Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Praia de Iracema
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Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



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segunda-feira, 1 de julho de 2019

Boate Mystical - Rua José Avelino

Fim dos anos 90, começo de um novo milênio, e a capital cearense ganhava na época uma boate irreverente, com shows de rock, teatro de sombras, apresentações de modelos com cobras vivas, festas inesquecíveis como “Baile de Máscaras” e “Culto a Baco”…

Localizada na Rua José Avelino, 62, próximo ao Dragão do Mar, a excêntrica Boate Mystical (filial da Mystical de Belém do Pará¹) envolvia misticismo e muita música tecno. As festas temáticas tinham bebidas exóticas e atrações cheias de sensualidade. 

A antiga propaganda da boate na televisão era bastante conhecida dos fortalezenses, citando o famoso "Esperma do Morcego", uma bebida vendida na boate. 
O ambiente da Mystical era marcado por sua decoração, toda ela criada pelo proprietário, André Luís Portela Darcier Lobato, o “Kaveira”, e sua equipe, onde o foco da atenção era a dualidade existente entre as forças do universo, com destaque para o bem e o mal.

A boate era dividida em dois ambientes térreos: nas paredes e teto do "Céu" haviam desenhos fluorescentes de figuras e símbolos "de cima"; no "Inferno", os desenhos pareciam ter saído da visita de Dante Alighieri ao inferno, relatada em sua obra "A Divina Comédia".

Acervo Igor Studart
Fachada na época da boate e em 2016
Na verdade, tudo não passava de uma grande brincadeira, muito bem detalhada no site oficial da boate, hoje fora do ar: 

"...Buscamos representar os tormentos atrozes do inferno, que destinam-se a causar terríveis sofrimentos, e transformamos esse mundo de trevas na melhor casa de diversões de Fortaleza, onde imperam a alegria e o sadio entretenimento.
Atrás da Bar Girl que atende "no céu", de vez em quando a luz acende e pode-se ver através da "vitrine" um banheiro com privada e tudo. E, nele, uma mulher toma banho só de calcinha, touca e máscara cobrindo-lhe todo o rosto. Junta gente pra ver. Eles acabam de descobrir o "Banheiro do Voyeur".



Propaganda que passava na TV União

Ontem e hoje
As Jaulas eram outro destaque do ambiente da Mystical. Suspensas no espaço, elas eram os locais preferidos das pessoas que gostavam de se exibir enquanto dançavam.
Todos os fins de semana, no ambiente da Boate Mystical, o bem triunfava sobre o mal, na forma de alegria e descontração. 
A Casa era temática, ímpar, cujo tema principal eram os ícones do misticismo. Era toda ornamentada por pinturas e esculturas de deuses, semi-deuses e divindades de diversos cultos e religiões.

Além dos dois grandes salões: Céu e Inferno, já citados, a boate agregava ainda uma interessante variedade de ambientes como o Limbo das Pegações, um corredor escuro, com as paredes cravejadas de buracos, onde os frequentadores podiam exercitar o sentido do tato. Na parte superior, ficava localizado o Cinema, onde aconteciam sessões ininterrupta de filmes bizarros, capazes de deixar o cineasta Pedro Almodovar de queixo caído.


Para que os frequentadores pudessem relaxar após desfrutarem da pista de dança, havia a "Galáxia", com duas grandes camas, alguns sofás e os tubos do voyeur, através dos quais podiam ser observados casais namorando.
A Capela era o ambiente em que ficava o confessionário, destinado a receber as confissões dos pecados dos frequentadores, onde costumeiramente aparecia o Reverendo Kaveira, para ouvir as confissões e conceder as absolvições.
A Masmorra era uma câmara medieval de tortura, equipada com os mais terríveis instrumentos da Idade das Trevas, muito apreciada pelos admiradores do Marquês de Sade².


