Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Pirambu
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Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



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sábado, 14 de julho de 2012

O povoamento do Pirambu - Parte II


A influência do Partido Comunista no Pirambu

As indústrias presentes na Zona Oeste da cidade foram importantes para o fortalecimento do Partido Comunista Brasileiro, pois o mesmo passou a atuar diretamente na organização dos operários, principalmente no bairro do Pirambu.

O Partido Comunista Brasileiro (PCB) nasceu em Niterói (Rio de Janeiro), em março de 1922. Esse partido foi fundado por ex-anarquistas, operários, estudantes e intelectuais entusiasmados com o extraordinário acontecimento baseado nas idéias do socialismo científico de Marx e Engels, a revolução socialista na Rússia em 1917.

Na década de 1920 o PCB era um pequeno partido que atuava na clandestinidade e disputava a liderança sindical com os anarquistas. Mesmo sendo um grupo pequeno, os comunistas tinham uma incrível capacidade de se organizar e lutar. Eles editavam jornais, livros e revistas que explicavam e defendiam suas idéias e que eram distribuídos em escolas e portas de fábricas. Atuavam nos sindicatos, tentando ganhar eleições para direção e influenciar os trabalhadores.

Por atuar na clandestinidade o Partido Comunista criou o BOCBloco Operário Camponês, uma fachada legal para poder concorrer às eleições. Conseguiram até eleger dois deputados federais. Aos poucos foi ganhando forças nos sindicatos de todo o país.

No Ceará, as idéias marxistas começaram a entrar com grande intensidade por volta de 1926, quando simpatizantes do comunismo reuniram-se na antiga sede da União dos Pedreiros do Ceará para discutir as “idéias revolucionárias” e acabaram sendo influenciados pelas lideranças de tal partido.

Em 1927 foi fundado em Fortaleza o BOC - Bloco Operário Camponês, tendo a frente José Joaquim de Lima e outros sindicalistas. Nesse mesmo ano as idéias do partido começaram a se espalhar por vários municípios do Ceará.

Em 1945 o PCB foi autorizado a funcionar como partido e seus membros puderam atuar livremente. Um partido de muito sucesso graças à espetacular vitória Soviética sobre os Nazistas. Nessa época o PCB conseguiu dezenas de milhares de adeptos entusiasmados.

Nas eleições de 1945, o PCB foi um partido bem votado nas grandes cidades, chegando a eleger um senador, Luís Carlos Prestes (o mais votado do país) e 17 deputados federais. Era o quarto maior partido do país.

O crescimento do PCB passou a incomodar a classe dominante brasileira, principalmente os políticos conservadores do PSD e da UDN. Os comunistas tiveram uma participação importante na Assembléia Constituinte de 1946, defendendo a reforma agrária e outros projetos que beneficiariam a classe trabalhadora brasileira. Suas propostas não foram aceitas pela elite que governava o país. Em 1947 o presidente Dutra proibiu o seu funcionamento.
   
No Ceará o autoritarismo também predominou e cresceu entre os conservadores o movimento de combate aos comunistas, tendo a Igreja Católica como grande aliada. Apesar da perseguição os comunistas conseguiram adquirir o jornal O Democrata, que passou a ser porta-voz do PCB local. 



Com a aquisição do jornal O Democrata, os marxistas cearenses puderam veicular diariamente sua ideologia e denunciar abertamente a aviltante exploração de quem eram vítimas os operários e camponeses.

Dentre as discussões tratadas pelo O Democrata, estava a questão da terra, do transporte, da água potável e da eletricidade. Por isso, ele teve uma grande penetração nos bairros habitados por pobres e operários. Nestes bairros, o jornal possuía postos de vendas nas mecearias e nas farmácias, promovendo debates e procurando conscientizar a população a lutar por seus direitos fundamentais e da importância da organização para reivindicar melhorias como, luz, calçamento, água, segurança, etc. Combatia também a carestia, promovia campanhas de alfabetização e defendia atividades recreativas para os pobres. Por isso, o PCB teve ampla penetração nos bairros da periferia de Fortaleza, notadamente, no Pirambu, um bairro esquecido pela classe dominante local.

No Pirambu, o jornal ganhou muitos leitores e apoiadores, visto que, a presença do PCB já era um fato concreto no bairro, principalmente a partir da criação do Comitê Democrático de Libertação Nacional e da Sociedade de Defesa do Bairro do Pirambu.

Por estar ao lado dos moradores na luta por terra, trabalho e pão. O Democrata tornou-se um importante veículo de informação e de incentivo para a população do Pirambu no processo de organização. Isso pode ser evidenciado na reportagem abaixo:

“(...) os moradores não devem ter uma ilusão nos chamados ‘canais competentes’ porque o governo está com os exploradores do povo. A solução, portanto, está nas mãos dos habitantes, na sua luta contra a expulsão e por outras reivindicações de seu bairro como transporte mais abundantes, higiene, luz, calçamento, etc.” (O Democrata, 1958).

Por sua postura crítica e demonstrar estar preocupado com as necessidades dos moradores da periferia, o jornal teve uma boa circulação no Pirambu e em outros bairros de Fortaleza.

A Igreja Católica e a campanha anticomunista

O crescimento das idéias comunistas no Ceará deixou preocupada a elite dominante do estado, que rapidamente iniciou uma ferrenha campanha anticomunista. Essa se fez sentir por duas frentes. A primeira com mais intensidade foi articulada pela imprensa, notadamente pelo jornal Correio do Ceará, órgão local dos Diários Associados - pertencente a Assis Chateaubriand – que diariamente transcrevia ásperos artigos de periódicos do sul atacando os comunistas.



 

A segunda frente de combate ao comunismo foi encabeçada pela Igreja Católica, uma instituição muito poderosa, cujo anticomunismo chegara a ser algo doentio. Sob a orientação do bispo de Fortaleza, dom Antônio de Almeida Lustosa, o Clero cearense, aliado aos políticos de direita e aos latifundiários locais, passou a combater de corpo e alma o comunismo. Para tal projeto, se utilizou de todos os instrumentos possíveis. Sendo o jornal O Nordeste, um dos meios de comunicação bastante usado, além de outras instituições sob sua influência, como: os Círculos Operários Católicos, o Centro Social Arquidiocesano, a Ação Católica e a União dos Moços Católicos, promovendo uma série de palestras e seminários; intensificando, inclusive, obras de caráter assistencialistas e de caridade nos bairros pobres de Fortaleza.
   
Sendo a Igreja uma instituição anticomunista, seu objetivo com as obras assistencialistas e de caridade era:

“(...) resguardar para si a nobre função de proteção e apoio à classe operária, o que faz através de esclarecimentos constantes acerca das leis trabalhistas; de denúncias, de situações em que estas leis são violadas, de advertência à classe empresarial em relação às suas maquinações de abuso à classe obreira; e de aplauso ao real cumprimento dos direitos do trabalho. Na realidade, busca a Igreja conquistar a classe operária e mantê-la sob controle, longe das influências das esquerdas que no período de redemocratização se expandem no seio do movimento operário cearense." (ARAGÃO, 1987, p.9).

Seguindo sua estratégia de desestruturação do trabalho que o Partido Comunista vinha desenvolvendo no Pirambu, a Igreja enviou para o bairro o Padre Hélio Campos.

De acordo com o depoimento de Carlos Careca:

“Quando o Padre Hélio chegou em 1958, no Pirambu, a cidade se encontrava em poder dos comunistas, bem organizados. Ele não foi recebido de braços abertos pelas lideranças da época. (...) Não custou muito, o novo pároco contou com a ajuda de 72 homens, dispostos a passar até pelo fogo por ele. Cada semana o Padre dava aulas de formação e os representantes do bloco de casas, em número de 247, juntos com o seu vigário, prestavam contas publicamente, sobre tudo, que durante a semana fizeram em favor do Pirambu. No espaço de quatro anos converteu-se o Pirambu comunista, numa comunidade cristã fervorosa. Todo o poder passou a se concentrar nas mãos do Padre Hélio.” (Carlos Careca. Antigo morador do Pirambu e organizador do grupo Quadrilha Raízes Sertanejas).

Pelo depoimento, podemos perceber que um dos objetivos da Igreja Católica era desarticular o Partido Comunista, negando sua influência e combatendo seu trabalho na periferia da cidade.

