Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Light
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



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sábado, 7 de maio de 2011

Hotel do Norte - Clube, Hotel e Museu – Um prédio, várias histórias!



Hotel do Norte

Durante o período imperial, mais precisamente em 1871, foi construído o belo sobrado da Rua Dr. João Moreira, 143 (esquina com a Rua Floriano Peixoto). Situado em frente ao Passeio Público, emoldurando o logradouro mais elegante da cidade, foi inicialmente a segunda sede do primeiro clube social de Fortaleza, o Sociedade União Cearense (Club Cearense), que antes esteve instalado num sobrado residencial na rua senador Pompeu.

O prédio em 1908.
(Ao lado, o prédio em 1910). Com a ida do Club Cearense para o palacete da esquina seguinte (hoje ocupado pela Associação Comercial do Ceará), instala-se no sobrado, em novembro de 1882, o Grande Hotel do Norte, de Silvestre Rendall, que no mesmo ano recebeu como hóspede o ilustre casal José Carlos do Patrocínio (abolicionista José do Patrocínio) e D. Maria do Patrocínio. Depois o hotel pertenceu ao francês Norberto Paulo Golignac (Norberto Golignac). Interessante salientar que no hotel foi instalada a primeira sorveteria do Ceará.  


(Ao lado, o prédio em 1930). Com a desativação do hotel, o prédio serviu de sede para a repartição dos Correios e Telégrafos (Adquirido por contrato de 24 de setembro de 1894 celebrado entre o administrador dos Correios Antônio Moreira de Sousa, e o representante da associação “União Cearense”, Alfredo Salgado - Este Contrato foi aprovado pelo Diretor Geral dos Correios em ofício de 13 de dezembro do mesmo ano). Nos cômodos do andar superior ficaram a primeira seção (Expediente) dirigida pelo Administrador e a segunda seção, a Contadoria; e no andar inferior a terceira seção, a Pagadoria e a quarta seção, compreendendo a Posta Restante e a Expedição das malas. A repartição dos Correios esteve no prédio de 04 de março de 1895 até 1935, quando é adquirido pela companhia inglesa The Ceará Tramway Light & Power Co. Ltda, que explorava o serviço de energia e bondes elétricos de Fortaleza. A partir de 1948, pela Lei Federal nº 25.232, os serviços elétricos da capital cearense ficaram a cargo do governo municipal e com a nacionalização, a companhia passou a se chamar Serviluz - Serviço de Luz e Força do Município de Fortaleza. Com o decorrer dos anos, a empresa teve outras denominações: Companhia Nordeste de Eletrificação de Fortaleza (CONEFOR), Companhia Elétrica do Ceará e atualmente Companhia Energética do CearáCoelce.

O prédio ocupado pelos Correios.

Prédio espaçoso e elegante, com dois pavimentos, a edificação tem planta de forma retangular, ligados por escadaria trabalhada em ferro fundido, importada da Europa. Construída no sistema de alvenaria autoportante e com coberta em telha de barro e estrutura de madeira oculta pelas platibandas das fachadas. O prédio possui características da arquitetura eclética cearense. Em seu interior merecem destaque os amplos salões do pavimento superior, que ainda conservam o piso original, em tábua corrida. Apesar das seguidas reformas e alterações no prédio, suas fachadas ainda mantém as linhas originais. As aberturas são todas com vergas em arco pleno, sendo as do piso superior protegidas por balcões de ferro. Na fechada principal, voltada para o Passeio Público, uma armação em ferro fundido marca as portas centrais. O coroamento do prédio é feito por cornija e platibanda, onde, na parte central, é interrompida por elementos metálicos. Sobre a platibanda, pináculos de alvenaria trabalhados fazem os arremates. 