O Sarcófago possuía um caixão de casal, magnificamente decorado em tons de lilás, que adicionava mais um ingrediente sinistro ao ambiente mórbido da boite.
O ambiente do Necrotério era dominado por uma legítima mesa de autópsias, por onde já passaram mais de cem mil "cadáveres". Para a cena ficar o mais real possível, nem a indispensável torneirinha para lavar os "corpos", foi esquecida.

Além da Capela e do Consultório Exotérico, destacava-se o Palco, onde aconteciam as surpreendentes performances dos talentosos atores da casa.


A Mystical foi um projeto de entretenimento noturno de André Dacier Lobato, o Kaveira, que aliava música, teatro, cinema e fetiche. Criada originalmente em Belém no início da década de 90, a boate ficou por vários anos promovendo uma revolução comportamental, foi palco de várias festas temáticas e até hoje é lembrada pelos comerciais de TV que viraram “jargão”

Logo na entrada um minotauro recebia os convidados que entravam na casa e passavam a conhecer a capela, o sarcófago, a masmorra, o necrotério, o limbo das pegações, o corredor lambix e consultório espiritual. "O local era um mergulho no imaginário, nas fantasias dos frequentadores, que realizavam seus maiores desejos e presenciavam experiências únicas”, relembra Kaveira. Quem entrava na Boate Mystical pela primeira vez sentia o baque. 



Necrotério
No site oficial da boate, era possível ter uma ideia do que  esperar ao visitar a casa:

"Primeiro a gente fica estático, surpreso, vacilante na escuridão quase absoluta. A mente tenta reagir e sai em busca de um referencial para um indispensável passeio pela casa. O ambiente da Boate Mystical é escuro e chocante. Ao som vibrante do Techno, o laser atravessa a névoa que se espalha por toda a casa. Nas paredes e no teto, pinturas de figuras mitológicas, de uma nitidez impressionante. Entre elas, Terseu espia os pagãos que se divertem na pista de dança. Em uma vida passada, Kaveira foi Dante, ou jamais teria conseguido idealizar, construir e decorar a Mystical. Ninguém conseguiria recriar com tanta fidelidade os círculos do inferno de "A Divina Comédia", senão a reencarnação viva do viajante das trevas. Numa das escadas que levam ao andar superior, Anubis orienta os frequentadores que buscam o repouso no sarcófago. Tendo Cérbero a seus pés, Zeus, o deus maior de todos os gregos, abençoa as noites pagãs da Boate Mystical."


Em 2005, a boate estreou o espetáculo Lucíferos - Sagrado ou Profano?, com a Companhia de Teatro Raízes
O trabalho - uma performance teatral coreográfica - girava em torno de três personagens distintos: Lucíferus, Cristo e Lujoma, uma espécie de profeta maluco, como fazia questão de lembrar o diretor e co-autor do trabalho, John White. Além disso, a animação da noite ficou por conta do Dj Mascarado. 




Os anfitriões da Mystical eram Élida Braz e André Lobato "Kaveira", que na época eram namorados e estavam juntos há dez anos. André é um experiente empresário da noite: é ator e diretor, além de ser Bacharel em Direito e formado em Geografia pela Universidade Federal do Pará. Inteligente e dono de invejável currículo, Kaveira descobriu que não podia passar o resto da vida numa sala de aulas ou nas barras de algum tribunal. Sua paixão pela arte o conquistou para a noite, onde brilhou como ator, e onde era o centro das atenções, no papel de anfitrião da Boate Mystical. 


Apoiado numa plataforma liberada, André "Kaveira" candidatou-se e foi eleito Vereador pelo município de Belém do Pará. Cumpriu integralmente o mandato de janeiro de 1996 a dezembro de 2000 quando, decepcionado, abandonou a política com a frase que bem definiu as câmaras municipais de todo esse Brasil: "Esta casa é a quintessência do inferno, onde se realizam negociatas capazes de surpreender o mais velhaco dos demônios". 

