, que chegou ali pela extinta Rede de Viação Cearense (RVC), não só deu o nome de Otávio Bonfim à estação como o sobrepôs sobre o nome oficial do bairro, Farias Brito. Ali há relíquias. Não só materiais, mas outras subjetivas que ganham vida nas lembranças do radiotécnico Vavá, que até os 18 anos foi Raimundo Getúlio Vargas Carneiro de Araújo e hoje, aos 75, não leva mais o nome do ex-presidente, só o apelido.



Sala de exibição do Cine Nazaré - Arquivo do blog Percursos Urbanos

No final dos anos 40 e início dos 50, os cinemas passaram a ser uma das principais diversões na Capital. Lazer dos mais modernos e disputados. Havia diversas salas em Fortaleza, espalhadas em bairros periféricos ao Centro. Muitos dos espaços eram do Grupo Severiano Ribeiro que, com a inauguração do São Luiz, desfez-se das parcerias para priorizar, a partir dos anos 60, a mais luxuosa sala da Capital.

Segundo Seu Vavá, como é conhecido o radiotécnico, em 1945, quando foi erguido o prédio do Cine Nazaré, o Otávio Bonfim era completamente diferente. A começar pela Lagoa da Onça, marca do bairro, e que hoje não existe mais - a não ser no imaginário dos moradores e nas marcas de algumas paredes que insistem em brejar no lugar do aterro. O primeiro arrendatário do Nazaré foi o marchante José Marcelino, que cortava carne no Mercado São Sebastião.

Na época, já existia o Cine-Teatro Familiar no bairro, feito pelos frades ao lado da igreja. O inusitado do espaço é que os espectadores assistiam ao filme praticamente ao ar livre, pois não havia paredes, só uma coberta.


O Nazaré, por sua vez, começou a funcionar em 1945, final da guerra. “Anoiteceu, o pessoal ia para o cinema, não para bar, restaurante. Muitos casamentos começaram e terminaram ali”, conta Seu Vavá, acrescentando que as mulheres levavam até crianças de colo. A não ser que o filme fosse censurado. No caso, aqueles de terror, com monstros ou os mais insinuantes, com mulheres de maiô ou cena de beijo.


Em sua programação, além de filmes comerciais, películas dos anos 40, 50... 
 Arquivo do blog Percursos Urbanos 

Sobre a censura, o radiotécnico, que também foi censor, lembra que, ao ser exibido um filme científico, com cenas de parto e informações sobre doenças sexualmente transmissíveis, foi preciso fazer duas sessões: uma para mulheres, às 15 horas, e outra para homens, às 22. “Foi algo fora do comum, por volta de 56”, diz.

O Cine Nazaré foi tão marcante naquela época que, na exibição de “O Ladrão de Bagdá”, foi necessário abrir uma segunda sessão. Tantas pessoas esperavam do lado de fora e na lateral do cinema, que o muro caiu. “O pessoal começou a se amontoar, a gritar ‘o gato a miar’, a empurrar. Quando o muro caiu, quem estava vendo o filme nem ligou, continuou assistindo”, recorda, divertindo-se.

No cinema cabiam 300 pessoas. Havia dois tipos de ingresso: 200 nas cadeiras, de madeira no assento e no encosto, e 100 ‘na geral’, bem na frente da tela, com banco sem encosto ao invés de cadeira. Na ‘geral’, onde o ingresso era menos de metade das cadeiras, 400 réis, quando chovia era um sufoco.

A água emanava do chão, já que todo o terreno ao redor da Lagoa da Onça ficava encharcado. Para solucionar o problema, oito pisos foram sobrepostos, para aumentar o nível do chão, cuja base foi construída abaixo do nível da lagoa. “Ou a pessoal ficava de cócoras em cima do banco ou tirava o sapato, chinelo ou tamanco e ficava com as pernas na água, vendo o filme”, explica. Do lado de fora, vendedores de bolo, tapioca e café esperavam os cinéfilos para o lanche. Nada de pipoca, ainda.

Seu Vavá ressalta que sempre foi “louco for cinema”. Em 1938, passou em frente ao Teatro São José e viu, deitado no chão e brechando pela fresta da porta, o filme projetado no palco. No Cine Familiar, o dos frades, Seu Vavá começou carregando rolo de filme, com 18 anos.

Por volta de 1960, com o fim dos cinemas longe do Centro (fecharam o Ventura na atual Aldeota, o Dioguinho na praça do Colégio Militar e outros), o Nazaré também fechou. Em 1968 foi a vez do Familiar.

Dois anos mais tarde e dedicando profissionalmente somente ao cinema, Seu Vavá resolveu arrendar o Nazaré e o reabriu. Passou um ano projetando filmes repassados pelo Grupo Severiano Ribeiro, até que as despesas ficaram altas demais. Na década de 60, também arrendou salas em Sobral, Crateús, Russas e Aracati.