Na parte interna, foram feitas obras de importância como, a construção do mezanino que comprometeram especialmente a edificação, e em fachadas a marquise foi um agregado que comprometeu o prédio não só no aspecto estético, mas também no aspecto estrutural.
No ano de 1995, o prédio foi finalmente tombado pelo patrimônio histórico do estado, que reconheceu seu valor histórico e arquitetônico. Em abril de 2001, abandonado, o prédio desmoronou parcialmente durante uma chuva de inverno. As causas que provocaram a deterioração foram centradas fundamentalmente na falta de manutenção, provocando infiltrações na coberta, o que ocasionou o deterioro da madeira das vigas da estrutura do telhado, pisos, etc. com o conseguinte derrube. Ressaltando que, segundo o Jornal O Povo, em 1991, parte da estrutura interna do prédio já havia desabado. 

A situação em que se encontrava o prédio ao ser adquirido pela FIEC.
 Foto de Luís Carlos Sabadia.

Após 20 anos sem uso (Desde a saída da Coelce), no final de 2001 o prédio é adquirido pela Federação das Indústrias do Estado do Ceará FIEC. Suas obras de restauração são iniciadas em 2005 com apoio de leis de incentivo. Obra concluída, o prédio permaneceu fechado– com um único período aberto, para receber a Casa Cor de 2007 – mostra anual de arquitetura e decoração. As ações de restauro foram pensadas aliando a permanência das características originais às adequações de usos.  Para melhor compreensão desse processo de restauração, as intervenções do prédio que estão nas cores verde e branca são restauros e as novas intervenções estão na cor vermelha.

O prédio durante a restauração. Foto de Luís Carlos Sabadia.

Editado em 2014:

Nove anos após o início das obras de restauro – o espaço reabre em 10 de setembro de 2014, dando abrigo ao Museu da Indústria, projeto da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC), por meio do Serviço Social da Indústria (SESI). O prédio do Museu é um equipamento que conta com salas de exposição, espaços para realização de palestras, desfiles, espetáculos, seminários e eventos sociais. Também possui salas para apresentações de teatro, cineclubes e biblioteca. Possui ainda dois ambientes para encontros: o jardim e o bistrô que tem funcionamento independente do museu, com cardápio diversificado e apresentações musicais. A edificação possui mais de dois mil metros quadrados de área disponível, distribuídos em espaços diversos, voltados para ações museológicas e culturais em geral. Foi devolvido para a cidade o centenário casarão todo restaurado!

O Museu da Indústria fica aberto de terça a sábado, das 09 às 19h.

Cronologia do Monumento: 

A edificação foi construída no final do século XIX . Inicialmente sediou a Sociedade União Cearense. Entre 1895 e 1935, serviu de sede para a Repartição dos Correios. 
Neste ano, o edifício foi adquirido pela “The Ceará Tramway Light & Power Co. Ltda”, companhia inglesa que explorou a energia elétrica e o serviço de bonde na cidade.

A partir de 1948, pela Lei Federal nº 25.232, os serviços elétricos da capital cearense ficaram a cargo do governo municipal. A companhia passou a se chamar SERVILUZ, Serviço de Luz e Força do Município de Fortaleza
Com o decorrer dos anos, a empresa teve outras denominações: Companhia Nordeste de Eletrificação de Fortaleza (CONEFOR), Companhia de Eletrificação do Ceará (COELCE), e atualmente foi privatizada para uma empresa espanhola.
“Num prédio particular, o de nº 1 da Praça dos Mártires e nº2 da Rua da Boa Vista (Rua Floriano Peixoto), funciona o Correio”.

É um edifício espaçoso, com dois pavimentos, se prestando perfeitamente ao fim a que é destinado, e nesse sentido não tem igual nos estados, sendo somente excedido pelo o que funciona a repartição chefe no Rio de Janeiro.

Fachada Rua João Moreira

Foi adquirido por contrato de 24 de setembro de 1894, celebrado entre o administrador
Antônio Moreira de Sousa, e o representante da associação “União Cearense”, Alfredo Salgado, por nove anos. 
Este Contrato foi aprovado pelo Diretor Geral dos Correios em ofício de 13 de dezembro do mesmo ano. 
Mudou-se a repartição do correio do pavimento térreo do edifício da Assembléia Legislativa, onde estava, para este no dia 7 de março último, como da alta da instalação.

