Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



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domingo, 17 de julho de 2016

Estoril -Antiga Vila Morena (Vídeo)

 

Ícone da “boemia” da Praia de Iracema, a antiga Vila Morena, ou residência dos Porto, foi construída pelo comerciante pernambucano, descendente de portugueses, José Magalhães Porto, entre 1920 e 1925, e foi a primeira construção de destaque da então Praia do Peixe. O português desafiou os conselhos de amigos, que o alertavam sobre os perigos da praia, com suas ondas fortes. A teimosia fez com que ali instalasse sua moradia. O nome, como era usual à época, foi dedicado à esposa, Francisca Frota Porto, conhecida como ‘Morena’. A residência conservava ao redor um belo jardim onde também eram criadas algumas aves. Dizem que foi a primeira moradia com piscina de Fortaleza…


Veja a matéria completa no Vós



Crédito: Vós

Agradecimento especial: Paulo Maranfon e equipe

Sobrado do Dr. José Lourenço - História e Vídeo

Tido como a primeira edificação de três andares do Ceará, o sobrado do médico sanitarista Dr. José Lourenço de Castro Silva foi construído na segunda metade do século XIX, na então Rua da Palma, hoje Rua Major Facundo, para servir de residência e de consultório.

Dr. José Lourenço era natural de Aracati, nascido em 1808. Formou-se médico no Rio de Janeiro. Em seu sobrado, mantinha no térreo o consultório, onde clinicava à moda popular e nos andares superiores, vivia com a família. Morador de uma Fortaleza em clara expansão, sua casa era sinônimo de status e poder, construída numa época intitulada pelos cronistas como o mais longo período sem estiagem da história de Fortaleza [1846 a 1876 – A construção do sobrado data desse intervalo], em que a cidade se consolidou como capital, esvaziando Aracati, até então porto, entreposto comercial, sede de oficinas de charqueadas e ponto de ligação com Pernambuco, a quem fomos atrelados, politicamente, até 1799. Empolgada com o rápido crescimento de Fortaleza, as famílias abastadas começam a modernizar a cidade, construindo suas casas nos moldes dos padrões europeus. 

Conforme o professor de Mestrado em História Social da UFC, Gilmar de Carvalho, o sobrado era uma espécie de farol que irradiava a ordem médica, representado pelo seu proprietário, Doutor José Lourenço, uma figura respeitável na província, do ponto de vista de sua credibilidade como médico e de sua ética como homem público. Era o mais alto, esguio e, por isso mesmo, elegante. Trazia uma escultura em seu topo, da qual restaram apenas vestígios de mármore. Provavelmente uma figura mitológica, mas não se tem totalmente certeza como esclarece o professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, Liberal de Castro. José Lourenço faleceu em 13 de agosto de 1874 em Fortaleza.
O sobrado na década de 70. Foto de Nelson Bezerra
No ano seguinte à morte do médico, a família alugou o sobrado ao Tribunal de Relação do Ceará (repartição judicial hoje correspondente ao Tribunal de Justiça do Estado), que funcionou no local por longos anos. Depois abrigou (por breve período) a Prefeitura Municipal de Fortaleza, uma oficina de marcenaria, bordel, casa de sombrinhas... Tudo isso pode ser encontrado, não apenas na crônica histórica ou nos anúncios de jornais, mas nas paredes, como inscrições que camadas de tintas superpostas deixam entrever no trabalho paciente do restaurador.
Fortaleza, 13 de agosto de 1874. Jornal Fraternidade, maçom, comunica o falecimento do seu membro, médico mais famoso da época, José Lourenço de Castro e Silva. Ele se tratava no seu sítio em Messejana.  Acervo Lucas
Foto de Isabela Rodrigues

Pintura em uma das paredes do sobrado, quando este funcionou como bordel. Foto de Claudecir Azevedo
A situação lamentável que estava o sobrado.
Situado no número 154/156 da Rua Major Facundo, foi protegido pelo tombo estadual (segundo a lei n° 9.109 de 30 de julho de 1968) em 2004 pela Secretaria de Cultura do Ceará. Dois anos depois, o Governo do Estado, com apoio do Instituto Oi Futuro, começa o trabalho de restauração, tendo a frente o arquiteto Domingos Linheiro, que repaginou cores e formas do belíssimo imóvel. A restauração também contou com o auxílio dos alunos da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu. Era devolvido a Fortaleza o luxuoso casarão, de traços neoclássicos, ornado por azulejos, florões e rosáceas e telhado prismático de quatro águas. A fachada principal é coroada com um frontão triangular, com o tímpano preenchido por motivos ornamentais fitomórficos, e apresenta janelas de rasgo e de peito envoltas em arcos plenos nos segundo e terceiro pavimentos, respectivamente. A edificação se destaca também pelo tratamento dado às fachadas laterais, que possuem janelas que dão para telhados vizinhos e cornijas acompanhadas por frisos de azulejos, algo atípico para um sobrado unido às suas divisas.

O Sobrado antes da restauração. Foto: José Rodrigues
O Sobrado antes da restauração. Foto: José Rodrigues
O Sobrado antes da restauração. Foto: José Rodrigues
O Sobrado antes da restauração. Foto: José Rodrigues
Foto: José Rodrigues

Foto: José Rodrigues
O pleito amparou-se nos seguintes fatos para solicitar o tombo do sobrado:

° Evidente mérito arquitetônico da edificação.

° Valioso exemplar remanescente de uma tipologia
arquitetônica quase desaparecida na cidade.

° Precariedade na conservação do imóvel.

° Referência para a história judiciária do Ceará.

° Recentes entendimentos feitos para aquisição do imóvel pelo Governo Estadual, sem dúvida, em face das razões acima arroladas.

O trabalho de restauração foi difícil, pois muitas das técnicas construtivas do Sobrado se perderam com o passar do tempo. Azulejos tiveram de ser refeitos, o mosaico hidráulico era de procedência europeia, o lodo cobria detalhes e engastes, parte da pintura decorativa interna precisou ser refeita, o tempo corroeu as tábuas corridas e fez interferências que precisavam ser corrigidas para que tivéssemos o Sobrado de volta ao seu esplendor, explicou à época Domingos Linheiro, o arquiteto que coordenou os trabalhos.

Foto: Isabela Rodrigues
Em 31 de julho de 2007, o Sobrado Dr. José Lourenço é inaugurado ao público com nova identidade: um novo Centro Cultural aglutinador das artes visuais do Ceará. O espaço abriga salas para exposição, auditório e café, consolidando-se como local de convivência e difusão das artes visuais, possibilitando o acesso gratuito da população a uma programação comprometida com a criatividade artística e a inclusão cultural. 

Foto: Isabela Rodrigues

Foto: José Rodrigues
Teve como primeira exposição, a 4ª Mostra Cariri das Artes, intitulada “O Cariri Aqui!”. Nela, obras de artistas nascidos ou radicados na sub-região cearense foram reunidas. Na ocasião, também houve o lançamento do livro “O sobrado do Dr. José Lourenço”, organizado pelo pesquisador Gilmar de Carvalho e realizado pela Associação dos Amigos do Museu do Ceará. A publicação traz fotos das etapas da restauração, textos de renomados estudiosos cearenses sobre o ilustre médico, além da reflexão sobre os múltiplos usos do sobrado e sua significação.

Com seus mais de 150 anos, o sobrado é uma espécie de sentinela do tempo!

Horário de visitação:

Terça à sexta-feira das 09h às 19h
Sábado das 10h às 19h
Domingo das 10h às 14h.


Entrada Gratuita.



Texto publicado originalmente na minha coluna no Vós.
Agradecimento especial: Paulo Maranfon e equipe

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Os espaços de lazer na Fortaleza de outrora


Na virada do século XIX para o XX ocorreram planos de modernização em Fortaleza que incluíram a “remodelação” do espaço urbano, ou seja, a “disciplinarização” do crescimento da cidade. Com o intuito de evitar a expansão desordenada, Adolfo Herbster preservou o traçado xadrez de Silva Paulet, vislumbrando a possibilidade de ocupação das áreas periféricas, fato que não custou a se tornar realidade, enquanto as novas elites econômicas e intelectuais, compostas por comerciantes ligados ao comércio interno e externo, de profissionais liberais como médicos e advogados, em sua maioria bacharéis formados no exterior ou na conceituada Faculdade de Medicina da Bahia, e a classe média de pequenos comerciantes, artistas, poetas e os demais trabalhadores letrados, ocupavam e valorizavam as áreas centrais da cidade, as regiões mais afastadas e com menores condições de infraestrutura foram legadas aos pobres, negros e migrantes do interior do Estado.


Esse sistema de ocupação dos espaços, inspirado nas reformas do Barão de Haussmann em Paris, contribuiu para que as diversões das camadas abastadas fossem isoladas em clubes e salões. Nesses ambientes as elites tentavam se distinguir socialmente se apropriando de bens culturais trazidos da Europa, como os pianos Essenfelder e Doner & Sohn, que eram encontrados em um número reduzido e ritmos europeus como a valsa, a polca, o schottisch e a quadrilha. Já nos areais das zonas periféricas, a “arraia miúda” (designação degradante que os grupos elitistas faziam das camadas empobrecidas, sobretudo aqueles que bebiam e frequentavam bordéis na cidade) se divertia com suas manifestações tradicionais como os fandangos e maracatus. No entanto, essas festas eram, em grande parte, desmanchadas pelas autoridades policiais, com a justificativa que causavam muitos tumultos. Essa condição suburbana imposta a uma parcela da população cearense desfavorecida economicamente, de fato, contribuiu para o surgimento de uma cultura “à margem” do “afrancesamento” e do requinte aclamados pelas elites locais.



Porém, essas “restrições” não foram suficientes para conter a aproximação dos artistas, sobretudo os boêmios, com os mais humildes nas zonas periféricas ou à noite nos espaços públicos. Dos cronistas pesquisados, Otacílio de Azevedo foi o que mais se preocupou em analisar esses episódios. Apesar de Azevedo ser um memorialista e olhar o passado com saudosismo, trouxe em sua escrita um olhar diferencial sobre o movimento musical de seu tempo, que pode ser confrontado com as outras fontes. Ele mesmo foi um grande frequentador dos ambientes relatados, junto com os seus companheiros boêmios.
Foi encontrado em seus escritos o Café do Pedro Eugênio, localizado na segunda seção da linha do Benfica. Esse café “abrigava”, nas noites de sábados e domingos, seresteiros, arruaceiros e intelectuais, como Quintino Cunha, Virgílio Brandão, Carlos Severo, Carlos Gondim, Raimundo Ramos e Mamede Cirino. Pedro Eugênio residia em um casarão ao lado do estabelecimento, antigo Dispensário dos Pobres.


Outro recanto de artistas era o sítio de Pedro Dantas, localizado no logradouro “Mata Galinha”. Estava situado entre Fortaleza e Messejana, local que hoje é chamado de Dias Macedo. Observa-se nos relatos que músicos como Rossini Silvia, Artur Fernandes, Edgar Nunes, Aristides Rocha, Antônio Moreira, Júlio Azevedo, Alfredo Martins e Boanerges Gomes, esse último contrabaixista da orquestra do Cine Majestic, misturavam-se com “gente de todo o tipo”.




A Barbearia de João Catunda foi um lugar, um tanto excêntrico, que serviu de divertimento para poetas, músicos, pintores e teatrólogos reconhecidos pelas suas obras
artísticas em nossa capital. O “salãozinho pobre” de João Catunda era localizado na Rua Floriano Peixoto. A simplicidade do ambiente de teto de estopa caindo, onde os fregueses se
equilibravam em velhos bancos e se refletiam em espelhos mofados e carcomidos, não impedia de se criar um ambiente de debates calorosos. A preferência por esse local era tanta
que passou a ser sede da Academia Rebarbativa, composta por Carlos Severo, Josias Goiana, Luís de Castro, Genuíno de Castro, João Coelho Catunda e José Gil Amora. Otacílio de Azevedo aponta que após as reuniões da academia os boêmios se embebedavam e terminavam a noite na Praça do Ferreira, sentados num banco diante do Café Iracema, de Ludgero Garcia, onde discutiam literatura, “metendo a lenha nos medalhões da época”, como o Barão de Studart, Papi Junior, Antônio Sales, entre outros.


No entanto, é na “Lapinha” (Denominação popular do pastoril) do Paula Ramos que se percebe a intensidade desse contanto com os diferentes grupos, pois encontramos também figuras femininas, cujos relatos dos cronistas eram escassos a respeito da participação delas em divertimentos desse tipo em Fortaleza no período. Empregadas domésticas e lavadeiras tiveram acesso à maioria das músicas que embalaram suas vidas nesse ambiente como foi observado por Azevedo. A Lapinha do velho Paula Ramos se tornou bastante famosa em Fortaleza. Estava situada na Rua do Imperador, para onde se dirigiam à noite centenas de pessoas. Elas costumavam pagar duzentos réis pela entrada no presépio construído sobre o dorso de uma serra, talhada em latas velhas amassadas e cobertas de papel grosso pintado, imitando pedras. Uma pequena máquina rodava sobre os trilhos soltando fumaça, apitando insistentemente e levando atrás um comboio. Um velho gramofone fazia a parte musical, tocando “valsas chorosas” à luz da meia dúzia de lampiões de acetileno.





É notável o empenho de Otacílio de Azevedo em demonstrar que os divertimentos acompanhados por música aconteciam em locais inusitados, e não somente nos clubes, nos
salões e nos teatros. Outro cronista, que também publicou livros documentais e analíticos
sobre música e que analisou a interação entre diferentes tipos sociais nesses locais foi Edigar
de Alencar
. A bodega, por exemplo, foi destacada pelo escritor como um ambiente catalisador e divulgador da criatividade musical entre seresteiros e ex-cativos cantadores.

 


A bodega na Fortaleza de anteontem foi sempre nota de realce da vida pacata da sua gente. Ponto de convergência e reduto de importância acima das rotineiras e modestas atividades mercantis. Assim com a farmácia era o local destacado – e ainda hoje deve ser – dos vilarejos e burgos do interior, a bodega nas cidades maiores era sem dúvida elemento catalisador e divulgador dos acontecimentos que merecessem essa qualificação.
As bodegas mais famosas da cidade eram do Mané Boi (Imperador), do Zé Ramos (Santa Isabel), do Gambetá Bruno (Imperador), Do Maracanã (Imperador), do Zé Macieira e do Chico Ramos (na Tristão Gonçalves, ou Trilho de Ferro), a do Lopicínio, do Eduardo Garcia e do Chico da Mãe Iza. A maioria das bodegas citadas estava localizada em terrenos centrais da cidade e não nos areais. Esse dado é revelador, já que as sociabilidades entre indivíduos empobrecidos podiam ocorrer também em terrenos fora da periferia. Lugar de música e de boemia, a bodega do negro Chico da Mãe Iza foi muito frequentada por seresteiros e violeiros. Francisco Borges da Silva, conhecido como Chico da Mãe Iza nasceu no Icó e possuía uma bodega localizada na Rua 24 de Maio.
Era na bodega famosa que os seresteiros imprevidentes se iam suprir, quando lhe rebentavam de súbito as primas e os bordões: - Ih! Rebentou a terceira! Temos que ir bater no Chico da Mãe Iza! E mesmo que se encontrassem em pontos distantes da Rua 24 de Maio, vinham pela madrugada, batiam na porta e o bodegueiro aparecia, mal refeito pelo sono, para servi-los já ai não só de cordas de violão, mas de generosos tragos de pinga do Acarape, do anis e da genebra ordinária da fábrica de Paulino de Oliveira da Rocha.



A frequência dos boêmios nesse tipo de estabelecimento era tanta que Raimundo Ramos dedicou uma estrofe de seus versos: Palestra de bodega é bebedeira. Os comerciantes, acostumados com a circulação da boemia, abriam seus estabelecimentos fora do horário comercial. O bodegueiro Rato, por exemplo, só abria as portas com a condição de que os músicos tocassem “Zé-Pereira”.* Sua bodega era localizada nos areais da cidade, ou seja,
nos trechos não calçados. Os quiosques situados nos logradouros serviam também de estimulante opção para a boêmia. Nesses ambientes tudo indica que havia exagero de consumação alcoólica.



Os seresteiros, também conhecidos como modinheiros, foram responsáveis pelas resignificações culturais que ocorreu fortemente nessa virada de séculos. No entanto,
observando os relatos de cronistas, periódicos e partituras editadas, percebemos que os
seresteiros pertenciam a “boas famílias” e não encontravam proibição em circular desde
espaços de lazer “da fina flor da sociedade” até os areais. Apesar dessa abertura, os modinheiros não deixavam de ser escrachados pelos familiares das moças galanteadas, que os
viam como irresponsáveis por causa do gosto pela bebida, pela polícia, que os rotulavam como desordeiros por andarem nas ruas de madrugada tocando o violão, e pela Igreja, que não acreditava que as posturas tomadas por esses indivíduos fossem condizentes com a
moralidade da época.

Os bancos das praças públicas em noites de luar serviam para o lazer e a criatividade desses boêmios que se juntavam a mulheres de toda sorte e a todo tipo de gente “degradante” da sociedade. A troca de experiências desses grupos em alguns momentos era produtiva, pois, enquanto os modinheiros se utilizavam dos exemplos de vida dessa gente para compor suas músicas, os habitantes das zonas periféricas aprendiam esse novo saber musical, ou seja, uma nova estética para adicionar a suas manifestações tradicionais. Também propagadoras desse saber musical eram as seresteiras domésticas, mulheres que atenuavam seus problemas cotidianos com o canto de modinhas. Sobre isso Edigar de Alencar comentou:

“Das cozinhas e dos quintais do casario humilde as modinhas subiam aos ares, através da voz
nem sempre afinada das mulheres e das moças lavando e engomando roupa, ou atenuando a
dureza dos afazeres domésticos”.



É possível observar que as diversões dos sujeitos de posses, sobretudo as dos grandes comerciantes, grupos ligados ao regime oligárquico e estudantes recém formados na faculdade de Recife, buscavam se isolar criando suas próprias diversões. Os bailes eram realizados, em sua maioria nos poucos palacetes existentes em Fortaleza, sobretudo nos do Mendes Guimarães, do Capitão-mor Joaquim Barbosa e do cônsul Manuel Caetano de Gouveia. Os salões particulares se denominavam soirée, partida ou sarau, mas todos queriam
dizer a mesma coisa: um evento musical em casas privadas que incluía, em geral, mais do que
apresentações musicais. Normalmente ocorria a leitura de poesia, seguida de número musical,
canto e piano ou peças instrumentais e, por vezes, até peças cômicas estavam entre as atrações da noite. Após o evento, um jantar era oferecido, seguido do baile.
Raimundo Girão narrou alguns dos episódios que ocorreram nos bailes realizados no sobrado do Coronel Eustáquio, em comemoração à vinda do presidente da província
Fausto Aguiar e de sua esposa. Percebemos na descrição de Girão que apresentar “boas
maneiras” nesses eventos era essencial para que os indivíduos fossem aceitos pelos grupos.
Essas “boas maneiras” podiam ser entendidas naquele período como um conjunto de práticas
sociais que incluía a forma de se pôr a mesa, de vestir, de falar, de dançar, de declamar versos
para os convidados, entre outros.




Das sete horas da noite em diante começaram a concorrer os convidados, e à proporção que se aproximava qualquer família, era sua vinda anunciada pela música que, postada na portada do edifício, fazia ouvir agradáveis sons, enquanto os mestres-sala recebiam as senhoras à entrada e as conduziam às salas, onde o bom gosto, com que se achavam vestidas, de tal modo fazia realçar as graças com que a natureza as dotou, que atraiam sem cessar as vistas de todos os assistentes, os quais, com a presença de tantos encantos, aumentavam a alegria de que se achavam dominados. [...] No curso do baile houve mui bem desempenhadas contra-danças, que tinham lugar ao mesmo tempo em ambas as salas, dançando em cada uma, uma vez, dezesseis ou doze pares; os intervalos foram cheios ou por modinhas que algumas senhoras se dignaram cantar com geral aplauso, ou valsas desempenhadas com toda agilidade, tendo também em um deles a exmª Senhora do sr. Presidente, por sua bondade e cedendo às instâncias do Dr. Fernandes Vieira, tocando com todo primor no piano algumas variações da Norma. Antes de concluir-se o baile, foi recitado um soneto e para maior brilhantismo haviam preparado não pequena porção de fogos de artifício, a saber: bastante fogo no ar, figuras, rodas, um balão, etc., O chá foi servido a contento de todos, havendo nele muita riqueza e profusão, notando-se em tudo uma admirável variedade. Finalmente, todo o baile esteve excelente, tendo sido o único inconveniente o de não ter casa bastante cômodo para os
concorrentes.

Os motivos pelos quais Raimundo Girão lançou o olhar sobre essas práticas e espaços estão intrinsecamente relacionados ao lugar social com que ele se identificava. O historiador concebeu suas crônicas a partir das experiências como diretor do Instituto do Ceará, prezando a racionalização dos espaços e dos “bons costumes” como metas para alcançar o progresso. De uma forma geral, os bacharéis em Direito, dos quais Raimundo Girão fazia parte, desempenharam papel fundamental na construção dessa nova ordem urbana.
Assinaladas pela racionalidade cientificista em voga na Europa, formaram instituições de saber, compartilharam dos mesmos anseios civilizatórios das classes dominantes e colaboraram estreitamente com o Estado ao conferir a competência técnica que o poder então
carecia. Galgando prestígio científico e político, esses grupos de letrados pretendiam instaurar
novos conhecimentos e representações sobre a cidade, fazendo circular um campo de diversificadas “verdades” e medidas voltadas para o ajustamento da população às novas
regras de vida e trabalho urbanos.