Esperança e Criatividade - Matéria de 2008 (Diário do Nordeste)



Arquivo de Juracy Mendonça


Já que não podia manter funcionando sua sala, seu Vavá, movido pelo saudosismo, comprou, nos anos 70, o prédio onde funcionou seu cinema, que é mantido sem alterações. É o mesmo espaço onde, agora, mais de 30 anos depois, ele instalou a nova versão do Cine Nazaré (a terceira), que ganhou corpo com o aproveitamento de equipamentos de vários outros cinemas. As 75 poltronas do lugar pertenceram ao antigo Cine Fortaleza. Os carpetes são os mesmos que cobriam as paredes e pisos das salas do North Shopping -antes da reforma. E o projetor, com mais de 60 anos de uso, veio de Belém. “É um dos melhores projetores que existem”, garante seu Vavá.

Mas nem tudo foi só na base da criatividade. O teto, em PVC, é novo. Assim como o aparelho de ar-condicionado e as instalações do banheiro. “A gente só precisa ficar de olho na entrada do banheiro das mulheres, pois não existe porta para homem sem-vergonha”, conclui. Os filmes são exibidos em três dias da semana, com duas sessões aos domingos e às quintas-feiras (16 e 19 horas) e uma sessão aos sábados (19 horas). O preço do ingresso é simbólico: dois reais a entrada inteira e um real para estudantes e idosos. Por enquanto, ainda não tem pipoca. Mas seu Vavá já pensa em terceirizar o serviço de lanches. Assim, ele garante que “o pipoqueiro que pagar o ingresso vai ter o direito de vender seu produto na entrada”.

A primeira sessão do novo Cine Nazaré foi com o filme “O Pequeno Polegar”. Trinta e cinco pessoas pagaram ingresso. Seu Vavá sabe que não será fácil manter o espaço com o que for arrecadado na bilheteria. E mais difícil ainda obter algum lucro. “Pelo menos, o que foi investido já está pago. Mas sei que, nos três primeiros meses, não vou conseguir cobrir os gastos com energia, aluguel dos filmes - ele traz de São Paulo - e com o pagamento de uma moça que me ajuda”, consola-se. “Se o movimento for bom, porém, as coisas vão ficar mais fáceis”, completa, esperançoso.

Continua...

Vale resaltar que o querido 'Seu Vavá' e sua paixão já viraram filme: "Seu Vavá e sua paixão pela sétima arte”.  O Filme é um curta sobre Raimundo Carneiro de Araújo, que dedica sua vida ao Cine Nazaré. O roteiro é de Iasmin Matos.



Imagem do filme de Iasmin Matos - Arquivo do Site Travessias

Fontes: Diário do Nordeste e Cronologia Ilustrada de Fortaleza de Miguel Ângelo de Azevedo

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O antigo Cine Familiar - Otávio Bonfim


Fachada do Cine Familiar na Praça dos Libertadores, no Otávio Bonfim - Foto Aba Film

Em 1949 começava, no bairro de Otávio Bonfim, a paixão de um cearense pelo cinema. Raimundo Carneiro de Araújo, “Seu” Vavá, começou sua vida profissional como
carregador de filme (o auxiliar do projecionista) do Cine Nazaré, que depois teria o nome mudado para Cine Familiar, e pertencia à paróquia de Nossa Senhora das Dores. Ele trabalhou nesse cinema até 1968, exercendo funções diversas, até chegar a gerente geral em 1957. No Cine Familiar, graças ao publicitário Tarcísio Tavares e ao empresário Maurílio Arraes (arrendatários do cinema às segundas-feiras, mantendo de 1966 a 1970, um dos mais interessantes cinemas de arte de Fortaleza), foi exibido em 16 de fevereiro de 1967, a obra prima de Orson Welles, ‘Cidadão Kane
*.

Seu Vavá - Foto de Neysla Rocha

Depois de aposentado não conseguiu esquecer essa paixão. Comprou as cadeiras do extinto Cine Fortaleza, e devagar, com muito carinho, foi montando seu próprio cinema. E então o Cine Nazaré renasceu, no mesmo bairro de Otávio Bonfim, na rua Padre Graça nº 65. Hoje “Seu” Vavá é o orgulhoso proprietário de uma das últimas salas de cinema à moda antiga, na realidade um pequeno museu, nessa cidade que já teve mais de duas dezenas de cinemas espalhados por seus bairros. Simples, sempre risonho, 81 anos bem vividos, “Seu” Vavá talvez nem imagine que realizar esse sonho foi, ao mesmo tempo, uma declaração de amor a Fortaleza.

O Cine Familiar era anexo a Igreja N.S. das Dores e foi construído com investimento dos frades Franciscanos. Funcionou até a década de 60 como opção de lazer para os moradores de Otávio Bonfim e adjacências.
O Cine dedicava-se à exibição de filmes de arte, localizado no bairro de Otávio Bonfim. Não se localizava, portanto, no “olho” das salas de exibições cinematográficas fortalezenses.