O Padre contou logo com o apóio da classe dominante local, que ao ajudar as famílias do Pirambu, poderia propiciar um telhado seguro para muitas famílias que habitavam os casebres, deixando as crianças bem nutridas, isentas de tuberculose, podendo brincar e sorrir novamente. Por trás desse assistencialismo estava o interesse de preparar homens e mulheres decididos a combater junto com o zeloso vigário o comunismo.
Leia a parte I




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Crédito: Artigo “O Pirambu e seus atores sociais: Do povoamento em 1930 até a Marcha de 1962.”  de Raimundo Nonato Nogueira de Oliveira.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O povoamento do Pirambu


A década de 1940 foi de profundas mudanças no mundo, o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota dos Regimes nazi-fascistas caracterizou muito bem esse período. No Brasil deu-se o fim da Ditadura do Estado Novo, iniciando-se, pois um período democrático que vigorou no país até 1964.

Foi um período de crescimento industrial e de diminuição da produção agrícola. Um verdadeiro contraste, de um lado a produção industrial crescia e do outro aumentava cada vez mais a situação de miséria da população.

O Ceará continuava a ser um estado rural e economicamente atrasado, ora era imensa a concentração latifundiária e profunda as contradições sociais. A nossa economia girava em torno do comércio e do binômio pecuária-agricultura. As atividades industriais eram pequenas, limitando-se quase que exclusivamente às fábricas têxteis e ao beneficiamento de oleaginosas como oiticica e mamona.

Em Fortaleza surgiram muitas indústrias o que de certo modo facilitou a concentração de moradores na periferia. Nesse período houve um expressivo crescimento dos movimentos populares, principalmente no bairro do Pirambu, onde era bem significativo o número de fábricas instaladas na sua proximidade, isto é, no vizinho bairro de Jacarecanga.

PirambuAv. Filomeno Gomes, ladeira em frente a Escola de Aprendizes Marinheiros, descendo para a praia. no lugar dessas casas, hoje se encontra a Paróquia São Francisco de Assis. Arquivo Nirez 

Por ser um bairro localizado na zona oeste, à beira-mar e por estar a 3 km de distância do centro da cidade, o Pirambu tornou-se um local atrativo para as famílias que devido às condições difíceis, se aventuraram a fugir do sertão, migrando para Fortaleza na procura de dias melhores.

Não só o Pirambu, mas outros bairros pobres de Fortaleza têm sua origem em decorrência dos constantes deslocamentos de lavradores sem terras e pequenos proprietários que chegavam a urbe devido à rigidez da estrutura fundiária vigente em nosso país.

As migrações se intensificaram mais nos períodos de estiagem mais prolongadas, quando centenas de famílias deixaram sua terra natal e se deslocaram para a capital, visto que, esta oferecia melhores condições e dispunha de empregos, nas indústrias nascentes na periferia da capital.



Pirambu na década de 60 - Acervo O Povo

Muitas das famílias que chegaram do interior do estado acabaram por se abrigar debaixo de pontes ou longo das praças, ou se dispunham a vagar sem rumo pelas ruas do centro da cidade. Essas famílias passaram a procurar lugares que pudessem oferecer abrigo, mesmo que esses fossem temporários. Os becos, favelas, áreas alagadas, zonas de difícil acesso passaram então a abrigar a massa de agricultores vindos do interior, pois eram os únicos locais possíveis de moradia longe do olhar disciplinador e higienizador do poder local.

O povoamento do Pirambu se insere no contexto do intenso êxodo rural que ocorre a partir da década de 1930, e da expansão da ferrovia.

De acordo com o depoimento de um antigo morador, a ferrovia facilitou o povoamento do Pirambu.


Antigo kartódromo do Pirambu - Arquivo Carlos Juaçaba

“Quando os retirantes chegavam a Fortaleza desembarcavam na estação do Otávio Bonfim e se deslocavam para o Pirambu, onde existia um Campo de Concentração. Em pouco tempo a área concentrou uma grande massa de excluídos, que se tornaram esquecidos pelas autoridades e passaram a viver de uma maneira marginal.” (Carlos Careca. Articulador cultural do Pirambu e fundador do grupo Quadrilha Raízes Sertanejas).

Durante a década de 1930, O Pirambu passou a concentrar retirantes desembarcados em Fortaleza, caracterizando-se, assim, como um território habitado inicialmente por pescadores e depois por imigrantes que chegaram ao bairro e logo se alojaram nas dunas, erguendo seus barracos e casebres de papelão, barro e palha, sem perguntar, quem era o proprietário do terreno. Muitas famílias vieram nos períodos de estiagem, deixando o interior para sobreviver na capital. Assim cresceram muitas habitações, sem nenhum planejamento, sem ruas, sem luz, sem água e higiene. Nascia assim, a favela do Pirambu. O que entendemos por favela?

O resultado da ação de grupos socialmente excluídos que ocuparam terrenos públicos ou privados, via de regra inadequada para a valorização fundiária e a promoção imobiliária. A ação desses grupos, que se dá espontaneamente, representa, de um lado, uma estratégia de sobrevivência e, de outro, de resistência a um sistema social que exclui parcela ponderável da população de suas benesses. (CORRÊA, 2001, p.163).

Surgem então as primeiras favelas na orla marítima de Fortaleza, uma área inicialmente habitada por pescadores e que nos períodos de seca passará a abrigar os retirantes que chegavam à cidade.

Como uma faixa da praia geralmente era de propriedade do Ministério da Marinha, o povo do Pirambu, procurou saber se por parte deste Ministério existia alguma proibição de alojamento neste local. A resposta foi negativa. Continuou a imigração, espalhando-se sobre oito quilômetros das dunas. 


Arquivo Jangadeiro Online

O grande fluxo de pobres na orla marítima, num espaço inicialmente ocupados por colônias de pescadores, suscita a construção de uma grande favela. Nesse espaço de migração intensa, os retirantes acabaram deixando a condição de flagelados, passando a viver como favelados.

Nessa perspectiva, evidenciamos a comunhão de pescadores e favelados que passam a dividir o mesmo espaço, vivendo por um determinado tempo em comunhão e sem conflitos aparentes. Contudo, a “paz” em seu efêmero espaço de tempo, cedeu lugar a conflitos pela posse da terra.

Por ser um bairro situado em local privilegiado, o Pirambu sempre representou um espaço de grande interesse por parte da especulação imobiliária. Além disso, sua proximidade ao centro da cidade, na orla marítima e das fábricas instaladas ao eixo viário da Avenida Francisco Sá, estendendo-se até a Barra do Ceará.

No ano de 1926, instala-se no bairro de Jacarecanga a indústria têxtil e de cigarros, em 1927 na Avenida Francisco Sá tem-se a fábrica de tecidos e em 1928 a Fábrica dos Urubus, da Rede Viação Cearense. (SOUZA, 1978, p.80).

A partir de 1930, Fortaleza passa por profundas transformações. Surgem ao longo da ferrovia da Avenida Francisco Sá, na zona oeste, os primeiros estabelecimentos industriais de porte, formando um verdadeiro pólo industrial no bairro de Jacarecanga. Nessa época, a população da cidade chegava à marca de 100 mil habitantes, na sua maioria operária e pessoas excluídas pela sociedade, que passam a viver segregado em favelas, espaços de moradia para aquelas que não viviam nas ruas a mendigar.

(...) em 1933, com as primeiras chuvas, o Governo oferecia passagens, distribuiu sementes para o plantio, mas nem todos retomaram ao Sertão. Muitos permaneceram em Fortaleza. Alguns estudos sobre o processo de favelização em Fortaleza assinalam os anos de 1932/33 como marco na expansão da periferia de Fortaleza. (SILVA, 1992, p.29).


 

Fotografia de Daniel Roman

O Pirambu é um bairro situado entre o Arraial Moura Brasil e a Vila Santo Antônio. Localizada na área litorânea, toda a paisagem foi sendo alterada por ocupação popular, constituída de pescadores, operários e pequenos comerciantes. Certamente a ocupação decorreu, também, da implantação de indústrias nesse setor. As indústrias se estendiam do bairro Jacarecanga até a Barra do Ceará.

A história de Fortaleza está no contexto de: “Grandes favelas que se transformaram em bairro e ainda hoje permanecem às margens da fachada marítima, como, por exemplo, o Pirambu”.(RIOS, 2006, p.17).

Nos anos 1940, a área que anteriormente era ocupada por colônias de pescadores e retirantes, passa a despertar a cobiça da classe dominante local. Inicia-se, então, um lento processo de expansão dessa área, com a instalação de chácaras e casas de Veraneio, os ricos atraídos pelas belezas naturais do lugar: o encontro do mar com o Rio Ceará, os coqueiros e as dunas, faz do Pirambu um território de elevado valor paisagístico.