No entanto, pequenos vestígios da interação social entre grupos distintos aparecem brevemente na obra Geografia Estética de Fortaleza, de Raimundo Girão. Ao tratar das diversões tradicionais da pequena província entre os anos de 1830 e 1870, Girão tece um pequeno elogio saudoso às antigas festinhas domésticas de que “todos” participavam e que
ocorriam no meio da rua, como as noites de São João nos arruados térreos e as brincadeirinhas de cirandas e pastorinhas nas praças encobertas de areia e embora termine seu comentário aclamando o estilo de vida europeu, que proporcionou ensinamentos que, segundo ele, eram postos em prática nos bailes mais luxuosos da cidade.



Continua...

* “Zé Pereira”, marcha que, segundo Edigar de Alencar, há muito ganhara o status de hino do carnaval brasileiro. A sua quadrinha se tornou célebre como grande grito do carnaval: “Viva o Zé Pereira/ que a ninguém faz mal./ Viva a pagodeira/ nos dias de carnaval.” Cf.: ALENCAR, Edigar de. 1967. Op., cit., p. 25.


Crédito: Ana Luiza Rios Martins - Entre o piano e o violão: A modinha e a cultura popular em Fortaleza (1888-1920). /Biblioteca Nacional

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A arquitetura do ferro em Fortaleza (Parte II)




Os séculos XIX e XX foram marcantes no quesito da exportação de matérias-primas e a importação de produtos industrializados que chegavam introduzindo novas práticas sociais e e a introdução de novos valores culturais, que iriam favorecer as reformas urbanas e a inserção da arquitetura do ferro na cidade.

Por sua produção rural, Fortaleza passou a deter, um movimentado porto exportador-importador. Diante dessa expansão econômica e urbana da cidade, os poderes públicos, as elites enriquecidas e os setores intelectuais realizaram um conjunto de reformas urbanas com a intenção de alinhar a cidade aos códigos de civilização, usando como referência modelos materiais e estéticos dos grandes centros urbanos europeus.

Fortaleza teve seu desenvolvimento atrasado pelo tardio povoamento do Ceará, iniciado apenas no começo do século XVIII, principalmente por ser dependente da capitania de Pernambuco e impossibilitada desta forma de efetivar relações comerciais diretamente com a Corte e outros países europeus; e, também, pelo modelo de ocupação do território, que se deu do sertão para o litoral, mesmo que com o passar do tempo esse litoral seja fundamental para o desenvolvimento da capital.

Em 1726, Dom João V resolveu conceder o Forte com o título de Vila. Fortaleza passa a usar esse título, mas pouco muda seu aspecto de abandono e pobreza em que estava até então, quase ilhada no “montão de areia”. A primeira Planta da Vila de Fortaleza, de 1726, desenhada pelo Capitão-Mor Manuel Francês, mostra bem essa realidade. (Ver primeira foto da postagem).

Entretanto, o ano de 1799 seria para a pequena “Vila da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção”, muito favorável. Enfim, por ordens reais, a capitania do Ceará se separa definitivamente de Pernambuco e cria-se, assim, a possibilidade de comércio direto com Lisboa. O porto de Fortaleza, um simples ancoradouro, encontrará finalmente uma função específica. 
No decorrer do século XIX, se dão as subsequentes ações transformadoras no espaço da cidade de Fortaleza.
Só a partir do segundo reinado, quando os presidentes de província passam a ser os agentes do poder central, é que a cidade de Fortaleza vai melhorar seus indicadores econômicos, principalmente em relação a Aracati. O limitado volume da produção e do mercado impediriam a possibilidade de sustentação das duas cidades e justificariam a disputa entre Aracati e Fortaleza. Porém, essa concorrência foi vencida por Fortaleza, por ser capital da província.



Um dos primeiros a relatar tais acontecimentos foi o viajante inglês Henry Koster, entre dezembro de 1810 e janeiro de 1811, quando visitou a cidade então vila, com não mais que cinco ruas e fez a seguinte descrição:

[...] edificada sobre terra arenosa, em formato quadrangular com quatro ruas, partindo da praça e mais outra, bem longa, do lado norte desse quadrado, correndo paralelamente, mas sem conexão. As casas têm apenas o pavimento térreo. Mas n‟algumas residências, há uma calçada de tijolos deante. Três igrejas, o palacio do governador, a Casa da Câmara e prisão, Alfândega e Tesouraria (KOSTER41, 1942: 165 apud CAMPOS, 1988: 60).

Precária formação urbana tem seus dias contados, quando o Senado da Câmara, a 21 de novembro de 1812, pleiteia a autorização do Governador para os procedimentos de elaboração de planta que oriente a edificação da cidade. Esta necessidade de racionalização aparece no tecido urbano a partir da chegada e influência do engenheiro Antônio José da Silva Paulet em 1812. Chegou como ajudante de ordens do 4º governador da Capitania do Ceará, o Coronel Manuel Ignácio de Sampaio, e foi o último engenheiro-militar enviado para a Capitania. Veio com o objetivo de realizar levantamentos cartográficos do território, como também implementar obras arquitetônicas e intervenções urbanísticas. As realizações materiais da administração do Governador Sampaio ficou marcada por obras de vulto, como a nova Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, o edifício do mercado da vila e a abertura de ruas retas, com cruzamento em xadrez.