Depois instalou-se The Ceará Tramway Light and Power Co., cujo contrato foi rescindido na Interventoria do Capitão, depois Major Roberto Carneiro de Mendonça (1934). Substituiu na exploração da iluminação pública e particular o Serviço de luz e Força de Fortaleza (SERVILUZ), depois chamado Companhia de Eletrificação de Fortaleza (CONEFOR), mais tarde Companhia de Eletricidade de Ceará (COELCE).” 

Notas de: Raimundo Girão.
Antônio Bezerra de Menezes.
Descrição da Cidade de Fortaleza.

Fachada Rua Floriano Peixoto

Modificações realizadas:

Se adicionou mezanino, em a parte este da edificação, Rua Floriano Peixoto, e marquise corrida na esquina, abarcando as duas fachadas o que interferiu na arquitetura da edificação resultando um elemento totalmente anacrônico.

Análise dos elementos componentes da edificação: 


Edificação de dois pavimentos com mezanino, portas, e janelas ao largo de ambas fachadas e portas e janelas no andar superior, de arco pleno.

Análise da estrutura e possibilidades de recuperação:


O Monumento necessitava de uma intervenção urgente, já que se derrubou parte dele com as chuvas de inverno. Foram realizados alguns trabalhos de emergências, mas que precisava continuar em outras área do prédio.

Critérios específicos de recuperação:

Os critérios para a recuperação das fachadas principais foram fundamentados na restauração em linhas gerais, recuperação de alguns elementos perdidos e recomposição formal de outros.

  •  Manutenção geral de fachadas: rebocos, limpeza, eliminar plantas, parasitas, etc.
  •  Revisão e recuperação de coberta.
  •  Finalizar trabalhos de recuperação na parte demolida.
  •  Revisão e recuperação de calhas.
  •  Revisão de pontos de drenagem pluvial.
  •  Recuperação de janelas no térreo, ver projeto.
  •  Recuperação de aberturas de portas originais.
  •  Recuperação de grades de ferro.
  •  Eliminar revestimento de pedra em molduras de portas.
  •  Restaurar calçada com materiais originais.
  •  Eliminar e redesenhar entradas de fiação de redes elétricas e telefônicas.
  •  Recuperação de portas e janelas originais.
  •  Completar portas e janelas, com materiais e desenhos indicados em    projetos.
  •  Recuperar cores originais nas 4 fachadas do prédio.


O prédio completamente restaurado. Foto de Luís Carlos Sabadia



Fonte: Secult, Cronologia Ilustrada de Fortaleza de Miguel Ângelo de Azevedo, Jornal O Povo, Site oficial do Museu da Indústria e http://www.ofipro.com.br



terça-feira, 19 de abril de 2011

Fortaleza antiga - A chegada do progresso


Bonde Jacarecanga - Arquivo Assis de Lima


O calçamento de pedra tosca constituía-se, para articulista do jornal Razão, em entrave ao progresso manifesto no crescente tráfego urbano. Em 12 de maio de 1929, ele chamava a atenção dos leitores a essa indesejada  herança do passado. Ao contrário dos que realçavam  o feitio nostálgico que o empedramento conferia à cidade, este enfatizou as necessidades práticas de uma nova pavimentação. 



Ha’ cousas velhas que parece nunca mereceram da imprensa a menor referencia. Correm os annos ás dezenas e ellas por ahi afóra permanecem esquecidas dos chronistas, posto que vistas por toda a gente, a qualquer hora do dia e da noite. A razão do olvido é, commummente, o facto de taes antigualhas não constituírem obstaculos á marcha desse corsel alado, que é o Progresso, ou perigos para aquelles que o cavalgam, na ansia de experimentarem a vertigem dos seus vôos... Encontram-se, porém, em Fortaleza 
velharias que estão no caso de ser vistas, revistas, registradas, e destruidas. São trechos de calçamento visivelmente, sensivelmente, perigosamente, improprios para as necessidades do trafego, que a cada momente [sic] se torna mais intenso. [...] Sejamos amigos do 
Progresso.