Élida Braz

Se o Kaveira era o cérebro, Élida Braz era o coração da Mystical. Sensível e romântica, ela é escritora e poetiza, autora de versos capazes de tocar profundamente corações e mentes. Tendo já exposto poemas e contos em vários redutos da cultura nacional de norte a sul do país. Atriz, ela já pisou com sucesso nos melhores palcos da vida, que vão da descontraída Mystical, ao Teatro da Paz, em Belém do Pará, um dos templos mais sagrados da dramaturgia brasileira. No cinema, Élida integrou o movimento "Cinema Novo Paraense", estrelando os filmes "Lendas Amazônicas", "Cobra Grande" (convidado para o Festival de Cinema de Vitória) e "O Boto" (que representou o canal GNT no New York Film Festival), exibidos nas telonas do Brasil, Inglaterra e França
Na Mystical, Élida brindava os frequentadores como atriz principal dos pocket shows que tornavam o palco da Boate o centro das atenções das noites cearenses. 

Programação de uma semana na Mystical
Matéria antiga do Diário do Nordeste sobre o
fechamento da boate em uma operação policial.
Após 5 anos, a boate itinerante Mystical deixava a capital alencarina...

Em março de 2010, Kaveira e Élida retornaram à cidade para rever amigos e conferir novos projetos na terra do sol. Muito se especulou se seria o retorno da controvertida casa noturna à capital cearense. 

“Não sei se será agora, mas temos um imenso carinho pelos cinco anos que estivemos presentes no Ceará, e pretendemos voltar sempre”, afirmou na época André Lobato, o Kaveira, que mantém a Mystical em Belém do Pará, somente para festas fechadas.

Em 27 de junho de 2014, de acordo com o Blog Cine Negócios, o filho do ex-vereador e promotor de eventos, André Lobato Filho, pedia ajuda ao Ministério das Relações Exteriores (MRE) para localizar o pai e sua mulher, Élida Braz, que teriam desaparecido na fronteira entre os EUA e o México. De acordo com o filho, Kaveira e Élida gravavam um documentário quando teriam sido assaltados. O Itamaraty dizia ter sido informado do desaparecimento pelo consulado-geral do Brasil na Cidade do México, e que havia entrado em contato com a polícia para localizar o casal. 

Após quase uma semana, sem dar notícias aos familiares e amigos, Élida Braz e o ex- vereador utilizaram uma conta em uma rede social para informar o que teria acontecido com eles na fronteira dos Estados Unidos com o México. 
Segundo postagem no Facebook, Élida contou, sem detalhes, que o casal estava bem de saúde, e que ambos foram vítimas de uma emboscada por parte de coiotes, quadrilha que atua na região da fronteira com o México com os Estados Unidos. Na postagem, Élida conta que, depois do ocorrido, o casal estaria relaxando na Nicarágua.

Foto: Magno Torres
Foto: Magno Torres
Foto: Magno Torres
Com o fechamento da Boate Mystical, André Kaveira virou cineasta e atualmente mora no Rio de Janeiro. Em maio de 2019, André, agora separado de Élida, esteve novamente na Terra do Sol, desta vez para lançar uma nova Dj e relembrar os tempos da sua boate na festa Uma Noite Mystical, que aconteceu dia 1º de junho, na recém-inaugurada Boate Club Viva, na Praia de Iracema (Rua Dragão do Mar 198 - ao lado do Órbita).



¹A Mystical Belém


A Boate Mystical foi fundada em 1999, em Belém do Pará, em um galpão antigo da zona portuária. Tinha como diferencial as apresentações teatrais que aconteciam em um grande palco que ficava no final da boate. No ano 2000, a boate é consumida pelo fogo.