Fortaleza foi descrita da seguinte forma, pelo engenheiro-militar Silva Paulet em 1816:

Esta villa é a capital da capitania; assento do governo, com um batalhão de tropas regulares, um juiz de fora que é auditor da tropa e juiz de alfândega. Há uma caza de camara arruinada: não tem cadeia, e servem-se as autoridades civis de uma cadeia militar; o que dá motivo a uma infinidade de contradições e etiquetas, que se não podem emendar, em muito detrimento da expedição das dependencias criminaes. A villa é pobre, seo comercio de pouco vulto, ainda que o porto é soffrivel, apezar de ser uma enseada, mas como só as immediações do termo do Aquiraz, e parte da villa de Monte-mór o Novo se surtem da Fortaleza, o commercio é muito menor do que o do Aracati. Não há uma só caza de sobrado, e as terreas são muito inferiores. O sólo é de areia solta, o tijolo, cal e madeiras são caros, e tudo concorre para ser mui despendiosa a edificação. (PAULET, 1898: 16).

Respeitando o traçado original que encontrou, Silva Paulet sobrepôs uma nova malha, em xadrez, ajustável ao terreno quase plano, onde a cidade tinha se desenvolvido

No período imperial, em 17 de março de 1823, Dom Pedro I elevou a Vila de Fortaleza à categoria de Cidade da Fortaleza de Nova Bragança, denominação que pouco agradou e logo foi renomeada para Cidade da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Porém, um pouco antes desses acontecimento, em 1820, Paulet deixou o Ceará. Nessa situação, o arruador e profissional da municipalidade, Antônio Simões Ferreira de Farias, que era auxiliar de Paulet, desde 1812, nas obras de edificação e nos trabalhos de implantação do novo plano de desenho ortogonal aplicado à então vila, deu continuidade ao trabalho do engenheiro.

Na década de 1860, o suíço Luís Agassiz, que chefiava a missão científica Thayer Expedition, acompanhado de sua esposa Elizabeth Cary Agassiz e de um grupo de naturalistas, ao visitar Fortaleza, descreveu a capital cearense desta forma:

Gostei do aspecto da cidade do Ceará. Agradaram-me as ruas largas, limpas, bem calçadas, ostentando toda sorte de cores, pois as casas que as ladeiam são pintadas dos mais variados tons. Aos domingos e dias de festa, todas as sacadas se enchem de moças com alegres toaletes, e os grupos masculinos enchem as calçadas, conversando e fumando. Ceará não tem esse ar triste, sonolento, de muitas cidades brasileiras; sente-se aqui movimento, vida e prosperidade na cidade (AGASSIZ, 2000: 408).

Fortaleza começava a apresentar nesse período um certo progresso no cotidiano social, e em termos de mudanças nos aspectos construtivos das edificações, como tão bem observou Agassiz em sua passagem pela cidade:

As casas baixas, proletárias, de beira e bica, paredes de taipa e, também, as mais presunçosas, de beira e sub-beira, portas lisas e sem bandeirolas nem persianas, aos poucos eram substituídas por outras mais elegantes e burguesas, de cimalhas e cornijas, com fachadas artísticas, de frontões ogivais, varandas ou balcões de ferro, quais as sacadas onde postavam as moiçolas que Agassiz viu em elegantes tualetes. (GIRÃO, 1979: 106).

A partir de 1860, intensifica-se o cultivo do algodão em toda a província e em zonas não muito distantes da capital, abrindo oportunidades de um comércio direto com a Inglaterra estimulado, principalmente, pela retração dos Estados Unidos, um de seus principais fornecedores de algodão, que estava em guerra pela independência. O crescimento da exportação da produção algodoeira para o mercado externo contribuiu para tornar Fortaleza o principal entreposto comercial do Ceará.
A cidade teve demasiadas transformações a partir dos anos 1870. Entretanto, com a preocupação do poder público de esquadrinhar a malha urbana de Fortaleza, com o objetivo de sistematizar a expansão da cidade através do alinhamento de suas ruas e da abertura de novas avenidas, a Câmara decide solicitar a contribuição profissional de Adolfo Herbster, para elaborar e implementar um novo plano urbanístico. Esse momento seria o marco inicial da modernização urbana em Fortaleza.
Adolfo Herbster  já era contratado como engenheiro e diretor de obras da Província, desde 1855, cedido pelo governo de Pernambuco ao Ceará.
Na época da chegada de Herbster ao Ceará, Fortaleza enfrentava dois fatores negativos que impediam a expansão física da cidade; dificuldades de obtenção de material de construção, como tijolos e cal, a implantação da cidade em solo arenoso, além das péssimas condições das atividades portuárias e do abastecimento de água.



A Planta Exata da Capital do Ceará de 1859, proposta por Adolfo Herbster, deu origem ao sistema que orientou o desenvolvimento do bairro Aldeota, no lado leste da cidade. Essa planta por ser bastante detalhada, foi um retrato da cidade.
Herbster fez incluir legendas que esclarecem as denominações dos logradouros e a localização de todos os edifícios públicos, civis, religiosos e militares. Estão devidamente assinalados repartições públicas, escolas, igrejas, quartéis, a cadeia, o Cemitério de São Casemiro e o pequeno anexo dos ingleses, riachos, pontilhões, açudes, cacimbas (poços) das praças, coqueirais, “áreas”, “comoros” (dunas). Indica por meio de convenções gráficas os modos de ocupação e o relevo do solo, apontando os trechos de continuidade predial, as edificações isoladas, praças, largos e hortas, campos cultivados, baldios, zonas periféricas onde se espalhavam em vasto número as casas de palha (“choupanas”).