 
Sala de exibição do Cine Familiar na Praça dos Libertadores, no Otávio Bonfim 
Foto Aba Film

O Cine Familiar, foi fundado pelo frei Leopoldo, surgiu para fazer oposição e contrabalançar os malefícios decorrentes da apresentação de fitas a cargo do Cine Odeon, que funcionava em área defronte onde hoje se localiza a Delegacia do 3º Distrito Policial. O Cine Odeon era de propriedade de José Marcelino, àquela época marchante, e que funcionava o seu cinema sem dar grande “bolas” para a moral e os bons costumes, ditados pela censura do jornal O Nordeste.

 
Foto de 1960

Frei Leopoldo diz, em registro: “Em dezembro de 1935, resolvi construir, ao lado da Igreja, no parque dos meninos, um pavilhão aberto para nele ser ensinado o catecismo. Ao mesmo tempo adquiri um velho aparelho de cinema, fora de uso, e quase de graça, dando apenas um pequeno aparelho de projeção fixa em troca. Era minha intenção dar, de vez em quando, uma pequena sessão cinematográfica para os meninos do catecismo. Vendo grande interesse do povo e notando ao mesmo tempo que um cinema vizinho passava todas as fitas, mesmo as condenadas pela censura católica, resolvi dar sessões semanais. Consertei o aparelho, um tanto avariado, o melhor possível e comecei. O resultado foi satisfatório. Em dezembro de 1936, na ocasião da visitação canônica, combinei com o Rev. Pe. Provincial de que o dinheiro do cinema fosse aplicado à pobreza. O Sr. Miguel Rosendo daria dinheiro e mantimentos mediante vales despachados por mim e pelo Sr. José Alexandre, presidente dos vicentinos, entre pessoas idosas. No fim de cada mês resgataria esses vales com o dinheiro do cinema. Em agosto de 1937 adquiri um aparelho já usado para tornar o cinema falado, da mão do Pe. Luis Braga, por 7.000$000, montado aqui e funcionando. O dinheiro foi dado, parte por pessoas amigas da cidade, parte do saldo de cada mês. Era um cinema falado, funcionando até bem, mas só na minha mão, por ser muito complicado. Recebendo, às vezes, pessoas “endinheiradas” da cidade, em visita, as mesmas achavam tudo muito trabalhoso, para mim, muito quente na cabine e acharam de bom alvitre em comprar um aparelho moderno, novo, bom, prometendo dar o dinheiro. Combinei, “exigindo” porém, antes de fazer a encomenda, o dinheiro. Aos poucos vinha recebendo os donativos para esse fim. (...) Lá passam fitas aprovadas pela Censura de O Nordeste”.

Cine Familiar, inaugurado em dezembro de 1937, na Praça dos Libertadores, no bairro de Otávio Bonfim, fundado pelo Frei Leopoldo, pertencente à Paróquia de Nossa Senhora das Dores. Em 12 de agosto de 1968 houve a última exibição no Cine Familiar, com o filme “Bandoleiros do Mississipi”.


Por essa época, a Praça fronteiriça era um imenso areal, cuja travessia incomodava muita gente. Chamava-se Praça dos Libertadores. Ganhou a denominação que hoje ostenta, de Praça de Otávio Bonfim, ao ser inaugurada no final do mês de maio do ano de 1941, na gestão do Prefeito Alencar Araripe, quando foi transformada a área, com a plantação de canteiros, construção de passeio e iluminada com lâmpadas elétricas.

Foto da então Praça dos Libertadores - Arquivo Nirez

O cinema funcionou até 1968 quando foi fechado por exigência do Pe Provincial sob
a alegação de que estava dando mais prejuízos que retorno financeiro. Foi aberta
concorrência para arrendamento da sala de projeção em 1970, saindo como vencedora,
a empresa Severiano Ribeiro, que posteriormente, decidiu pela desativação.

Saiba Mais:

  • 02/12/1937   - Surgiu, no bairro de Otávio Bonfim, o Cine Familiar, na Praça dos Libertadores, pertencente à Paróquia de Nossa Senhora das Dores. 

  • 11/08/1968 - Última exibição no Cine Familiar, com o filme "Bandoleiros do Mississipi". 

  • 18/05/1969 - O antigo operador do Cine Familiar, Raimundo Carneiro de Araújo (Vavá), adquire e reabre o Cine Nazaré, na Rua Padre Graça nº 65, com o filme "Desafio de Gigantes". Ficaria até 1972.

*"O filme Cidadão Kane teve lançamento em Fortaleza, no Moderno, no dia 2 de abril de 1944. Como não chamou a atenção maior dos cinéfilos da época, pensavam muitos que não fora exibido na cidade e o Tarcísio é que exibira pela primeira vez no Cine Familiar."  Ary Bezerra Leite

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Fontes: Diário do Nordeste, Cronologia Ilustrada de Fortaleza de Miguel Ângelo de Azevedo 
e  Site Paroquiadasdores.org

NOTÍCIAS DA FORTALEZA ANTIGA: