"No dia 21 de junho deste ano de 1981, apenas um mês e dez dias depois de haver completado 84 anos de idade (nascido que fora em 11 de maio de 1897), faleceu no Rio de Janeiro o escritor Herman Lima, sem dúvida um dos maiores nomes que, de nossa terra, têm saído para projetar-se no cenário da literatura nacional. Nascido no Meireles, em Fortaleza, diante de um mar que povoaria algumas páginas de sua ficção, cultivou o desenho antes de dedicar-se às letras, chegando a publicar charges, capas e historietas em revistas cariocas de larga circulação, na primeira década do século. Mas já nesse tempo, trabalhando na Fotografia N. Olsen, começava a entusiasmar-se com as narrativas de João doNorte, pseudônimo de Gustavo Barroso. Otacílio de Azevedo, meu pai, numa página de reminiscências, ao contar como entrou para aquele estabelecimento, por volta de 1912, como copiador de retratos, evoca: Já lá estava, empregado, um rapazola de olhos vivos e grandes, muito inteligente, às voltas com exemplares das revistas O Malho e Tico-Tico, das quais era colaborador, escrevendo e ilustrando. Na figura principal das historietas que publicava pôs o nome de João Balabrega, seguindo o exemplo de Angelo Agostini, que fazia as célebres aventuras do Zé Caipora. Esse moço era Herman Lima¹.
Graças ao prestígio de Antônio Sales, recém-chegado
do Rio, onde vivera cerca de 20 anos, seria publicado, em
1917 ou 18, na revista Fon-Fon!, o conto Gata Borralheira, o
primeiro conto de Herman estampado num periódico da
então Capital Federal. Essa narrativa, como outras saídas
de sua pena por essa época, versava tema ligado à vida dos
pescadores, figuras bem familiares ao ficcionista que se iniciava.
Ele mesmo confessaria que, ao pensar em novas estórias,
esbarrava num problema dos mais graves: seu total
desconhecimento do sertão...
Foi então que se incorporou a uma comissão que trataria
da construção de uma estrada de rodagem de Aracati
a Quixadá, passando por Morada Nova. Admitido como
feitor de campo, passaria ele quase dois anos no sertão jaguaribano,
no meio dos vastos carnaubais, convivendo com
a população interiorana, e podendo, então, ver de perto as
paisagens tostadas pela seca ou banhadas pelo inverno. Daí
por diante poderia transformar em literatura tipos e cenas
de sua própria experiência.

Jornal O POVO publicado em 04/01/2000 (Clique para ampliar).
No imprevisto de O Arrieiro desfaz-se o que tudo indicava
dever terminar numa tragédia: Mariano, apesar do
aspecto feroz e de seu imenso punhal, era de fato homem
de confiança. Em Ventura Alheia, a tragédia é que constitui
o imprevisto: Damião não desejava a morte do irmão,
tanto assim que correu para desarmar o engenho mortal;
mas a cena dos dois namorados juntos despertou-lhe o ciúme; mostrando-lhe toda a extensão de sua desgraça ...
Quanto à presença da paisagem cearense na obra de
Herman Lima, vale a pena lembrar o que sobre Tigipió escreveu
Humberto de Campos:
O que mais caracteriza este livro é ( .. . ) a
paixão da gleba, o amor intenso do autor pela
terra mártir em que nasceu. Eu conheço o Ceará,
algumas centenas de léguas dos seus sertões e das
suas serras, percorridas no rigor das secas ou sob
a bênção dos invernos abundantes. E confesso que
nenhum escritor do Nordeste me deu, jamais, impressão
mais viva, nem mais justa, das paisagens
que eu vi e das regiões que visitei. Com efeito, só no conto que abre o livro e lhe dá a título, há sugestivos trechos retratando cenas vivas e verdadeiras
da seca e do inverno em nossa terra. Há descrição
como esta:
No cimo das galhadas, sobre o carnaubal cinéreo,
gralham periquitos famintos, grasnam maracanãs,
jandaias, coricas e anuns-pretos.
Somem-se as águas dos poços, putrefeitas.
Nas fazendas, principia então a labuta horrível de escavar a terra ardente, em procura da
gota salvadora que o solo insaciável a mais e mais
vai sugando.
Ou com esta outra, onde é bem diversa a paisagem:
Três dias depois da segunda chuva, de todos
os pontos da terra exsicada espantam os brotos
verdes da babugem. Os troncos negros, que pareciam
mortos, vestem-se de folhedos tenros, esmeráldicos.