O incêndio da Mystical, foi o mais grave registrado na cidade em muitos anos e resultou numa vítima fatal. André “Kaveira” Lobato, proprietário da boate, lembra que o incêndio se deveu a uma performance feita pelo partner de um artista que se apresentava na ocasião. “Sem nos comunicarem, amarraram palha de aço em fios de algodão, acenderam e começaram a rodar com a tentativa desastrada de causar um efeito pirotécnico. Os pedaços em chamas começaram a se soltar e grudar nas panadas, cortinas das coxias, cenários e no teto, que tinha o isolamento acústico feito todo com espumas, único método acústico conhecido na época”.
Seguranças tentaram apagar o fogo com extintores em vão. “No momento, haviam milhares de pessoas na boate. Orientamos os presentes a saírem imediatamente do local. Todas as saídas de emergência foram abertas e a evacuação foi feita. Em três minutos, a boate estava vazia”, lembra.
Mas um homem que estava de passagem por Belém a trabalho perdeu sua vida carbonizado. “Entramos na boate várias vezes para ver se não tinha mais ninguém, mas ele não foi localizado, pois estava dormindo bêbado atrás de um sofá no mezanino”, rememora o empresário. Kaveira respondeu judicialmente durante dez anos um processo de homicídio culposo e foi absolvido no final. 


²Marquês de Sade, o homem que deu origem à palavra “sadismo” e passou um terço de sua vida preso. Dizem que suas experiências sexuais eram um tanto incomuns.




Leia também:




Fontes: Antigo Site da boate (Hoje Fora do ar), Conceituado.com/ Diário do Pará/ Diário do Nordeste/Divirta-Ce 

sexta-feira, 10 de maio de 2019

O Centenário Poço da Draga - Parte II

Poço da Draga na década 70. Site Oficial Poço da Draga.
O caminho pelo traçado das ruas do Poço da Draga revela mudanças paisagísticas e de opiniões das pessoas em relação ao passado vivido por alguns na localidade. Desde a fundação estrutural de residências mais amplas, como sobrados elevados, até o calçamento de ruas em pequenas pedras se percebe, a partir do relato dos moradores mais antigos, como muito se transformou atualmente na paisagem daquele espaço. Nos depoimentos das pessoas mais jovens também se denota como as preocupações com o Poço da Draga mudaram no decorrer do tempo.
No âmbito discursivo, atualmente é impossível conversar com as pessoas do Poço da Draga sem que elas falem sobre o Acquário do Ceará. De forma explícita ou indiretamente, o assunto sobre a instalação do empreendimento é recorrente, principalmente a preocupação com a possível remoção das moradias.
Poço da Draga na década 1970. No registro, vemos Nicolau macaqueiro. Site Oficial Poço da Draga.
Poço da Draga na década 1970. Macaquinhos de seu Nicolau macaqueiro fazendo a alegria da garotada.
 Site oficial poço da draga
Muitos acham que o Acquário do Ceará será “lindo demais para deixar esse Poço da Draga feio permanecer aqui”, relata Bianca (Moradora do Poço da Draga).
É impossível não inferir a todo o momento a questão de uma possível remoção dos moradores do Poço da Draga devido à implantação do Acquário do Ceará. A inquietação sobre a permanência em suas moradias é constante.

Obras do Acquário - O Povo 2019 
Bianca, já citada, é vendedora e sempre esteve engajada na manutenção das moradias do Poço da Draga diante da tentativa de remoção por conta de obras na região. Contudo, ela não é otimista na permanência das residências atualmente. Em vez de acreditar em possíveis transformações nas ruas do local com a pavimentação e saneamento, ela entende que “é mais fácil para o governo tirar o pessoal na marra”. Segundo ela, a beleza do Acquário, para os governantes, impede a convivência com a “favela suja” ao lado, atrapalhando a visão dos turistas.
Poço da Draga na década 70. Escola Comandante Fernando Cavalcanti, que era supervisionada pelas freiras conhecidas como “irmãzinhas”. Site Oficial Poço da Draga.
Poço da Draga na década 70. Escola Comandante Fernando Cavalcanti. Funcionando no antigo Pavilhão Atlântico.
Site Oficial Poço da Draga.
É certo que o percurso pelas vias do Poço da Draga revela incômodos em relação à condição de vida das pessoas diante de moradias precárias. Principalmente devido à falta de saneamento básico nas ruas, a higiene coletiva parece ser afetada com a ausência de tubulações próprias para o fluxo de dejetos. Diante das promessas não cumpridas dos governantes em efetivar essas instalações de esgoto, muitos moradores do Poço da Draga percebem descaso das autoridades que administram a cidade. Bianca corrobora dessa premissa. O raciocínio dela é que “se não colocam nem os canos é porque querem tirar a gente daqui”.
Rua Viaduto Moreira da Rocha hoje. Google Maps
Rua Viaduto Moreira da Rocha hoje. Google Maps.
Rua Viaduto Moreira da Rocha hoje. Google Maps.
Bianca mora em uma das duas principais vias do Poço da Draga, a rua Viaduto Moreira da Rocha. A outra via importante do local é a Travessa Cidal, que é de menor tamanho e transversal à anterior. Conforme ressaltado, em ambas as vias não há asfaltamento das ruas e nem saneamento básico. Há uma pavimentação incipiente, finalizada apenas parcialmente, por pequenas pedras. No Poço da Draga ainda se faz presente uma série de pequenas vielas, sem denominação oficial, que se inserem em direção ao mangue localizado entre as ruas principais e o estaleiro pertencente à Indústria Naval do Ceará (INACE). Os esgotos das residências acumulados em pequenas encanações improvisadas caminham principalmente por essas vielas, onde muitas pessoas trafegam.