Ser amigo do progresso implicava despojar-se de resquícios do passado. Se estes obstarem a modernização da cidade – como parece ser o caso de uma árvore postada no meio de uma rua ou de um trecho de calçamento antiquado –, é motivo suficiente para que sejam riscados da 
paisagem urbana. O progresso, ora pintado como um corcel alado – imagem emblemática, pois bem expressa os anseios de modernização de parcelas da população, naquele tempo –, deveria seguir sua marcha inelutável. 


Fortaleza das carroças


Com efeito, Fortaleza conheceria, na década seguinte, um notável surto de crescimento urbano e progresso material. Pode-se dizer que o período se constitui em marco na história da cidade, uma vez que ocorrem modificações de relevo em sua fisionomia: a substituição da iluminação pública a gás por um sistema elétrico, em 1934; a inauguração do Excelsior Hotel, em 1931, arranha-céu com impressionantes sete andares  – edificado, vale 
salientar, sobre as ruínas do sobrado do comendador Machado, demolido em 1927 (construção que datava de 1825 e guardava a marca de ser a primeira a ostentar três pavimentos, na vila recém-elevada a cidade); por fim, a pavimentação das ruas com paralelepípedos, e, nas vias mais movimentadas, a concreto, em reforma empreendida pelo interventor municipal Raimundo Girão, em 1933.


A pavimentação era mister em função da aceleração que caracterizava o novo quadro urbano. O antigo calçamento se achava obsoleto em relação às novas demandas de tráfego, conforme acusou o comentarista, pois a cidade não se movimentava mais como antigamente, ao ritmo moroso proporcionado pelos meios de transporte da Fortaleza antiga, os bondes puxados a burro e os “cabriolets” alugados ao velho Golignac.


 Em vista da agilidade dos novos meios de transporte, impunham-se disposições de espaço favoráveis às expectativas de quem ansiava por experimentar a “vertigem dos vôos” do 
corcel alado” em que se afigurava o progresso. Para tanto, era necessário um espaço desimpedido de árvores e nova pavimentação,  com a utilização de materiais apropriados aos imperativos da velocidade. Assim, é com entusiasmo que o comentarista do jornal  O Povo saúda os leitores com uma “auspiciosa notícia”



[...] o sr. Prefeito da capital, major Tiburcio Cavalcanti, prosseguindo na serie de iniciativas e realizações que tanto destaque têm emprestado á sua proveitosa administração, vai iniciar dentro de breves dias a pavimentação a concreto das ruas da cidade. [...] 
Fortaleza, comquanto seja uma bela cidade, é inegavelmente mal iluminada e peor calçada. O nosso calçamento é o mais retrogrado dos que existem no Brasil. Pedras irregulares, que  mal se ajustam, que se deslocam, se aprofundam, ou sobem de nivel, fazem o atual 
pavimento das nossas ruas, onde é impossivel o pedestre marchar a passo firme e os veículos circularem sem violentas  trepidações. 
Destarte, a medida a ser tomada pelo snr. Major Tiburcio Cavalcanti é dessas que merecem francos aplausos, mormente em se sabendo que não se trata apenas de pavimentar a concreto as arterias importantes da cidade, mas igualmente de calçar a paralelepipedo as 
demais ruas.


Nessa conjuntura, a fotografia foi convocada a testemunhar acerca da transformação da cidade.


 A objetiva atestava a mudança no registro do que desaparecia (caso do Oitizeiro), mas também foi direcionada para elementos que certificavam o adiantamento da urbe. 


A foto documentava a modernização da cidade na exibição de seus signos mais emblemáticos: pavimentação com placas de concreto, tráfego urbano e canteiros centrais arborizados. O fotógrafo preocupou-se em reunir, na mesma imagem, os meios de transporte comuns ao tempo: o automóvel, o auto-ônibus (em circulação desde 1928) e o bonde elétrico (já em declínio). Rua Major Facundo, em 1935 (Fonte: Lopes, 1998). 