No cimo das galhadas, nos juremais primeiro,
surge uma folhagem verde-gaio, tão leve e tão
tênue, como bocados plúmeos de nuvens verdes,
tombados sobre a mata. Nos baixios alagados estendem-se
as águas claras das lagoas, como outros
pedaços do céu, onde em breve se estrelará a floração
branca do muçambê. Como não poderia deixar de acontecer, o poder verbal
do ficcionista está presente nas páginas sentidas de seu
livro de memórias, Poeira do tempo: para dar apenas um
exemplo, e dos mais eloquentes, basta o capítulo O Primeiro
Amigo, onde é evocada a figura de José Nogueira, assassinado
a tiros em frente ao Clube dos Diários, em 1914. Depois
de falar do amigo e da tragédia que o vitimou, abalando
Fortaleza, revela o escritor que, quase 25 anos mais tarde,
no Rio de Janeiro, no velho casarão do Tesouro, onde trabalhava,
num local que ele expressivamente descreve como
urna "sala sempre escura, por mais que fosse meio-dia",
alguém o procurara, em busca de um papel de seu interesse
e ao identificar-se, "deixou cair o nome do assassino de
José Nogueira".
José Nogueira e o Clube dos Diários, local do crime.
Reproduzo na íntegra o final desse capítulo: Por um momento, na sala silenciosa e lôbrega, foi como se tivesse havido um tiro. Instintivamente me retraí, dum modo que não poderia ter passado despercebido a ele. É que o papel que eu tinha debaixo dos olhos, sobre a mesa, como que se transmudara de repente naquelas mesmas finas roupas do rapazinho morto de Fortaleza, o paletó chamuscado de balas, a camisa numa papa de sangue, que eu vira uma vez, como prova do processo do crime, com que se fora aquela vida, tirada pelas mesmas mãos que agora se estendam para mim, sinistras e ao meu parecer ameaçadoras, como as dum fantasma do passado vindicativo. Posso dizer que nasci ouvindo o nome de Herman Lima, tantas vezes o pronunciou meu Pai, rememorando os tempos remotos da Fotografia N. Olsen. Mais tarde, pude admirar-lhe a obra literária e compreender a importância de seu papel no panorama de nossas letras. Mas foi só em 1974 que pude conhecê-lo pessoalmente, em sua última vinda a Fortaleza, quando fomos visitá-lo, no Meireles, meu Pai e eu, levados pela mão amiga de Braga Montenegro. Podia eu ver de perto um dos maiores vultos da literatura de nossa terra. Alto e anguloso, aquele homem de quase 80 anos de idade, que deixara o Ceará havia mais de meio século, nada tinha de baiano, nem de carioca, nem de cosmopolita: era um puro cearense, ora assumindo ares de matuto encabulado, ora entusiasmando-se com o relato de fatos ligados à sua vida de escritor, ora desfazendo-se em risos ao evocar as peripécias de sua juventude ... Depois, estive com ele algumas vezes no Rio, em 1976 e 77, em sua casa do Jardim Botânico ou em reuniões na biblioteca de Plínio Doyle. E sempre, por mais que derivássemos a conversa para outros assuntos, terminávamos falando do Ceará, principalmente do Ceará de seu tempo, que era também o da iniciação de meu pai nos caminhos da literatura. Eram conversas agradáveis mas ao mesmo tempo tristes, porque molhadas de saudade. Da segunda vez que me demorei no Rio, em 1979 e 80, sabendo que o escritor estava enfermo, e que cada vez mais se tornava precária sua saúde, confesso não ter tido coragem de visitá-lo. Ademais, já então meu pai havia passado para o outro lado da vida, e mais tristes teriam sido as nossas conversas sobre esse tempo que não foi o meu, mas que sempre me pareceu tão familiar... Herdeiro direto do Realismo, Herman Lima, com a obra que deixou, não é nome que possa jamais ser esquecido: ficcionista, cronista, crítico, memorialista e também tradutor, sua obra mereceu elogios de nomes como João Grave, Agrippino Grieco, Humberto de Campos, Carlos Chiacchio, Medeiros e Albuquerque, M. Cavalcante Proença, Manuel Bandeira, Gustavo Barroso, Antônio Sales, Mário Linhares, Dolor Barreira e Braga Montenegro, para citar apenas alguns escritores que, como ele, já empreenderam a Grande Viagem. Com a morte de Herman Lima, a cuja memória a AcademiaCearense de Letras rende homenagem, não é exagero afirmar que se encerra todo um capítulo da história."
• Sânzio de Azevedo
¹literária do Ceará e do Brasil. 1 AZEVEDO, Otacílio de. Fortaleza Descalça. Fortaleza, Edições UFC, 1980, p. 245
Crédito: Academia Cearense de Letras/ Relendo Herman Lima - Sânzio de Azevedo
Olá, boa noite. Parabéns pelo belíssimo trabalho. Entretanto, gostaria de saber se você dispõe de meios para buscar a história das emissoras de ondas curtas que operaram no Ceará. Quais eram? Quantas eram? Quais os programas? Onde ficavam os "parques de antenas"? Operavam com que potência? Enfim, é isso. Valeu e tudo de bom.
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