Travessa Cidal hoje. Google Maps.
Travessa Cidal hoje. Google Maps.
Travessa Cidal hoje, Google Maps
Há, aqui, uma divisão interna do Poço da Draga percebida espacialmente que se reflete em opiniões entre os moradores mais antigos em relação aos mais recentes. Nas duas vias principais, embora não saneadas e sem esgotamento tratado, se localizam as residências mais antigas. Nas vielas que dão acesso ao mangue se localizam ocupações mais recentes. Os moradores mais antigos chamam essa região próxima ao mangue onde os novos ocupantes se agregaram dentro do Poço da Draga de “Pocinho”. 
Conversando com moradores mais antigos é possível perceber algumas queixas deles para com as pessoas que moram na área do Pocinho. Embora a maioria dos habitantes não tenha posse oficial de suas residências em todo o Poço da Draga, a improvisação de residências no Pocinho chama a atenção dos moradores mais antigos.

Mapa com destaque para as duas ruas principais do Poço da Draga: a Rua Viaduto Moreira da Rocha e a Travessa Cidal. Disponível em: Google Maps
Esboço de mapa onde se localiza o aglomerado urbano do Poço da Draga (à esquerda da avenida, separado pela rua transversal que dá acesso à praia). Próximo a área de mangue se localiza o “Pocinho”, caracterizado por ocupações recentes de novos moradores da região. Fonte: Edson Alencar Collares de Bessa 
Poço da Draga na década 70
Banho improvisado por falta de água encanada.
Site oficial poço da draga
Nascido no Poço da Draga, filho de pais que moram no local há mais de cinquenta anos, o agente de saúde Sílvio, afirma que “o pessoal do Pocinho não respeita os mais antigos, fazem um monte de casinha de papelão aqui e poluem o manguezal”. Sílvio destaca que brincava na região do Pocinho quando era criança. Atualmente não deixa seus filhos pequenos fazerem isso, pois teme pela segurança dos filhos ante a uma possível hostilidade de tais “invasores”.

O aumento da violência e do tráfico de drogas é outro fator alarmado pelos interlocutores como decorrente da ocupação recente do Pocinho. O comerciante Ataíde, afirma que devido à presença dos “forasteiros” do Pocinho, a truculência policial se acentuou nos últimos anos dentro do Poço da Draga. 