Parece certo afirmar que o tráfego era percebido como índice confiável para se inferir o progresso da cidade. Talvez não seja fora de propósito proceder a um breve retrospecto dos meios de transporte em Fortaleza, pois, além de se afigurarem em signos da modernidade, sua expansão repercute em novas formas de sentir o tempo. 
Os primeiros bondes puxados a burro circularam em 1880, através de concessão da Prefeitura à Companhia Ferro-Carril. O evento “marcou época na vida de Fortaleza”, segundo conta João Nogueira, em texto de abril de 1936. 

Os que ainda restam daquele tempo se recordarão, talvez, da admiração e dos aplausos com que foi recebido, nesta cidade, tão grande progresso 


Bandas de música, fogos de artifício e uma sessão solene da Diretoria, lavrada em ata, marcaram o “memorável acontecimento”, que contara com a presença do presidente da Província, entre outras figuras ilustres que se achavam ali presentes.


O escritor Raimundo de Menezes também recordou, no  programa de rádio Hora da saudade, transmitido pela estação PRE-9, os primitivos meios de transporte da antiga Fortaleza. Em 1937, a radiodifusão, tecnologia incipiente na cidade (havia então uma única emissora), permitiu que seus ouvintes, inclusive os que não podiam ler suas crônicas posteriormente editadas na Gazeta de Notícias, experimentassem um sentimento de nostalgia por tempos idos.



Pequeninos, modestos, dirigidos por um boleeiro, quase sempre enfiado num fraque, os primitivos bondes semelhavam, no formato, uma caixa de fósforos, tendo umas cortinas que escorriam balaústres abaixo, em proteção ao calor do sol e bátegas da chuva. Dois néscios 
burros, cabisbaixos, usando uns grotescos antolhos  de couro, puxavam, valentemente, o veículo, vergastados por cumprido chicote, e atendendo, humildemente, aos seus nomes característicos, berrados a plenos pulmões.



Após explorar o serviço por três décadas, a Ferro-Carril fora vendida, em 1912, à empresa britânica The Ceará Tramway, Light and Power. O novo sistema de bondes à tração elétrica seria inaugurado no ano seguinte, o que, no entanto, não significou o sepultamento da antiga forma de locomoção. 
Conforme certifica o escritor, estabeleceu-se um “tráfego mútuo”: a substituição sucedera-se de maneira lenta e gradual, possibilitando a coexistência das duas formas de tração por certo período. O fato valera anedota de Álvaro Weyne, no jornal satírico  O Automóvel, cujo “Dicionário” foi enriquecido de um novo verbete: Light – Companhia de Bondes que faz Expressos com bondes de burros.


Ônibus da Ligth-Arquivo Assis de Lima

Para além do valor anedótico, o episódio permite entrever a cidade como construção humana contínua. De fato, ela não cresce “em bloco”; é, ao contrário, habitada por tempos múltiplos, marcas de outras eras e vivências a elas ligadas. Ademais, a anedota assinala o caráter incerto de um processo que também conhecia tropeços e retrocessos: no passado, como no presente, 
a realidade não era tão lisonjeira quanto pintavam  os cronistas do progresso, conforme é possível visualizar em nota publicada na Gazeta de Notícias, em 24 de setembro de 1929. 

Fortaleza, em materia de transporte urbano, marcha  na retarguarda das suas coirmãs nortistas. [...] A  Light, de par com um horario defficientissimo mas até certo ponto toleravel ainda conserva a mesma rêde conductora de sempre, ameaçando com a sua calma britannica a vida dos transeuntes imprevidentes. As carroças, que fazem de bonde, continuam a passeiar na nossa urbs, indolentes, os restos de sua longa existencia. Domingo ultimo, uma dellas, a de nº. 58, de 2ª. classe, com a placa «1ª. secção–Estação», ás 10,10, cançou sob o peso dos annos, bem em frente a esta redacção.