Fortaleza naquela época, não passava de um pequeno quadrilátero já arruado, justaposto à área ocupada pela vila no começo do século, ainda acomodada ao riacho Pajeú.
A pavimentação nem sempre acompanhou a expansão urbana, permanecendo até as primeiras décadas do século XX, as pontas de ruas, conhecidas por “areias” (Que representavam os bairros da periferia de Fortaleza), expressão de forte diminuição social.
Com a inauguração da estrada de ferro em 1873, o transporte do algodão e de pessoas para Fortaleza foi agilizado, consolidando a hegemonia econômica da cidade, encurtando as distâncias e estreitando a dependência do interior com a capital. O trem, um dos principais produtos do avanço tecnológico do século XIX, acentuou ainda mais a positividade dos efeitos sociais da noção de “progresso”.

A cidade nasceu voltada para o sertão, contradizendo sua natureza litorânea.
Nesse período a ocupação do litoral da cidade se limitava ao forte, uma vila de pescadores nos arredores da Prainha e um trapiche, cujo maior adensamento das construções estava um pouco distante da zona costeira, resultando num litoral quase desabitado.
Até mesmo aqueles imóveis localizados à beira-mar faziam referência à presença do homem do sertão e seus utensílios.
Nesse entendimento, afirma o escritor Eduardo Campos (Livro Rural e Urbana. Fortaleza, 1988) :

Figuram aí, com nomenclatura antiga e saborosa, ruas e travessas referendadas por suas legítimas origens populares, quais as travessas das Hortas, das Flores, do Cajueiro, do Pocinho, da Cacimba, da Bica, em que se evidencia mais uma vez a formalização de nossos antecedentes rurais, e, indisfarçável, o entrelaçamento das relações do “sertão” com a cidade, e não com o mar, não obstante a proximidade imediata deste, responsável, como é apregoado, pela salubridade da população.              

As zonas de praia na capital cearense caracterizavam-se nesse período, principalmente, por duas funções que contribuíram para sua desvalorização, que eram o escoamento dos esgotos e as atividades da incipiente zona portuária. Praticamente por todo o período de crescimento da cidade no século XIX, a zona costeira está quase sempre à margem nos planos urbanísticos de ordenamento do traçado urbano, como se viu até então. Esta zona passa então a ter sua ocupação irregular pelos migrantes foragidos das constantes secas do sertão cearense na segunda metade do século XIX.

Apesar do visível crescimento, Fortaleza ainda não possuía um porto adequado para exportar seus produtos, entre eles, o algodão.

No final do século XIX, o engenheiro inglês John Hawkshaw, elaborou um relatório que trazia a então nova estrutura portuária de Fortaleza com base no Decreto Nº 8.943 de 12 de maio de 1883. O projeto do novo conjunto portuário não foi aprovado, sendo construído apenas o prédio da Alfândega. A execução ficou a cargo da Sociedade Inglesa Ceará Harbour Corporation Ltda (Empresa Concessionária dos Serviços do Porto de Fortaleza) sob direção dos engenheiros Tobias Lauriano Figueira de Mello e Ricardo Lange, sendo construtora a Firma Punchard M. Taggart Muntz & Companhia representada por E. Jackson & P.O. Meara, sendo o engenheiro chefe George Barclay Bruce. O local escolhido era um terreno baldio e cheio de árvores.

Coube ao engenheiro Domingos Sérgio de Sabóia e Silva estudar um novo plano capaz de facilitar o movimento de pessoas e mercadorias no porto. O resultado foi apenas a construção de um trapiche em frente ao novo edifício da Alfândega. Era um viaduto com estrutura de ferro e piso de madeira, a chamada ponte metálica, cuja construção foi iniciada em 1902 e entregue somente em 1906.




Segundo Raimundo Girão, a ponte metálica era dotada de escada móvel para descida e subida de passageiros, não oferecendo por isso a melhor segurança. A carga e descarga de mercadorias era feita por meio de guindastes. Os navios ficavam ao longo, e o percurso até a ponte e vice-versa era efetuado por lanchas, alvarengas e botes.

A cidade crescia, experimentando novos regulamentos em favor da ordem urbanística. As normas enquadravam os habitantes, que muitas vezes não atentavam para as modificações da convivência social imposta pelo progresso da urbe. Assistir o crescimento do casario, a abertura e prolongamento de novas ruas, e cobrando melhor apresentação do indivíduo, sua adequação aos tempos de renovação ou aperfeiçoamento de hábitos. 
Hábitos e costumes marcadamente provincianos, em que se inseria o comportamento social naquela época, decorrentes da liberdade de viver no campo, os chamados “matutos”, gostavam de andar muito à vontade.
Fortaleza, como Capital, era referência, entre as cidades do Ceará, do “modelo hegemônico de bem-estar e estar bem no mundo”, unificado sob o capitalismo, que a Europa do século XIX impôs como modelo e parâmetro de civilização.

O primeiro estabelecimento de negócios estrangeiros foi fundado na cidade em 1811, a fim de manter intercâmbio direto com a Europa. O irlandês William Wara iniciou essa fase de influência britânica no desenvolvimento socioeconômico de Fortaleza. Lojas e armazéns além de ostentarem nomes, tabuletas e fachadas, gravados em língua inglesa, vendiam o melhor que a cidade usava, comia e vestia, tudo vindo das Ilhas Britânicas, segundo Raimundo Girão.

Um grande número de ingleses, franceses e portugueses tiveram atuação no comércio da Capital; mantinham lojas e empórios, habituados às exigências das grandes cidades europeias e, por essa razão, polidos, cavalheiros, num meio que apenas deixava os costumes sociais mais elementares. Exerciam, na sociedade, as melhores relações de ordem mundana, concorrendo para melhorar os costumes e a civilidade local.