Pirambu a maior favela do Ceará e a 7ª maior do Brasil

Assim, motivados pela especulação imobiliária, famílias ricas de Fortaleza, passaram a reclamar junto ao Ministério da Marinha, os direitos como proprietários das terras do Pirambu.

Mas os moradores do bairro não ficaram de braços cruzados, começaram a se organizar e por meio de muitas lutas e com apoio de diversas instituições conseguiram permanecer na área sob constante tensão.

De acordo com documentos disponibilizados no Centro de Documentação do Pirambu (CPDOC), o bairro até o início da década de 1940 já abrigava um número significativo de operários que trabalhavam nas indústrias localizadas na Avenida Francisco Sá e no bairro de Jacarecanga. Nessa época era imensa a influência do Partido Comunista Brasileiro (PCB) nos movimentos populares de Fortaleza. A experiência sindical dos trabalhadores que residiam no Pirambu e a ação do PCB na periferia da cidade, foram importantes para a organização da famosa Marcha de 1962, cuja reivindicação era Terra, Trabalho e Pão.

Além da atuação do PCB, o Pirambu também contou com forte influência da Igreja Católica, principalmente após a chegada do Padre Hélio Campos em 1958. O Padre teve papel importante na conscientização dos moradores na luta pela terra, pois através do Evangelho, passou a fazer uma análise da conjuntura sócio-político-econômica da área em que residiam muitas famílias esquecidas pelas autoridades.


 

Padre Hélio Campos


O Pirambu havia se tornado em pouco tempo um bairro bastante populoso, mas a realidade era deprimente, pois faltava infra-estrutura básica, as famílias habitavam barracos sem nenhum saneamento, infestados de verminoses, as mães davam à luz no único cubículo, numa esteira de palha.

As ameaças de despejo eram constantes, o que levou o Padre Hélio Campos a adotar uma postura crítica em relação ao poder local. Tal fato pode ser evidenciado a partir de um depoimento de um antigo morador do Pirambu, onde podemos perceber a coragem do Padre na sua luta a favor dos pobres, enfrentando aqueles que se diziam proprietários das terras e as autoridades policiais.

“Uma vez, quando a polícia quis derrubar uma casa, o Padre Hélio subiu no telhado e gritou de cima, que podiam começar. (...) Ele bem organizou a sua defesa e um sistema de alarme que podia avisar no período de uma hora quarenta mil paroquianos. (...) Mesmo depois de uma declaração jurídica oficial em favor dos proprietários, o Padre continuava a defender os pobres, pois duvidava do valor e legalidade dos documentos apresentados. (...) Quando 19 famílias deviam deixar suas casas, ele mandou soltar quatro horas antes 19 foguetes, e imediatamente juntaram-se, bem em ordem, os homens do Pirambu, para impedir o trânsito nas entradas do lugar. As mulheres e as crianças formavam um círculo bem fechado, ao redor das casas comprometidas. O resultado? Não se pensa mais na possibilidade, de desterrar o povo do Pirambu, sabendo, que qualquer nova tentativa provocaria uma revolta pública na cidade, pois, os estudantes e operários entrariam logo no primeiro alarme do Padre Hélio, em ação”. (Carlos Careca. Antigo morador do Pirambu e organizador do grupo Quadrilha Raízes Sertanejas).


Além de mobilizar os moradores contra as ordens de despejos, o Padre Hélio passou a denunciar na imprensa a situação de miséria do povo do Pirambu e para tal contou com o apoio de jornais locais, notadamente o Democrata. Um jornal criado em 1945 pelo Senador Olavo Oliveira e adquirido em 1946 pela secção local do Partido Comunista do Brasil.




Crédito: Artigo “O Pirambu e seus atores sociais: Do povoamento em 1930 até a Marcha de 1962.”  de Raimundo Nonato Nogueira de Oliveira. Desenho de Guga Detoni

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

No auge da Leste–Oeste


Construção da Av. Leste-Oeste - Anos 60

Início dos anos 70, o auge da Discoteca. O movimento mundial da chamada Dancing Music assolava o país. A MPB estava no fundo do poço. Tudo que lembrasse cantores ou canções em português soava e era rotulado como brega. As músicas tinham obrigatoriamente que ser em inglês para ter aceitação. Cantores medíocres, letras idem e arranjos bizarros completavam o sucesso. E o som necessariamente tinha que ser alto, muito alto. De preferência ensurdecedor para encobrir as vozes desafinadas e as letras sem nexo. A platéia gritava, pulava freneticamente, sem ritmo e sem cadência sob luzes estroboscópicas, feixes coloridos e piscantes de luzes refletindo nos globos espelhados que giravam no teto das salas escuras. O chão, as paredes, o teto, todo ambiente parecia se mover. A fumaça dos inúmeros cigarros e por vezes artificial (de gelo seco) completava o ambiente asfixiante e delirante das discotecas. As velhas boates, promovidas a pistas de dança e adaptadas de qualquer maneira ao modismo, surgiam renovadas e com nomes exóticos. Templos da diversão e prazer e também de muita droga e sexo, muito sexo.

Foi nessa época e nesse ambiente que surgiram e floresceram os inúmeros bares, boates e inferninhos da nova e recém inaugurada Avenida Leste-Oeste. A cidade crescia vertiginosamente, puxada pelo “milagre econômico” e sob a batuta da Gloriosa Revolução de 64. Bebidas, drogas, prostituição, tudo podia. Contanto que não fosse contra a ordem pública ou oposição ao regime. As novas avenidas começavam a rasgar a velha Fortaleza, inclusive com a construção do seu primeiro viaduto. Viaduto esse que ficou famoso e para não fugir ao espírito moleque do cearense foi logo batizado de “Tatazão”. Uma homenagem ao conhecido e popular homossexual “Zé Tatá”, um velho travesti que residia no submundo do centro da cidade. A região central também começava a mudar.

Pertinho dali, na Praça da Estação e por trás da velha Estação da REFFSA ficava a zona do baixo meretrício, o popular e conhecidíssimo Curral e mais abaixo as Cinzas. Um lugar degradante, formado por vielas imundas com seus inúmeros barzinhos e bordéis e habitado por prostitutas e marginais. Uma vergonha para a cidade. Era necessário extirpar essa ferida do centro da capital. A construção da nova e imponente avenida veio a calhar. Como se diz por aqui: passaram a máquina, literalmente. Não ficou nem as cinzas dos casebres e dos velhos cabarés. Uma larga e asfaltada avenida foi aberta cortando a cidade pela orla no sentido Leste-Oeste, inaugurada oficialmente em 1973 e batizada com o pomposo nome de Avenida Presidente Humberto de Alencar Catello Branco. Pra variar, o nome não pegou e até hoje é conhecida apenas como Av. Leste-Oeste. Começando no centro, na altura do QG da 10ª Região Militar, passando pela Escola de Aprendizes Marinheiros e pelos bairros do Jacarecanga, Morro do Ouro, Pirambú e indo até a Barra do Ceará. Uma magnífica obra de engenharia urbana e uma limpeza visual e social de várias áreas degradadas e miseráveis da capital.

Inauguração da Av. Leste-Oeste em 1973 - Arquivo Nirez

As autoridades esqueceram, porém de um detalhe. O que fazer com os antigos moradores do Curral? Com o fim da zona, como os antigos proprietários de bares e cabarés e as dezenas de prostitutas e seus cafetões iriam sobreviver sem seus negócios? Não deu outra. Logo no início da recém inaugurada avenida começaram a surgir as novas casas de diversão. Pipocaram inúmeros bares toscos com estruturas improvisadas e nomes pitorescos. Eram as tais discotecas, um misto de bar e restaurante e com pistas de dança grotescas. A maioria delas coladas umas nas outras, formando uma longa fila de pontos de encontros e de prostituição. Entre os “pointes” se destacavam pelo movimento e estrutura os bares Beco, Reboco e Ladeira. Tinham de tudo no “cardápio”, além de bebidas e comidas. Usando uma expressão bem cearense: nesses locais tinha “viado pra dá de páu” e “rapariga dava no meio da canela”. E tudo movido ao som ensurdecedor das “discotecas” e muita, muita bebida.