Estava no  prégo e não conseguiu reanimar as forças. Outra companheira de infortunio arrastou-a para as officinas. Pobres carroças... não têm direito a uma aposentadoria!...

De qualquer modo, o corcel seguia vencendo, não sem alguma dificuldade, os percalços encontrados no caminho: O último bonde de burro que rodou pelas ruas de Fortaleza foi o de n° 25, guiado pelo velho Fialho, na linha do Alagadiço, a derradeira a ser eletrificada.

O número de veículos conheceria um salto notável, ao longo dos anos trinta. Para atender às demandas de locomoção de uma população que quase dobrou em duas décadas – de 78.536 habitantes, em 1920, para 149.670, em 1940 –, eles mais que duplicariam, no período relativo a esta pesquisa: em 1929 eles eram 600 aproximados, para atingirem a cifra dos 1.287, em 1944.

Ônibus da Ligth-Arquivo Assis de Lima

O aumento do número de veículos em circulação pelas ruas da cidade não se realizaria incólume: em decorrência da intensificação do tráfego entravam em cena os atropelamentos, tragédia inaugurada pela modernidade.

 Quem folheasse o jornal, naqueles tempos de mudança, por certo ficaria alarmado ante a freqüência com a qual ocorriam: automóveis, auto-ônibus e bondes elétricos cotidianamente produziam numerosas escoriações, fraturas e mortes, inclusive. 

Dia a dia a imprensa citadina regista atropelamentos nas varias ruas desta capital, a maior parte devido á desenfreada velocidade desenvolvida pelos vehiculos. Hontem, mais um desses accidentes se verificou nesta cidade, sendo grave o estado da victima. Cerca das 16,1/2 horas, o auto-omnibus n. 507 A O, que tinha placa «Joaquim Tavora» e guiado pelo «chauffeur» Elyseu Alves se movimentava em direcção áquelle bairro, tendo partido da Praça do  Ferreira, o qual desenvolvia, na occasião do desastre uma velocidade de 60 kilometros. No momento em que aquelle vehiculo passava em frente á Igreja do Coração de Jesus, apanhou em cheio o menor José Barros Martins, de 12 annos de idade. Resultou desse violento choque receber o menor, que é filho do sr. Joaquim  Martins, ferimentos na cabeça, facturando a perna esquerda e ainda escoriações generalizadas.

Ônibus da Ligth-Arquivo Assis de Lima

Os periódicos de hoje pouco se ocupam em noticiar os “desastres de rua” (uma vez que já fazem parte de nossa rotina), mas aquele tempo deixou vestígios de como eram percebidos: o espaço que lhes era dedicado indica que se constituíam em eventos extraordinários que irrompiam na calmaria da vida de uma cidade pacata, até há pouco. Entretanto, é possível vislumbrar, entremeado aos relatos de acidentes, algo de laudatório, pois, como ironiza 
João Nogueira, em crônica de abril de 1936, estes incidentes se constituem em índices do progresso e grau de civilização alcançado por uma cidade. 
Dizem certos entusiastas que os desastres de rua estão na razão direta do progresso das cidades e que são o índice  (ou termômetro) pelo qual se avalia o progredir de cada terra. Tais 
acidentes mostram que a Fortaleza tem vida, tem gente, movimento e progride.¬¬ É isso?

Em virtude da aceleração urbana, percorrer os espaços da cidade era tarefa que principiava a requerer atenção constante, reflexos rápidos, gestos bruscos...
O perigo de ser colhido por um “auto”, ao atravessar a rua ou descer do bonde, era considerável. Aos mais jovens  talvez fosse possível a adaptação aos novos tempos – arremessados em um turbilhão, poder-se-iam descobrir portadores de forças que não imaginavam possuir, a fim de garantir a própria sobrevivência.