A polícia chega aqui e trata como se todo mundo fosse marginal, delinquente. Como se todo mundo cheirasse droga, fosse vagabundo. E não é assim! Aqui tem famílias, pessoal que mora aqui está há muito tempo. Meu pai tem 70 anos de Poço da Draga! Eu nasci aqui e nunca vi tanto desmando da polícia aqui dentro como agora. E a gente pode fazer o quê, me diz? Nada. Por que os “homens” vem aqui dentro do Pocinho pegar os traficantes escondidos de outros bairros lá. Os “playboy” da Aldeota vem aqui pra pegar droga deles também, até filho de político famoso já foi preso lá dentro [do Pocinho] com drogas... Desse jeito, aí que nossa fama com as autoridades vai para o espaço de vez! Eles pensam que aqui todo mundo é igual, que é tudo bandido. (Ataíde, em 08/02/2014).
Foto do livro de Paul Walle em 1912. Ainda não havia qualquer vestígio de moradia na área do Poço da Draga.
Acervo J. Terto de Amorim
Foto aérea de Amélia Earhart sobrevoando o Poço da Draga em 1937. 
Conseguimos observar algumas pequenas embarcações (já existia atividade pesqueira)
e algumas casinhas, ainda surgindo de forma tímida. Nascia assim a comunidade do Poço da Draga.
Ataíde afirma que compreende a situação dos moradores do Pocinho. Porém, ele acha que ali não é lugar para eles. A convivência com insalubridade e condições desfavoráveis de higiene são aspectos que deveriam fomentar alternativas de saída do local para aquelas pessoas. “Morar no Poço da Draga já é difícil e lá é quase impossível”, ele destaca. Segundo o comerciante, as pessoas que moram no Pocinho estão lá mais pela localização do Poço da Draga. “Aqui é perto de tudo, próximo ao Centro e a praia, além de ser uma favela no meio da Praia de Iracema, avalia Ataíde como fator de permanência dos ocupantes do Pocinho.

Ontem e Hoje do mesmo ângulo.
Foto atual: Iago Albuquerque.
O estudante André, cujos pais moram no Poço da Draga há décadas, ressalta que o Pocinho é um “local de discórdia”. Ele afirma que “não há sossego lá” devido ao entra-e-sai de pessoas vindas de outros bairros. Acostumado a frequentar a região do Pocinho desde a infância, André relata que já viu muitos jovens “se perderem” nas drogas e no crime pela influência dos moradores do Pocinho. Em um local com pouca expectativa de emprego e estudos para as pessoas, a criminalidade parece ser uma oportunidade, segundo a avaliação dele. André lamenta a perda de muitos amigos para o “mundo das drogas” e do crime. E no sobressalto entre a presença de ocupantes indesejados e os transtornos causados por eles, André destaca a homogeneização de opiniões externas sobre a totalidade de moradores do Poço da Draga. Nesse ponto ele parece concordar com Ataíde. Contudo, André vai além da ação policial e destaca as opiniões de quem passa pelo Poço da Draga.

As pessoas que passam por aqui nem sequer veem a gente [dentro do Poço da Draga]. Só se for muita atenção mesmo. Por que nós estamos aqui no meio das coisas bonitas para os turistas, eles [provavelmente, os governantes] querem esconder a gente. Esse pessoal vem de fora [os moradores do Pocinho], cometem crimes lá fora e vem se esconder aqui. Quem sofre os assaltos ou tem os filhos presos por estarem com drogas já fica com raiva da gente. E começa todo mundo a falar mal. Eu já vi gente passar na avenida dizendo que tem medo de vir aqui na Praia de Iracema por que tem essa “favelinha” cheia de bandido, que somos nós. (André, em 14/10/2014).

Imagem da década de 60. Vemos a ponte dos Ingleses, a ponte Metálica e a comunidade do Poço da Draga.

Rosa afirma que até uma colunista social de um jornal famoso da capital cearense já publicou um texto afirmando que o Poço da Draga é uma “favela perigosa, cheia de delinquentes”. Contudo, enfatiza que nessa ocasião houve união das pessoas para exigirem direito de resposta a esta colunista. Concedido e publicado pelo jornal, o direito de resposta veio em forma de uma carta redigida por vários moradores do Poço da Draga. Ela interroga “como é que pode uma pessoa que nunca entrou na comunidade falar mal da comunidade? Entendeu? Ainda bem que a resposta veio, pois a gente é assim, a gente não deixa barato não!”.