Curiosamente junto com o surgimento de tais bares-discotecas, ou puteiros como queiram, aumentou inexplicavelmente a presença de homossexuais nessa região da avenida. Não sei explicar se pela evolução dos costumes ou se pela miséria e degradação social da época, mas nunca se viu tanta “viadagem” nessa terra de macho como naquele tempo. E ao som dos “hits” da época os gays, “travecos” e assemelhados disputavam, por vezes às tapas, a clientela com as raparigas. As bandas e os cantores do momento eram, entre outros, The Police, ABBA, Village People, Tina Charles, Donna Summer, Diana Ross e, em especial a rainha e madrinha das “bichas", a internacional Gloria Gaynor. Quando ela soltava o vozeirão e entoava o hino do gênero “I Will Survive” as pistas fervilhavam e as “bonecas” iam ao delírio. Pulavam, dançavam e gritavam histericamente com as mãozinhas para e alto acompanhando o hino:

Oh no, not I! I will survive!
Oh, as long as I know how to love
I know I'll stay alive!
I've got all my life to live.
I've got all my love to give.
And I'll survive. I will survive! Oohh...

Anos 70

A noite se estendia ao som das melodias e regada com tudo que pudesse ser bebido, fumado ou cheirado. Aos pouco os casais iam se formando e se dirigindo para os também inúmeros motéis espalhadas nas proximidades. Os bares iam se esvaziando e os clientes que resistiam procuravam se manter em pé ou ainda tentar “pegar” uma rapariga que sobrou. E a música continuava em volume máximo. Lá no horizonte, pras bandas do Porto do Mucuripe, o sol ameaçava romper. Vendo o movimento cair, o gerente do bar apelava para mais um dos “hits” da época com a inigualável Gloria Gaynor. Entrava com o outro hino “Can’t Take My Eyes Off You”. Aumentava ao limite máximo o volume e detonava. Era mais uma chamada e a galera atendia enchendo a pista de dança. Para quem ainda estava solteiro era a hora da última tentativa de arranjar companhia e de pedir mais uma bebida ou a “saideira”.

Ainda na década de 70, com a saturação do estilo discoteca, a região entrou em rápida decadência. Hoje, nada mais disso existe. Dos áureos tempos da Leste-Oeste restam apenas lembranças. Nem mesmos as velhas estruturas ou um único bar remanescente, nada conseguiu sobreviver. Quem passa hoje pelo local não imagina que ali, naquela área quase vazia e desabitada e somente com alguns casebres e prédios decadentes, a cidade se divertia e foi palco de uma época de muita alegria, farras e esbórnia. Reina atualmente no local apenas o mau cheiro e o odor nauseante da Estação de Tratamento de Esgotos da CAGECE. Coisa da minha terra. Coisas do Ceará.

Carlos J. H. Gurgel 
 
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sexta-feira, 4 de junho de 2010

Seca e campos de concentração em Fortaleza



Uma realidade sub-humana, que fazia da morte uma rotina diária. E que fazia da fome e das epidemias...companheiras permanentes. Uma catástrofe provocada pela insensatez.

Campo de concentração

CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO NO CEARÁ

No Estado do Ceará
A exemplo do alemão
Houve por aqui também
Campo de concentração
Lá era pra matar judeu
Aqui o povo do sertão.

Na seca de trinta e dois
Criamos uns sete currais
Para evitar que famintos
Criassem problemas sociais
E pudessem invadir
Na capital seus mananciais.

Currais foram construídos
Em Senador Pompeu, Ipu,
Quixeramobim e Crato,
Fortaleza e Cariús.
Fortaleza teve dois
Otávio Bonfim, Pirambu.

Pessoas foram confinadas
Como bando de animais.
Tinha a cabeça raspada
Sacos de açúcar, jornais
Era o que lhes serviam
Como vestes mais usuais

Sem nome, ou identidade,
Chamados por numerais.
Desta maneira estavam
Registrados nos anais.
Só se comia farinha,
Rapadura nos currais.

Toda essa gente foi presa
Sem ter crime praticado
E para isto bastava
Somente estar esfomeado.
Pedir prato de comido
Que seria logo enjaulado.

E controlados por senhas,
Pelas forças policiais.
Quem entrava não saía,
Senão pros seus funerais.
Sessenta mil lá morreram.
Nos registros oficiais.

Para aqueles locais, todas
Pessoas foram atraídas.
Com promessas que seriam
por médicos assistidas,
Que teriam segurança
E fartura de comidas

Experiência que houve
Somente aqui no Ceará.
Que se iniciou em quinze
Naquela seca de torrar
Depois disso os alemães
Trataram de aperfeiçoar.

Alguns campos projetados
Para abrigar duas mil pessoas
Dezoito mil chegou alojar.
Presos por vilões e viloas,
Felizes os governantes
Ainda cantavam suas loas.

Em Ipu todos os dias
Morriam de sete a oito.
A maioria era de fome
E até por ser afoito,
Nas tentativas de fugas,
Pro que não havia acoito.

Nas décadas posteriores,
Pra mudar essa imagem,
governos criaram albergues
para evitar sacanagem,
mesmo assim pouco funcionou
pois sempre há malandragem.

E o povo nordestino
ainda de pires na mão,
espera de todos governos
pro problema solução.
Agora estamos na briga
pela tal transposição.

Ceará de Terra da Luz
É chamado no Brasil.
Foi nosso primeiro estado
Que escravatura aboliu
Pra isso não foi necessário
Nem mesmo usar um fuzil.

Mas a geração atual
Tem que redimir o erro
De governantes passados.
Não permitir o desterro
De seus filhos pra terra alheia
e muitos acham o enterro.


HENRIQUE CÉSAR PINHEIRO
___________________________________

Em 1915, uma seca severa fez com que os sertanejos se dirigissem para as grandes cidades, desta feita o Governo do Ceará, optou por criar o primeiro "campo de concentração, no Alagadiço, hoje Otávio Bonfim, ao oeste da cidade de Fortaleza, lá foram "abrigadas" mais de 8 mil almas a quem eram fornecidas alimentação sob a vigília constante de soldados. Mais uma vez (sim, essa infelizmente não foi a primeira e não seria a última seca que tivemos) foi estimulada a migração para a Amazônia e o campo (curral humano) foi desativado em novembro do mesmo ano.



Decididamente aqueles não seriam anos bons para os cearenses. Depois das duas guerras de 1912 e 1914, seu Jader e sua família iriam assistir em 1915 a pior seca de todos os tempos. Um pressentimento ruim tomava conta de todo mundo. Toda população dependia de alguma forma da agricultura e a agricultura dependia das chuvas. Os comerciantes ficavam sem ter para quem vender, além disso ainda estavam sujeitos a saques dos flagelados, ou o que era mais comum, acabavam tendo que dividir o pouco que tinham com parentes e agregados mais necessitados. O ambiente ficava pesado e só restava rezar, e rezar muito para que as chuvas aparecessem.

Só duas classes de gente lucrava (e ainda lucra) com as secas: os políticos porque receberiam mais verbas "para ajudar aos flagelados" e grandes donos de terras que aproveitavam para adquirir mais terras e o gado magro dos pobres retirantes.
O preço de tudo subia e o seu Jader já sentia no bolso como pesava cuidar da família, que em breve voltaria a aumentar.



Dona Dica passou a dar aulas na escola da cidade. Ela era professora formada pela antiga Escola Normal. Naquela época havia pouquíssimas professoras diplomadas. Era sempre uma honra para o Grupo Municipal ter uma professora formada dando aulas. Ao dar aulas D. Dica colocava mais algum dinheiro em casa.
O dia de São José já havia passado fazia duas semanas e nada de chuva. Em Fortaleza começavam a chegar os primeiros retirantes vindos do interior. As pessoas sem ter o que comer e o que beber vinham para a capital em busca de algum trabalho ou mesmo ajuda.



Dois meses depois começavam a chegar do escritório central da EFB em Fortaleza passagens de trem para serem distribuídas entre os retirantes.
A estação do seu Jader fervilhava de gente. As passagens só davam para uns poucos. A maioria acabava tendo que vir a pé para capital para não morrer de fome e sede.
O governo federal estava prestes a autorizar a retomada da construção da EFB para dar ocupação a uma parte dos retirantes.
A miséria campeava infrene e terrífica em toda extensão do território cearense, e não havia lar que não tivesse sido assaltado pelo abutre da fome, com as suas garras aduncas e afiadas. A cidade de lguatú, mais que as demais situadas a margem da via-férrea, regorgitava de famintos d'este e dos estados vizinhos acossados também pelo excepcional flagelo, reduzidos a penúria extrema - sem pão e sem abrigo.