 Aos de mais idade, porém, restava o recolhimento à segurança do lar ou, em caso de descuido, ao tentar apanhar o bonde, à cama da Santa Casa (na melhor das hipóteses). Ou ainda a crítica velada no jornal. 
A Inspetoria Geral de Veículos, órgão criado no intuito de gerenciar a nova situação, buscou coibir a “volúpia” de velocidade de alguns  chauffeurs prescrevendo normas e punições aos infratores (da multa à suspensão da licença para guiar, e até mesmo a prisão). Em edital publicado a 17 de outubro de 1930, foram estabelecidos limites de velocidade conforme as zonas em que a cidade estava dividida: a marcha dos automóveis no perímetro central era 
restringida aos 10 km/h; 20 e 30 km/h, para as áreas urbana e suburbana, respectivamente; e 40 km/h, na área rural.

No entanto, a tecnologia desenvolvida para os automóveis possibilitava que atingissem, já em 1929, a marca dos 120 ou 130 quilômetros horários Em função do rápido crescimento da urbe, uma legislação adequada à nova realidade não tardaria. O Código de Posturas de 1932 substituiu a lei de 1893, obsoleta, pois não contemplava as novas condições, constituindo-se, 
portanto, em obstáculo ao progresso e urbanização da cidade.
O  Código normatizava construções, dimensões de ruas e passeios, arborização de logradouros (criava até uma Inspetoria de Arborização e Jardins, com a incumbência de decidir sobre poda e derrubada de árvores), “garages” para automóveis, estabelecimentos comerciais e o próprio trânsito. O dispositivo legal apoiaria as ações da municipalidade que objetivavam a modernização da cidade, além de prevenir desvios decorrentes do crescimento desordenado, 
que se verificavam em função da ausência de um plano de urbanização. 
No suprimento de tal demanda, inscreviam-se os esforços de Raimundo Girão com vistas à criação e implementação do Plano de Urbanização de Fortaleza, durante sua administração (1933-4). A medida impunha-se, segundo o prefeito, em razão de Fortaleza ser uma “cidade de progresso rápido”, mas pouco sistemático, acarretando erros que a todo 
instante exigiam a aprovação de leis municipais atinentes à sua correção.

 A elaboração do Plano coube ao engenheiro Nestor de Figueiredo, urbanista com vasta experiência, adquirida no planejamento das cidades de Recife e João Pessoa
O tempo do progresso encontraria expressão e legitimidade na Coluna da Hora, grande torre encimada por relógio com quatro mostradores, erigida na praça do Ferreira, no final de 1933. O artefato confirmava a tendência à verticalidade do mundo urbano, já configurada na edificação do Excelsior Hotel – verticalidade outrora preenchida por árvores. Em  uma cidade retrógrada, onde até o mostrador oficial da cidade, que figurava no prédio da Intendência municipal, costumava atrasar, como que a resistir teimosamente à mudança, o 
novo artefato simbolizava uma aceleração do tempo, representava a adesão ao tempo linear, uniforme, do mundo moderno.

A Coluna da hora, na Praça do Ferreira. O relógio ganhava centralidade, 
impondo uma nova duração à cidade. A verticalidade  urbana também se 
insinuava no Majestic Palace, o maior prédio ao fundo. 


O atraso da urbe não se manifestava apenas em seus cronômetros: a deficiente iluminação pública a gás se constituía em outro elemento que atravancava a marcha da cidade no rumo da civilização.

 A iluminação elétrica de ruas e praças, inovação de 1934, substituiu um sistema abastecido por combustores “antiquados” e em número insuficiente,  na percepção de articulista do jornal  A Razão.

 Não bastasse o apontado, os postes eram acesos alternadamente desde 1914, segundo João Nogueira, em função das dificuldades impostas pela Primeira Grande Guerra ao fornecimento de carvão de pedra, combustível de que dependia o sistema. O  que, no entanto, não o impedia de lembrar o tempo em que “a nossa iluminação pública, se não era a 
melhor, era das melhores do país”, superior, inclusive, à nova iluminação, conforme afirmava em artigo publicado em julho de 1938, dedicado às formas de iluminação pública que a cidade já conhecera. 