A localização do Poço da Draga próxima à área litorânea da Praia de Iracema é percebida por muitos moradores como ameaça dessa “cobiça” e “inveja” de muitos, bem como fato preponderante para tentativas de remoção. Embora elas saibam do risco iminente de perderem suas residências, as pessoas que vivem no Poço da Draga têm alguns benefícios quanto a estarem naquele local. Dentre eles, está a proximidade ao Centro da cidade e à praia. Muitos, como Clóvis, nem sequer pensam na possibilidade de sair da região. Isto porque “dá pra fazer tudo a pé aqui, não precisa pegar ônibus pra ir ao Centro e a praia é aqui do lado”, afirma ele. Sílvio brinca com a repercussão de obras¹ na região ao afirmar que “todo mundo tem inveja daqui e queria estar nessa região privilegiada da gente”.

No Centro de Fortaleza se localiza o Posto de Saúde Paulo Marcelo (Rua 25 de março, nº 607), que serve aos moradores do Poço da Draga. Conforme afirmado pelos moradores, a praia é fonte de beleza e lazer a alguns passos da maioria das casas. Os estudantes, em sua maioria de escola pública, tem acesso à educação básica por escolas localizadas também no Centro de Fortaleza. Para os moradores católicos, a arquidiocese que coordena a região do Poço da Draga é a própria Catedral Metropolitana de Fortaleza, fato este enaltecido por alguns, como Bianca. Ela diz com entusiasmo que “aqui [no Poço da Draga] é tão bom que somos abençoados é pelo arcebispo, não é por qualquer padre não”.

Rosa afirma que todos esses benefícios da localização do Poço da Draga são fatores de risco para a permanência dos moradores em suas residências. Embora ela já tenha visto várias tentativas de implantar empreendimentos na região não darem certo, Rosa destaca que as transformações estão ocorrendo gradativamente e, a cada dia, o território do Poço da Draga parece ser mais curto. Ela compartilha as perspectivas de outros moradores mais antigos ao afirmar que “hoje já não me sinto mais aqui como minha praia”. Isto porque “estão sempre inventando coisas para fazer aqui e tirar a gente”.

O que se mostra em face tanto aos fatos históricos quanto aos relatos das pessoas é que as obras constantes (ou suas tentativas) no Poço da Draga parecem sempre estar ligadas às remoções dos moradores. Em vez de uma tentativa de melhoria das condições de moradias das pessoas e valorização do espaço “privilegiado” do local com incentivos para a manutenção de quem está lá há muito tempo, o que se vê é sempre algum movimento para se tentar a retirada. 

Poço da Draga em 1975. Foto Correio do Ceará. Acervo Renato Pires.
O que se observa é a presença, no Poço da Draga, de obras que estimulam melhorias na região de seu entorno e não propriamente no espaço urbano em que se localiza a moradia das pessoas. Ligadas a etapas e períodos históricos distintos, as obras fomentadas por agentes externos (ligados muitas vezes aos órgãos de governança) para a região do Poço da Draga são, em sua quase totalidade, excludentes das pessoas que lá vivem.

Comunidade do Poço da Draga na Praia de Iracema. Década de 80. Acervo Renato Pires.

Leia também a Parte I

¹O contexto que se insere aqui é referente a outra obra que foi projetada para se estabelecer na região do Poço da Draga, o Centro Multifuncional de Feiras e Eventos (CMFE), em 2001.

Crédito: ADERALDO, Mozart Soriano. 1993. História Abreviada de Fortaleza e Crônicas sobre a cidade amada. Fortaleza, CE: Edições UFC./Edson Alencar Collares de Bessa - O Poço da Draga e a construção do acquário/Arquivo Nirez/ROCHA JR., Antônio Martins. 2000. O turismo globalizado e as transformações urbanas do litoral de Fortaleza. Arquitetura e estetização da praia de Iracema. 2000. Fortaleza, CE: Dissertação de Mestrado em Arquitetura, Universidade Federal do Ceará (UFC)./Site Comunidade Poço da Draga/ Jornal O Povo/Acervo pessoal

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