"A miséria, consubstanciada nos trapos esquálidos e na cachexia profunda dos infelizes retirantes, emergia de todos os pontos da cidade. Era que em seu seio - praças, ruas e cercanias - achavam-se acantonadas cerca de 15.000 indigentes, todos a expensas exclusivamente da caridade particular já esgotada, aguardando, anciosos e com impaciência inquietadora de quem aspira com vehemência ver o término de seus sofrimentos, o início dos trabalhos do prolongamento da Estrada de Ferro de Baturité. A varíola, em virtude da grande aglomeração de emigrantes e falta absoluta de hygiene entre elles, não se fez esperar; manifestou-se ameaçadora em diversos abarracamentos, sendo, porém, logo debellada, graças ao emprego de medidas enérgicas tomadas por este districto, - mandando isolar os pestosos e desenvolver com actividade a vacinação." ( Relatório da Inspectoria Federal das Estradas em:Benedito Genésio Ferreira - A estrada de Ferro de Baturité: 1870-1930 – Ed. NUDOC/UFC, 1989)

"Muita gente morreu de fome e doença naquela seca. Não só nas várias cidades do interior, mas principalmente Fortaleza foi invadida por retirantes.
O quadro de angústias e misérias que se presenciavam na própria capital, ampliava-se e reproduzia-se em todo o interior do Estado, como se fosse um cinema ambulante, a exhibir em scenas successivas, as mesmas fitas macabras!"
( Relatório da Inspectoria Federal das Estradas em:Benedito Genésio Ferreira - A estrada de Ferro de Baturité: 1870-1930 – Ed. NUDOC/UFC, 1989)



O governo acuado desenvolveu alguns métodos para cuidar dos retirantes da seca. Um deles era mandá-los para a Amazônia onde havia prosperidade com a exploração da borracha. Neste ano estima-se que 30.000 retirantes migraram para a Amazônia.

"Cenas de desespero e impotência ante a prepotência governamental eram rotineiras no porto de Fortaleza. (...) Os comandantes dos navios onde viajavam os nordestinos (nos porões) da terceira classe, tinham ordem de proibir o embarque de doentes. (...) Inúmeras famílias foram desfeitas quando do embarque, pois ao ser detectado qualquer doente, o comandante mandava imediatamente desembarcá-lo. Assim muitas mães e pais foram separados a força dos filhos." (Vida e Morte no Sertão - Marco Antonio Villa - Ed. Ática, 2000).



O outro método para lidar com os retirantes foi a construção de campos de concentração. No romance O Quinze, da escritora cearense Raquel de Queiroz, é possível ler descrições detalhadas de um destes campos de concentração. A personagem principal do romance Conceição ajudava na distribuição de comida e roupas no campo. O romance chama-se O Quinze por tratar justamente da seca de 1915.

O povo cearense tem o hábito de rir da própria desgraça. Em Fortaleza, um bode trazido pelos retirantes desta seca virou personagem histórico porque vivia passeando sozinho pelas ruas como se fosse mais um habitante da cidade. Era muito conhecido das crianças da época. Seu nome era bode "ioiô". Ao morrer o bode foi empalhado e pode ser visto no Museu Histórico do Ceará.



Bode Ioiô - Encontra-se hoje no Museu do Ceará

Um amplo programa de criação de campos de concentração, em que os retirantes fossem induzidos a entrar e proibidos de sair, foi implementado com total apoio da Interventoria Federal no Ceará. A fim de prevenir a "afluência tumultuária" de retirantes famintos a Fortaleza, cinco campos localizavam-se nas proximidades das principais vias de acesso à capital, atraindo os agricultores que perdiam suas colheitas e se viam à mercê da caridade pública ou privada. Dois campos menores situavam-se em locais estratégicos de Fortaleza, conectados às estações de trem que traziam os famintos, impedindo que eles circulassem livremente pelos espaços da capital. Uma vez dentro do campo, o retirante era obrigado não só a permanecer nele durante todo o período considerado de seca, mas deveria submeter-se a condições de moradia, relacionamento, trabalho e comportamento regulados pelas normas irredutíveis ditadas pelos dirigentes indicados pelo interventor – prefeitos nomeados e engenheiros do IFOCS. Os campos, portanto, pretendiam impedir a mobilidade física e política dos retirantes através da concessão de rações diárias e de assistência médica. O controle dessa imensa população – o maior campo, na cidade do Crato, chegou a abrigar quase 60 mil pessoas – representou um gigantesco esforço de organização, que tinha seu contraponto nas ações violentas das multidões de retirantes que ameaçavam tomar em suas mãos a resolução de suas aflições.

Ao mesmo tempo, novos campos de concentração foram organizados na capital, procurando evitar o trânsito indesejado dos retirantes pelas ruas da cidade. Em outubro, os campos foram unificados no campo do Alagadiço, sob a direção das irmãs Marianas, do Dispensário dos Pobres. Uma comissão de senhoras, liderada pela sr.ª Anita Gentil Barbosa, administrava os serviços, procurando oferecer socorro para as crianças, vestuário e assistência hospitalar, tendo conseguido um "generoso auxílio do comércio" e prometendo prestar contas do dinheiro arrecadado, "uma vez findos os seus trabalhos". O campo, também chamado de "albergue", no entanto, não era "rigorosamente o que desejavam realizar as autoridades do Ministério do Trabalho", com dois mil retirantes se amontoando "sob a sombra de árvores frondosas, encontrando-se, por conseguinte, expostos á chuva", em condições higiênicas precárias.



Os campos de concentração no Ceará — ou mais conhecidos como os currais do governo — foram locais de apoio e alojamento para as vítimas das secas de 1915 e 1932.
Os períodos de estiagem que fazem parte do clima do Nordeste brasileiro despertaram (e despertam) a atenção dos governantes desde a época do Império de D. Pedro II. E, por sua vez, estes reagiram com planos e projetos nas áreas de engenharia, social e política, tentando assim amenizar as conseqüências das secas tanto para as populações diretamente afetadas (os flagelados), bem como as classes políticas locais.

A criação do Instituto de Obras Contra as Secas (IOCS), atual Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS), em 1909 por Nilo Peçanha é uma das respostas governamentais ao fenômeno da seca.

Os campos de concentração no Ceará ou os "currais do governo", foram reações governamentais executadas nas secas de 1915 e 1932 no estado do Ceará.

No campo de concentração do Alagadiço, estima-se um ajuntamento de 8 mil pessoas, cuidadas com alguma comida e sob a vigília de soldados. A razão para o uso desta estratégia foi os temores de invasões e saques dos flagelados da seca em Fortaleza — isso já acontecera na seca de 1877, quando sertanejos famintos invadiram a capital cearense, atemorizando a população urbana. Esse campo foi desfeito e as vítimas foram dispersadas em 18 de dezembro do mesmo ano. Durante essa seca, muitos cearenses também migraram para a Amazônia.


Retirantes da seca de 1915 na Ponte Metálica de Fortaleza aguardando embarque.

Acervo Nilson Cruz



Campos de concentração foram restritos ao Ceará

Os registros mais confiáveis sobre os "currais do governo", como os confinamentos eram denominados pelos flagelados, são encontrados no livro 'Campos de concentração no Ceará' (Edição Outras Histórias / Museu do Ceará, 2000, 120 páginas), de Kênia Rios. Segundo a autora, não existem referências de que a experiência tenha sido repetida em outros estados. O primeiro campo, conforme Rios, surgiu em 1915, instalado no bairro alagadiço. Mais tarde, na seca de 1932, os campos foram ressuscitados como política do governo federal.

"Do ponto de vista oficial, os campos aparecem como medida de assistência aos flagelados que não tinham trabalho nas frentes de serviço", diz a autora. Mas a realidade, segundo ela, era outra. "Os famintos eram atraídos com a promessa de comida, assistência médica e segurança. Lá não encontravam a estrutura prometida e não podiam sair do campo, sendo mantidos presos. Tudo para evitar que Fortaleza fosse invadida por famintos", comenta Rios.



A capital foi a única cidade a receber dois 'currais', um no Otávio Bonfim e outro no Pirambu, este conhecido como Campo do Urubu. O maior campo do Estado estava instalado em Buriti, distrito do Crato. 'Pelos registros oficiais, passaram por lá 65 mil pessoas em 1932', informa. Ela diz que alguns campos, projetados para receber duas mil pessoas, chegavam a manter até 18 mil flagelados de uma só vez. A fome e a insalubridade dos campos levaram, inevitavelmente, a milhares de mortes. "Os livros de óbitos das igrejas mostram que 90% das mortes registradas naquele período aconteciam nos campos de concentração."