[...] mas, valha a verdade: a iluminação das nossas ruas até 1914 era mil vezes melhor que a atual. Os combustores eram implantados em ziguezague, distando cerca de trinta metros um do outro, no mesmo lado da rua. Contribuíam para esta excelente iluminação a pequena 
distância entre eles, sua pouca altura (2m40), a brilhante chama em forma de leque, queimando um gás bem preparado, a tampa pintada de branco, por dentro, servindo de refletor, espalhando a luz pelas calçadas e ruas, e a manga de vidro, inteiriça. Tudo isto no alto de uma coluna de ferro fundido, elegante, esguia e canelada. Eram todos numerados.

Seu juízo em favor da antiga iluminação seria posteriormente questionado.
Mas, conforme o historiador Antonio Luiz Silva Filho pontua, João Nogueira não emitia, na passagem citada, um parecer meramente técnico. Talvez ele postulasse sua preferência ao antigo sistema não porque sua luz fosse mais potente, ou constante, mas porque os velhos postes da Ceará Gás compunham a paisagem da cidade onde criara raízes, nas referências consolidadas ao longo do contato prolongado com o espaço, comunhão desfeita com o aniquilamento dessas referências, e conseqüentemente, do mundo onde se reconhecia.
Por outro lado, como vigilante das tradições da cidade e guardião de sua memória (função da qual se auto-incumbira, no longo e doloroso processo de modernização da cidade), a polêmica que levanta  evidenciava a compreensão de que a inovação não representava benefícios tão grandes que justificassem a mudança de um componente tradicional da cidade (o sistema 
datava de 1867, não por acaso, ano em que ele nascera). O problema apontado nos jornais (a economia na hora de acender os combustores) haveria de ter uma solução. Mais que uma presa do saudosismo ingênuo, João Nogueira se revela um crítico mordaz do progresso sem freios, da mudança radical justificada não por um suposto conforto que dela pudesse advir, mas por seu caráter de novidade. Sua aversão não se direcionava à inovação em si, 
mas para sua busca desmedida, que levava os homens  a esquecerem o passado, suas raízes. 

João Nogueira por certo não desejava uma cidade imutável – tal como a Zora pintada por Calvino, que para facilitar a memorização de seu traçado permanecia inalterada, na infindável sucessão de ruas e casas, portas e janelas, e em função disso “definhou”, foi “esquecida pelo mundo”.

Toda cidade cresce, se transforma (como bacharel em Engenharia ele sabia disso perfeitamente). Mas a mudança não devia se colocar  a serviço do esquecimento. Olvidar as tradições é coisa que não admitia. 

O aperfeiçoamento foi saudado por segmentos sociais envolvidos na transformação da capital que ainda se deixava reger pelos ritmos da natureza, mantendo apagados os combustores quando das noites  de lua cheia – o “contrato com a lua” mencionado por João Nogueira e outros memorialistas, alvo de pilhérias por parte da população. Sua luz potente teria o poder de apontar ao garboso corcel alado do progresso o caminho por onde faria sua apoteose, a passos firmes, porque mais seguros, em  virtude do novo pavimento e da eletricidade que lhe alumiava o chão. 
As mudanças ocorridas nas primeiras décadas do novo século pareciam, assim, concretizar o triunfo da cidade sobre as forças da natureza: após os bondes dispensarem os burros como força motriz e uma árvore que se achava no caminho do progresso ser finalmente derrubada, era a vez de o “contrato com a lua” ser rescindido. O domínio da luz permitia escapar aos 
ritmos da natureza e sua regular sucessão entre dias e noites, constituindo-se em elemento definidor da “artificialidade” do mundo urbano.

 A parceria com o referido satélite era coisa do passado, assunto para cronistas da Fortaleza 
antiga. Quando muito poderia ser lembrada, não sem  uma pontinha de saudade.




Fonte: Tempo, progresso, memória: um olhar para o passado na Fortaleza dos anos trinta -
Carlos Eduardo Vasconcelos Nogueira - 2006
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