As lojas, com suas vitrines, tinham um atraente acervo de artigos europeus constituídos de tecidos, sapatos, perfumes, chapéus, bijuterias, conservas, bebidas, maquinarias, entre outros. Além de vender objetos, roupas, quinquilharias de luxo, os desejos mundanos importados de Paris, as lojas ostentavam títulos em francês nas suas fachadas, como: Rendez-vous de Dames, Au Phare de La Bastille, Paris des Dames, Paris n’América, Bon Marché, Maison Moderne, Louvre (a mais luxuosa).
O mesmo ocorria com hotéis e restaurantes, como: Hotel de France (o melhor da cidade durante muitos anos) Restaurant Entaminet Europeu, Café Riche, Confeitaria Maison Art Nouveau, Notre Dame de Paris, além das Farmácias Francesa e Pasteur.


Nessa lógica, o culto do afrancesamento encontrou um terreno fértil na capital, entre os grupos citadinos ávidos por novidades importadas, se traduzindo de várias formas e sentidos.
Em 1908, a Casa Boris Frères & Cia. publicou o Álbum de Vistas do Ceará, 1908, editado e impresso na cidade de Nice, na França, por Berger et Humbolt Helmlinger, com fotografias de 1902 a 1907. Confeccionado em papel nobre, trazia 160 imagens de tudo que representava o aformoseamento e o progresso de Fortaleza, e também de algumas regiões do Ceará que estavam em processo de desenvolvimento, no início do século XX.
Significava, formalmente, uma homenagem à Fortaleza, em reconhecimento ao seu desenvolvimento e a sua formosura. Esse álbum de fotografias com imagens da Capital e de regiões do interior do Ceará, circulou pela cidade, para o entusiasmo dos agentes locais da modernização urbana.

No início do século XX, a cidade continuou a passar por transformações sócio-urbanas que intensificaram sua condição de principal cidade do Estado, posição hegemônica alcançada no final do século XIX. As autoridades, conforme o ideário de “progresso e civilização” da belle époque europeia, voltavam a administração municipal para o “aformoseamento e higienização” de ruas e praças, bem como o controle das crescentes e miseráveis camadas populares.

Fonte: Ofipro

Na atuação producente do administrador municipal Guilherme Rocha, que desde 1892 exercia o cargo de Intendente, foi inaugurado em 1897 o Mercado da Carne, uma das vaidades da Capital. Importado da França, para a venda de carnes e peixes, melhorando o sistema primitivista com que se efetuava aquele comércio. Em 1902, inaugurou-se na Praça do Ferreira, o belo jardim 7 de Setembro e, no ano seguinte, a Praça Marquês do Herval. Além desses logradouros, a Praça da Sé também sofreu uma intervenção estética, recebendo ornamentação semelhante ao Passeio Público.

Até então, a cidade contara apenas com um único logradouro urbanizado, que era o Passeio Público. Em ambas as praças, a par dos canteiros, cheios de flores, introduz cópias de originais de estatuária grega pertencentes ao acervo do Louvre. No meio dos jardins da Praça Marquês do Herval, Guilherme Rocha ergue também um pavilhão destinado à prática de patinação, às demonstrações de ginástica infantil e aos concertos do Batalhão de Segurança.


Também a construção de um teatro oficial em Fortaleza figurava como intenso desejo desde o início do século XIX. Entretanto, só foi concretizado em 1910, com a inauguração do Teatro José de Alencar, uma das últimas obras do governo oligárquico de Nogueira Accioly. Importado da Europa, o teatro com estrutura de ferro pré-fabricada, fornecida pela empresa escocesa Walter MacFarlane & Co., de Glasgow, chegou em Fortaleza em 1908, a bordo de um navio inglês, com negociação feita pela Casa Boris Frères. A arquitetura do ferro já era conhecida e admirada, significando para os adeptos locais um símbolo da afirmação civilizatória.

Catálogo MacFarlane’s Volume I

Mesmo antes da construção do Teatro José de Alencar, esta preferência se explicava, não só pela praticidade, mas sim pelo que representava: as maiores conquistas tecnológicas da construção civil, à época, como também por seu aspecto simbólico. Lembrava as grandes cidades europeias, com as quais a próspera classe de comerciantes importadores-exportadores cearenses mantinham contatos cada vez mais próximos, aspirando sonhos de civilização e riqueza.

Catálogo MacFarlane’s Volume I


Foto de Maria Claudia Vidal Lima Silva - 2013

Para atender a esses desejos de modernidade, nada mais natural do que transferir para o Brasil a arquitetura feita na Europa, através do emprego das estruturas metálicas importadas e pré-fabricadas, constituindo assim um prolongamento da europeização da vida brasileira, já que se tratava de um produto original, elaborado por matrizes culturais europeias, símbolos concretos de demonstração de poder de uma elite urbana em ascensão. 

1- Catálogo MacFarlane’s Volume I
2- Foto de Maria Claudia Vidal Lima Silva - 2013

Embora as edificações pré-fabricadas em ferro na Europa não possam ser consideradas competências de uma cultura brasileira, porém podem ser compreendidas por meio de uma dependência de uma cultura importada que expressava um símbolo de civilização e progresso. A inserção da arquitetura com seus exteriores significativos e os seus interiores direcionados à exibição dos novos hábitos sociais, objetivavam também integrar a cidade ao modelo civilizador ditado pelas nações europeias ditas mais desenvolvidas.


Leia também a Parte I



Crédito: Uma Revolução no tempo das trocas: Arquitetura do ferro na cidade de Fortaleza (1860-1910) - Maria Claudia Vidal Lima Silva

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