No 'curral' de Ipu, segundo Rios, a média era de sete a oito mortes por dia. Depois de 1932, a experiência dos campos foi abandonada no Ceará. "Houve muita polêmica em torno desta experiência. Também tinha o estigma dos campos de concentração nazistas. Por isso, nos anos 40, 50 e 60, o governo adotou outra prática, criando abrigos que foram batizados de albergues, onde os flagelados tinham mais apoio e liberdade."

Délio Rocha
Repórter

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A segregação dos miseráveis era lei, mas chegou um momento em que o flagelo em massa era tão chocante, com uma média de 150 mortes diárias, que o governo do Estado ordenou, em 18 de dezembro de 1915, como contam os arquivos dos jornais da época, a dispersão dos flagelados, ou “molambudos”, como eram também conhecidos.

Segundo o historiador Marco Antônio Villa, autor de Vida e Morte no Sertão, durante a seca de 1915 teriam morrido pelo menos 100 mil nordestinos. Outros 250 mil migrantes para escapar da “velha do chapelão” – como a fome era conhecida no imaginário do semi-árido.

O medo das autoridades diante dos flagelados da seca tinha um antecedente. Em 1877, uma leva de cerca de 110 mil famintos saiu dos sertões e tomou as ruas de Fortaleza, assombrando os moradores que viviam a ilusão, importada de Paris, de urbanismo e civilidade. No livro A Fome, o mais consistente relato sobre o cenário de 1877 nas ruas da capital, o cientista e escritor Rodolfo Teófilo assim descreveu o que viu: “A peste e a fome matam mais de 400 por dia! O que te afirmo é que, durante o tempo em que estive parado em uma esquina, vi passar 20 cadáveres: e como seguem para a vala! Faz horror! Os que têm rede, vão nela, suja, rota, como se acha; os que não têm, são amarrados de pés e mãos em um comprido pau e assim são levados para a sepultura. E as crianças que morrem nos abarracamentos, como são conduzidas! Pela manhã os encarregados de sepultá-las vão recolhendo-as em um grande saco; e, ensacados os cadáveres, é atado aquele sudário de grossa estopa a um pau e conduzido para a sepultura”.


Memórias do horror

O ano da graça de 1915, relatado na ficção de Rachel de Queiroz, sertaneja da fazenda Não me Deixes, no município de Quixadá (CE), seria apenas o ensaio da segregação estatal dos miseráveis. Em 1932 é que o modelo de isolamento iria vingar para valer. Na “seca de quinze” – como era chamada a estiagem – ainda não existia sequer a famosa “indústria da seca”, como se convencionou chamar a ajuda do poder federal às oligarquias nordestinas – diante das ameaças de saques e violência das legiões de famintos, os grandes proprietários de terra sempre chantagearam o governo federal, principalmente a partir dos anos de 1930, alocando recursos para a região que na maioria das vezes acabavam se revertendo em benefícios das próprias elites.


“De longe eu sentia o cheiro de podridão, chegava a tapar as ventas. Era tão forte o fedor que é como se eu o sentisse hoje, mesmo eu estando com a memória fraquinha, fraquinha”, diz Manuel Conceição Rodrigues de Sá, 87 anos, um rapaz de 15 anos durante a seca braba de 1932. Hoje, ele mora no subúrbio de Juazeiro do Norte, no Ceará, terra do Padre Cícero, personagem que já era celebrado como santo naquele tempo, pelas levas de famintos que buscavam por sua bênção. Manuel morava, então, no município de Serra Talhada, em Pernambuco. Trabalhava como tropeiro – tocava burros com carregamento de cachaça dos engenhos da região do Cariri, no sul do Ceará, para municípios de Pernambuco e da Paraíba. “Era num sítio ali perto do Crato, só vi uma vez de perto o campo de concentração, nunca mais tive coragem de passar junto. Pense num desmantelo! Gente apodrecendo de verdade, pareciam uns urubus quando o governo mandava comida”, afirma o ex-mascate.

O cearense do Cariri Miguel Arraes de Alencar, nascido em dezembro de 1917, na cidade do Araripe, governador de Pernambuco por três mandatos, guarda também lembranças do campo de concentração do Crato, onde morou sua família. “A seca braba de 32 é muito forte em minha memória. Um dia, quando ia estudar, me deparei com três homens presos. Eram flagelados do curral da concentração. Foram presos como desordeiros, só porque ficaram revoltados com as injustiças na distribuição de comida por lá”, afirmou Arraes em 2002. “É uma lembrança que guardo para sempre, as histórias vindas de lá eram um horror danado.”



Antiga vila operária construída em 1919 em Senador Pompeu, para a construção de um açude  foram utilizados depois como campo de concentração.
Pelo campo de concentração do Crato passaram cerca de 65 mil pessoas durante aquela estiagem. Ali, o governo prometia comida, água, assistência médica e oferta de trabalho. Pouco disso, no entanto, acontecia. Não havia água tratada, nem comida para todos e muita gente morria de fome ou doença e era sepultada ali mesmo. O campo se tornou um foco de tudo o que é infecção. Em alguns dias, o número de mortes de famintos alcançava a marca de 200. Há registros de pelo menos outros cinco currais no estado do Ceará, localizados em Quixeramobim, Senador Pompeu, Cariús, Ipu, Quixadá e o último nos arredores de Fortaleza, como derradeira tentativa de evitar que os famintos convivessem com a população da capital.



Os 12 casarões da antiga vila -erguidos em 1919 para abrigar operários e engenheiros ingleses que trabalhavam na construção de um açude na região foram depois utilizados como sede do campo de concentração.

“Eram locais para onde grande parte dos retirantes foi recolhida a fim de receber do governo comida e assistência médica. Dali não podia sair sem autorização dos inspetores do campo. Havia guardas vigiando constantemente o movimento dois concentrados. Ali ficavam retidos milhões de retirantes a morrer de fome e doenças”, diz a historiadora Kênia Rios, da PUC-SP. As estatísticas oficiais, que não conseguiam abarcar todos os alistados nos “currais”, dão conta de 73.918 “molambudos” nas seis áreas de confinamento – 6.507 em Ipu; 1.800 em Fortaleza; 4.542 em Quixeramobim  16.221 em Senado Pompeu; 28.648 em Cariús e 16.200 no Crato, conforme uma das melhores fontes sobre o assunto, o livro Campos de Concentração no CearáIsolamento e Poder na Seca de 1932, de Kênia Rios.

Um sobrevivente da segregação é Antônio Siqueira da Silva, de 90 anos, que tinha 18 anos quando foi “jogado” com a família – pai, mãe e mais 12 irmãos – no “curral dos flagelados” do Crato. A família havia mudado do município de Quebrangulo, terra do escritor Graciliano Ramos, para Juazeiro do Norte, cidade hoje emendada ao Crato, em 1930. “A gente veio por causa dos milagres do meu padim Ciço. Só se falava nas obras do “meu padim” por esse mundão todo afora. Ai meu pai pegou a penca de menino, botou em cima dos burros, e chegamos aqui em Juazeiro, pois lá nas Alagoas não tinha mais como viver que preste”, diz Silva, em depoimento para o projeto Nova Geografia da Fome, do Centro Cultural Banco do Nordeste. “Chegando aqui o meu padim nos botou lá no sítio do beato Zé Lourenço, onde tinha muita fartura. O mundo todo sem nada para comer e o beato lá dando de comer a todo mundo, até irrigação já tinha.”

Ruínas de casarões que na seca de 1932 foi transformado em campo de concentração de flagelados para que não invadissem Fortaleza, muitos morreram de fome e com cólera.

Seguidor do padre Cícero, Lourenço (1872 – 1946), nascido na Paraíba, chegou a abrigar cerca de mil pessoas no começo dos anos de 1930. Conhecida como o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, a comunidade foi destruída e bombardeada – a primeira vez que as Forças Armadas usaram aviões para um massacre no Brasil – em 1937, por ordem do ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra, durante o governo de Getúlio Vargas. O poder central, insuflado pelas autoridades cearenses, temia que o beato pudesse transformar o seu vilarejo em mais um Canudos, episódio que ainda assombrava os militares. No massacre, teriam morrido cerca de 700 pessoas. Lourenço escapou, fugindo pela Chapada do Araripe. Doente, morreria nove anos depois, em Exu (PE), município nas cercanias do Crato.

“O sítio do beato foi ficando cheio de gente demais, ai meu pai achou melhor a gente escapar da fome lá no “curral dos flagelados”, pois o governo prometia muita esmola por lá”, diz o sobrevivente do campo de concentração Antônio da Silva. “Mas quem disse que as esmolas chegavam? Lá perdi foi seis irmãos, de fome braba. Eu mesmo só escapei porque fugi com o resto, de madrugada, ainda lembro como se fosse hoje. Era uma catinga tão feroz, meu filho, que nem dava pra dormir direito. E os urubus em cima, querendo arrancar as tripas dos falecidos.”


Casarões de Senador Pompeu


A história das secas que castigam a população do Nordeste desde pelo menos 1877, deixou um rastro de tragédias e mortes assombroso. Nunca foi feito um levantamento a respeito dos números de nordestinos que perderam as vidas por causa da fome nestes períodos. Os levantamentos parciais, no entanto, são assustadores. Somente entre 1877 e 1913, portanto ainda sem os números da seca de 1915, o governo federal, por intermédio do IOCS estimava que 2 milhões de pessoas haviam morrido em consequência da miséria nas estiagens. Pouco mais de 100 anos depois, a equipe do livro Genocídio do Nordeste (organizado pela Comissão Pastoral da Terra e o Ibase, entre outras organizações) repetiu o desafio de contar as vítimas da seca e chegou ao número de 3,5 milhões de mortos somente no período entre os anos de 1979 e 1984.

O campo de concentração no Alagadiço, ao oeste de Fortaleza foi desfeito e as vítimas foram dispersadas em 18 de dezembro de 1915. Durante essa seca, muitos cearenses também migraram para a Amazônia.

Seca de 1932

Em 1932, nova seca assola o Ceará e novamente o movimento dos sertanejos se faz em direção às grandes cidades atendidas pela via férrea. Desta feita o governo instala novos campos de concentração, cercados por arames farpados e vigiados por soldados em:
Senador Pompeu, Ipu, Quixeramobim, Cariús, Crato ( Buriti, por donde passaram 65.000 pessoas ) além do já conhecido campo do Alagadiço(Otávio Bonfim) e o novo campo a noroeste da capital, o Pirambu, mais conhecido como o Campo do Urubu.
Campos projetados para abrigar 2000 pessoas, chegaram a manter 18.000 flagelados. As condições de higiene inexistiam, as pessoas viviam em verdadeiros currais.
Ao chegar tinham suas cabeças raspadas e era obrigadas a usar um uniforme feito de sacas de açúcar, confeccionado por eles mesmos.
A cabeça raspada impedia a proliferação de piolhos, no entanto, as péssimas condições de higiene, alimentação precária e um surto de cólera, dizimaram milhares de sertanejos presos nesses campos de concentração tupiniquins.
"A seca de 1932 foi uma das maiores da história do Ceará. Fome e doenças como cólera, febre amarela e varíola marcaram aquele povo sofrido pela sede e fome. Senador Pompeu foi uma das cidades que abrigou um dos sete campos de concentração, criados pelo governo da época para deter a vinda de retirantes à Fortaleza."


Notícia sobre o Campo de Concentração dos Flagelados, publicada no Jornal 
O POVO, em 16/04/1932


Crianças num Campo de Concentração da seca de 1932, com distrofia farinácea. 
Com a escassez de alimentos, a saída era matar a fome com um pirão feito apenas de farinha, água e sal, que em excesso, causava edema na barriga. E nos meninos, até no saco escrotal. Muitos não podiam mais andar pelo inchaço e pela desnutrição e viravam presa fácil para as epidemias. Livro da comissão Federal que visitou os campos de concentração do Ceará na seca de 1932 - Acervo: Dnocs. Fotografia do livro feita por Valdecy Alves.

História real de quem ficou detido no Campo de Concentração do Pirambu:


"Amigo Leitor,

É impressionante como o tempo passa e tem fatos da vida da gente, que não conseguimos esquecer facilmente. Parece até ferrugem encardindo a alma, mofo sufocando o ar.

Lembro como se fosse hoje, o sol no céu tinindo como brasa, ferindo a terra desnuda, efervescendo as angústias e diluindo os sonhos de sertanejos vermelhos por fagulhas incandescentes. O ano era 1932, nunca um inverno foi tão esperado. Sabíamos que se não chovesse a vida se complicaria ainda mais.

Em janeiro de 1932, o desespero começou a comer os ânimos de muitos dos meus amigos, que partiram tristemente em rumo a Fortaleza. A maior parte deles foi tragada pela placidez luminosa dos dias queimosos. Desaparecendo para sempre.

Assim como outros, resolvi aguardar até o dia 19 de março, rogando insistentemente para São José fazer a chuva chover. Mas, tudo foi em vão, em vez da fartura proveniente de um glorioso inverno, tivemos de enfrentar o abraço entristecedor de uma grande seca.

No final do mês de março, levas de retirantes enchiam de dor e saudade as estradas do Sertão. Das mais longes paragens saíam homens e mulheres arrastando filhos e seus poucos pertences a caminho da Capital. Muitos se juntavam, formando bandos de flagelados, que andavam longos trechos a pé, a procura de uma estação de trem.

As estradas de poeira findavam, portanto, quando encontrávamos as estações ferroviárias. De lá saíam uma quantidade impressionante de sertanejos sedentos de fome e de esperança. A partir de abril, o número de flagelados que se dirigiam a Capital, aumentou consideravelmente.

O Governo durante alguns meses suspendeu a distribuição das passagens de trens para Fortaleza. Porém, nos meses iniciais, essa medida não foi suficiente para deter a vinda dos meus amigos. Muitos dos quais, invadiram locomotivas e chegaram ao destino tão desejado: “a cidade grande”.

A vinda para Fortaleza representava para nós, o sonho de uma vida melhor. Acreditávamos ser a terra de Iracema, a nossa Canaã perdida. Um lugar onde teríamos emprego, moradia e comida. Mas, ao contrário disso, o nosso sofrimento só estava começando. Não sabíamos que o pior ainda viria...

Coincidentemente com a seca de 1932, Fortaleza vivenciava um intenso processo de urbanização e embelezamento. O progresso se materializava na construção de prédios modernos, nas ruas alinhadas e na valorização do turismo local. No entanto, a cidade que queria ser moderna e civilizada estava sendo ocupada por um indesejado fluxo de flagelados, que traziam incrustados em seus olhares e gestos a sombra amarga da pobreza. Homens, mulheres, velhos e crianças eram obrigados a pedir esmolas para sobreviver. Em cada um deles, denunciavam-se a todo instante a situação calamitosa que se achava o Sertão.

A urbe alencarina, pouco a pouco se transformava num palco de miséria e tristeza, que contrastava com os interesses de uma burguesia voraz de progresso. Pressionado pela elite e pelos jornais de Fortaleza, que criavam a imagem de um retirante ameaçador, capaz de cometer saques e revoltas com proporções incalculáveis na cidade, (o que de fato era uma grande mentira, pois a gente só queria um lugar digno pra viver em paz); fez com que o Estado tomasse uma medida drástica, a qual marcou para sempre a minha vida e a de muitos.

Para barrar a marcha dos retirantes para a Capital, o Estado pôs em vigor o projeto de construção de Campos de Concentração. Ao todo foram erguidas sete concentrações, localizadas nas cidades de Ipu, Quixeramobim, Senador Pompeu, São Mateus, Crato e duas em Fortaleza. A princípio, esses locais seriam espaços destinados a atender aos flagelados da seca, disponibilizando comida e assistência médica para todos. Mas, na prática tudo era uma verdadeira farsa. Dali não podíamos sair sem a autorização dos inspetores do campo e havia guardas nos vigiando constantemente. Aqueles que tentavam fugir eram enquadrados na lei como marginais.

Em nome dos parâmetros de civilidade e modernidade, o Governo tinha conseguido, finalmente, “enjaular a pobreza”. Milhares de retirantes ficaram presos e a morrer de fome e de doenças como, Varíola, Sarampo e Desnutrição. Para se ter uma ideia, cada concentração dessas tinha a capacidade de abrigar duas mil pessoas, mas chegavam a receber um número que variava de dezoito mil a sessenta e cinco mil flagelados. Morriam de oito a dez pessoas por dia. Tínhamos uma convivência muito íntima com a morte.

Os Campos de Concentração eram batizados por nós como “Os Currais do Governo”, nome bem oportuno para a própria situação que vivenciávamos. Mas, cada um tinha um apelido próprio. O meu, por exemplo, chamava-se Urubu. Ele corresponde hoje, o bairro do Pirambu.



Os Campos funcionavam como uma prisão. Os que lá chegavam não podiam mais sair, ou melhor, só tinham permissão para se deslocar quando eram convocados para o trabalho na construção de estradas, açudes ou obras de “melhoramento urbano” de Fortaleza, ou quando eram transferidos para outro Campo. Os concentrados eram transportados de caminhões e, a todo o momento, ficavam sob o atento olhar de vigilantes, que os seguiam feito cães ferozes.

Alguns desses guardas eram, inclusive, ex-concentrados, que devido ao “bom comportamento” ou outro motivo que desconheço, conseguia esta "promoção". Meu tio, o seu Muriçoca, o qual acho que você conheceu, pois era muito popular em Fortaleza, por ser o porteiro do Teatro José de Alencar; foi guarda do Campo de Concentração do Crato. Esperto como era, além de ter um carisma inconfundível, titio com sua magreza aguda conseguiu driblar as autoridades. Fugindo da seca, ele se alistou para lutar na Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo. Ao retornar para o Ceará, mais especificamente para o Crato, ele tratou logo de vestir sua elegante farda. Impressionado a todos, pois um homem fardado naquela época passava a ideia de respeito e autoridade. E, assim, conseguiu ser guarda em vez de concentrado. Que saudades dele! Que Nosso Senhor Jesus Cristo cuide bem de titio Muriçoca!

Apesar de todo sofrimento, a gente sempre dava um jeitinho de animar a vida, afinal, também, somos filhos de Deus. Quando todos terminavam seus serviços nas obras de construção de Fortaleza, nós nos reuníamos para cantar belas canções de amor, fazer desafios e repentes. A gente, ainda, tocava instrumentos e dançava, relembrando as noites felizes e enluaradas que vivemos no sertão, antes da seca chegar.

O nosso Campo, o Urubu, era o mais visitado de todos. Para lá se dirigiam jornalistas, padres e até turistas. Destes chegávamos a receber alguns trocados, que nos eram entregues com ares de piedade, disfarçada por certo fascínio, porque, éramos, na realidade, bichos enjaulados, servindo de atração e divertimento para os ricos.

Uma das coisas mais detestável dentro do Campo eram os serviços de vacinação. Toda aquela agulharada e parafernália médica eram tão assustador, que nos levavam a reagir de diferentes maneiras. Chegávamos, mesmo, a esconder as crianças debaixo das camas para que os médicos não as vissem. Preferíamos mil vezes, as meizinhas, as rezas e as beberragens de Dona Raimunda. Aquela sim, sabia cuidar dos nossos males. Muitas pessoas falavam que Dona Raimunda era uma santa enviada por Deus. Ela faleceu, e depois de vinte e quatro horas voltou a Terra por ordem divina e com poderes de curar ou predizer a morte de quem lhe consultar.

Confesso que também tinha medo da cozinha do Campo. Lembro que seu acesso era constituído por um grande corredor estreito, onde todos nós ficávamos comprimidos para receber a comida. Anos depois, conversando sobre isso com um amigo, Francisco Lima, ex-concentrado do Campo de Ipu, ele me falou que achava a cozinha parecida com o inferno. “Aqueles homens de avental de couro vermelho, mexendo os tachos, as comidas...Era um fogo danado, aqueles homens brigavam com os pobres que chegavam e tinha uma cerca para evitar a invasão...”

Hoje, amigo leitor, aos 85 anos de idade, posso dizer que já vivi e passei por muitas coisas nesta vida. Mas nenhuma delas me marcou tanto como a passagem pelo Campo de Concentração. Vejo que a miséria, a pobreza e o descaso daquela época só fizeram aumentar. Os pobres não têm direito algum nesta sociedade mandada por ricos. Continuamos vivendo em concentrações, agora conhecidas por favelas ou conjuntos habitacionais afastados da cidade.

Senti vontade de lhe escrever, porque quero que saibas através das minhas memórias, um pouco desta história do nosso Ceará, ainda tão desconhecida de muita gente."

*Personagem fictício criado para narrar à história real dos Campos de Concentração, tendo como base o livro “Campos de Concentração no Ceará – Isolamento e Poder na Seca de 1932”, da professora do Departamento de História da UFC, Kênia Sousa Rios
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Na seca de 1932 o nordeste brasileiro sofria com as consequências da estiagem, mas também vivia um momento histórico próprio dentro da era de Getúlio Vargas; Lampião e seu bando centralizavam as atenções dos políticos; as oligarquias políticas do Nordeste mudavam de nomes: Padre Cícero ainda tinha influência política e milagrosa para os sertanejos e a irmandade do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto atraia centenas de flagelados para os arredores de Crato, no Ceará. Com o temor da intensa invasão de flagelados para Fortaleza e para outras grandes cidades do Ceará, a estratégia dos Currais do Governo MAIS UMA VEZ foi implantada, só que desta vez não somente em Fortaleza, mas também em cidades com alguma estrutura básica e com estações de trens. Além dos campos de concentração na capital, um no já conhecido Alagadiço e um outro no noroeste da capital, no Pirambu. Estima-se que cerca de 73.000 flagelados foram confinados nesses campos onde as condições eram desumanas, o que resultou em inúmeras mortes. Ainda durante essa seca, flagelados cearenses foram enviados para o combate nas trincheiras da Revolução de 1932 em São Paulo. A seca de 1932 foi uma das maiores da história do Ceará. Fome e doenças como cólera, febre amarela e varíola marcaram aquele povo sofrido pela sede e fome.

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localização dos sete campos de concentração no Ceará (clique para ampliar)


Mapa da localização dos campos de concentração de Matadouro e Urubu 
(clique para ampliar)

O fim dos campos de concentração

As chuvas do início de 1933 recompuseram os pastos e os sertanejos isolados passaram a reclamar o direito de voltar ao sertão. Em todo caso, a liberação dos retirantes não foi imediata, houve discussão a cerca da importância da manutenção das prisões, uma vez que a mão de obra que se fazia disponível se mostrava muito útil à manutenção das obras de melhoramento urbano de Fortaleza. Mas o fim da seca determinava também o fim do envio de verbas da União para socorro aos flagelados e, aos poucos, chegou-se ao consenso de que eles deviam ser libertados.
É interessante notar que, durante o processo de tomada de decisão acerca da liberação dos retirantes isolados, questionou-se o uso que seria dado à infraestrutura construída para os campos de concentração, como registra esta matéria do periódico Gazeta de Notícias, de 25 de Fevereiro de 1933:


"Perguntamos, então: Ficará o campo do Pirambu abandonado, sem outro aproveitamento agora em diante? Serão retirados os seus pavilhões, sua capelinha, seu posto de saúde? Achamos que não e, até é possível que o governo do estado já tenha em mente alguma coisa... a propósito...cremos que o campo de concentração do Pirambu auxiliaria a solução do sério problema da mendicância, que de muito vem sendo objeto de comentários e cogitações nesta capital... A mendicância precisa ser socorrida pelo poder público e este bem poderia transformar o antigo "curral do governo" num abrigo para os mendigos de toda sorte que andam pedinchano diariamente pelas ruas de fortaleza, pondo a nu o aspecto deprimente desse problema que ainda está por resolver."


Mas ao contrário do que sugeria a matéria do Gazeta de Notícias, os campos não serviram ao propósito de solucionar o problema da mendicância em Fortaleza. Muito pelo contrário, estudos sobre o processo de favelização de Fortaleza assinalam os anos de 1932 e 1933 como marcos na expansão da periferia de Fortaleza. Os retirantes que ficaram na capital após as chuvas de 1933 passaram de flagelados a favelados e fundaram, no entorno do que era antes o campo de concentração do Pirambu, a favela do Pirambu, a maior de Fortaleza ainda nos dias de hoje.


Curral Grande: Construção de um texto dramatúrgico abordando o isolamento de flagelados no Ceará durante a seca de 1932 - Marcos Barbosa de Albuquerque

Créditos: Todas as fontes já citadas, Wikipédia e diversas pesquisas na internet

NOTÍCIAS DA FORTALEZA ANTIGA: