Que
Fortaleza modificou o seu espaço urbano a partir da seca de 1932, é fato! Agora, como esse processo de modernização e como toda essa modernidade era utilizada através dos discursos das elites para legitimar a vertiginosa urbanização que ocorria na década de 1930? E como as camadas mais pobres viviam essa modernidade?
No relatório do
Interventor federal Roberto Carneiro de Mendonça, vemos como o discurso da modernidade estava presente, no que se refere à justificativa da implantação de um relógio na
Praça do Ferreira e em relação à própria remodelação da praça:
Sobre a praça no Relatório do Interventor
A Praça do Ferreira era considerada o
coração da cidade, segundo o interventor, a praça era o principal
“órgão” da cidade, uma vez que ela é o
“centro de convergência das atividades”, atividades essas que poderiam ser culturais, mas principalmente comerciais. Por isso o interventor justifica a implantação de um
“relógio oficial”, pois o ritmo de trabalho da cidade estava mudando, e era importante que a população tivesse um controle mais racional de tempo, uma das características da modernidade.
O relógio se tornava fundamental para uma cidade que estava passando por um processo de modernização desde o final do século XIX, mas que tinha uma população hegemonicamente rural e que não era adaptada à disciplina de trabalho capitalista, racional e moderna, que ocorria na cidade, já que o caráter disciplinador das relações de trabalho, que a implantação do relógio objetivava, se tornava ainda mais necessário a partir da seca de 1932, pois o fluxo migratório foi muito intenso, e o governo demonstrava um maior nível de organização racional, no que tange ao controle social dos retirantes. Desta maneira, essa massa de
“flagelados” que ocupava a cidade deveria se adaptar a uma disciplina de trabalho moderna, sincronizada e racional, onde não haja
“desperdício” de tempo. Aliás, não só os retirantes deveriam se acostumar com esse tipo de vida, como os demais habitantes da cidade.
Todavia, a
coluna da hora não pode ser entendida apenas como uma obra para embelezar a cidade. Além da preocupação estética, havia o interesse funcional que o relógio tinha para a Fortaleza
“moderna”. A estratégia do governo era
“otimizar” o tempo para a produtividade. Isso não significa dizer que assim que o relógio foi erguido, as relações de trabalho mudaram radicalmente. Pois há conflitos entre a temporalidade do relógio e a temporalidade da população, que no caso de Fortaleza, era substancialmente rural.
Fortaleza estava passando por um processo de modernização, que se refletia em vários aspectos: culturais, econômicos, políticos e sociais. Os retirantes eram utilizados para construir e remodelar o espaço urbano da cidade. Em contra partida, eram obrigados a morar em locais que não eram planejados de maneira racional, mas a partir das necessidades imediatas de ter uma moradia. Assim sendo, a modernização como palavra de ordem nos discursos políticos do governo, passava a quilômetros da periferia e dos bairros pobre da cidade.
A cidade era ainda bem pequena, como se percebe através da planta levantada em 1932, época em que conseguia recobrir bem pouco a mais do que as vias planejadas por Hebster em 1875! A partir do início do decênio de 30, desenvolve-se a cidade toda, zoneando-se de acordo com a estrutura preexistente. Os bairros mais modestos vão se espalhando ao longo das ferrovias, junto das quais, principalmente na zona oeste, surgem as indústrias. As pessoas mais abastadas começam a preferir a Aldeota”. (CASTRO, 1977, p 35 e 36).
Planta de 1932
Após a seca de 1932, a cidade aumenta consideravelmente o seu espaço urbano. Mas esse espaço é modificado a partir dos grupos que o habitam, pois bairros mais modestos vão se formando próximos às linhas de trem que estavam surgindo. Isto ocorreu provavelmente devido às estratégias do governo de controlar as levas de retirantes que chegavam à capital pelos trens e lá já se
“instalavam” em
campos de concentração, ou fora deles, construindo as embrionárias favelas. Também se instalavam próximos às indústrias, pois seriam eles os operários, sem falar que ficariam distantes dos grupos mais abastados que não gostavam de ter
“flagelados” como vizinhos.
Construção da Coluna da Hora na Praça do Ferreira. Acervo Ricardo Figueiroa
Neste sentido, as formações dos bairros de Fortaleza estão intrinsecamente ligadas às diferenças sociais dos grupos que o habitavam. Assim, a modernização de Fortaleza é excludente, pois só uma parte da população usufrui da sua urbanização e também é contraditória, pois a maioria da população da cidade é de origem rural, ou seja,
“não-moderna”.
É interessante percebermos o choque que havia entre os retirantes e a elite fortalezense que
“lutava” para transformar Fortaleza numa cidade moderna com uma população hegemonicamente rural:
Mesmo na época em que se fixam as primeiras grandes levas de imigrantes rurais, trazidas pela seca de 1932, período de grandes transformações sociais e econômicas, quando grupos recém-chegados, sem tradição de vida urbana, se tornam demograficamente majoritários, mesmo nesses dias, jamais se apegaram as características do viver fortalezense, ora traduzidas pela complacência diante da novidade, ora marcadas pela ironia demolidora e amarga aos valores mais consagrados, herança do elevado nível de vida intelectual de fins do século XIX, perfeitamente configurado pela posição antiprovinciana daquele grupo sério da Padaria Espiritual. (IDEM, 1977, p. 44).
Praça na década de 30 - Arquivo Nirez
Através da fala de
José Liberal de Castro, é possível observar o choque cultural entre a elite intelectual de Fortaleza e os retirantes. Esses considerados como provincianos, sem tradição urbana, espantados diante da
“cidade moderna”, que tinha uma população mais intelectualizada, adaptadas aos
“ideais de modernidade” desde o final do século XIX.
Torna-se plausível questionar se Fortaleza era uma cidade moderna na década de 1930, principalmente após a seca de 1932, uma vez que ao mesmo tempo em que ela passava por reformas urbanas, que modernizavam seu espaço físico, era habitada por uma população majoritariamente rural, que tinha costumes, hábitos, considerados pelos grupos dominantes como não modernos.
No discurso do cronista
Mozart Soriano Aderaldo¹ numa crônica do livro
História Abreviada de Fortaleza, referente a Fortaleza moderna, percebemos sua visão acerca dos retirantes, da modernidade e as contradições que a permeavam:
Se assim procediam as chamadas "elites‟, o que não dizer da "massa‟, dos habitantes de nossos subúrbios? Levas de emigrantes em consequência das secas, constroem "favelas‟ em seu derredor e trazem para a cidade problemas sociais, os mais variados, da prostituição de infelizes mocinhas pobres ao "biscatismo‟ consequente da mão-de-obra não qualificada. Do costume de cuspir no pé das paredes ao alimentar-se nas ruas e jogar nas calçadas as cascas se bananas, manga e laranja ali mesmo consumidas. Dos pés descalços à roupa em trapos e mal lavada. (ADERALDO, 1974, p 60).
Apesar de a crônica ter sido escrita posteriormente à década de 1930, pois o livro não traz a data específica da crônica, é muito importante para analisarmos como o autor representava os retirantes. Segundo ele, são os emigrantes que traziam os problemas sociais para a cidade, como a prostituição, o biscatismo, mão de obra desqualificada, sem falar que seus costumes eram
“péssimos”. Jogar cascas de bananas nas calçadas, andar de pés descalços, esfarrapados, alimentarem-se nas ruas, etc. A partir de uma representação negativa sobre os retirantes, podemos observar como se davam as contradições entre os grupos sociais em Fortaleza, onde os costumes dos retirantes se mostravam diametralmente opostos aos das elites. A modernidade da Capital mostrava-se deveras paradoxal.
Apesar dos costumes sociais que Fortaleza presenciava no inicio da década de 1930, como a seca de 1932 e a invasão de uma população de
“flagelados” em seu território, havia em contrapartida a introdução de novas tecnologias que animavam as classes abastadas, que associava essas tecnologias ao desenvolvimento do progresso na capital.
“Ainda em 1933, a título de experiência, em trecho da cidade se inaugurou a pública iluminação elétrica, denunciando-se, em consequência, o contrato com a Ceará Gás, cuja duração se alonga por muitos anos, entravando o nosso progresso.”(ADERALDO, 1974, p. 55).
Centro da cidade. Vemos o quarteirão entre a rua Guilherme Rocha e a Liberato Barroso na década de 30.
A eletricidade se torna sinônimo de
“novo”, urbanização, modernização, em detrimento do velho, antigo e
“insuportável” gás carbônico. Outra inovação para a cidade na época foi a primeira transmissão a rádio realizada na inauguração da
Coluna da Hora, representando dois marcos simbólicos que denotavam a cidade de
“progresso e modernização”.
No dia da inauguração da coluna, 31 de dezembro de 1933, foi realizado nos estúdios da casa Dummar, futura PRE-9, então nos altos da atual sede da CIMAIPINTO, a primeira transmissão radiofônica no Ceará, para aparelhos receptores fixados no referido monumento do centro da Praça, a não mais de 200 metros de distância... Mas que progresso para época! (IDEM, 1974, p 54 e 55).
O ano seguinte, em 1934, vai ser inaugurado à primeira radio do
Estado do Ceará. É a
Ceará Radio Clube (PRE-9), que significava então para a ascendente burguesia urbana de Fortaleza, que a capital estava se modernizando e em constante
“progresso”.
A praça na década de 30 - Arquivo Nirez
As classes abastadas são as que mais se beneficiam da modernidade e urbanização de Fortaleza, pois as principais obras de urbanização, saneamento, aterramento, são realizadas no centro da cidade, e a grande massa de retirantes, não vai ter acesso, nem, vai usufruir da urbanização da cidade. Porém, essa população de retirantes não era passiva nesse processo de transformação da cidade. Eles se organizavam, questionavam o governo e faziam saques de mercadorias, forçando assim a burguesia e o governo a cederem as suas pressões. Nesse sentido, os retirantes também são protagonistas da cidade, chegavam a incomodar a
“paz urbana” das elites e ameaçar a quebra da ordem. Consequentemente, sendo eles o
“flagelo” da elite, que era obrigada a conviver com essa população que lotava a cidade a partir da seca de 1932. Miséria e luxo coexistiam não como um antagonismo indissolúvel, mais como fruto de uma modernidade paradoxal e excludente.
Contudo, nos períodos de secas, como a de 1932, intensificavam-se os conflitos e exacerbavam-se as contradições na capital. Uma população de retirantes sem recursos materiais, devido a uma série de fatores como concentração de latifúndio no campo, má distribuição de renda, conflito de interesses entre classes sociais, política excludente do Estado, dentre outros, contribuía para aumentar a violência na cidade.
Praça na década de 30 - Arquivo Nirez
O governo e as classes abastadas da capital queriam expurgar o centro e os seus bairros de moradia, o que significava afastar do seu convívio as camadas mais pobres. Porém essa não era uma tarefa fácil, pois as camadas mais pobres representavam a grande maioria da população, que tinha migrado para a capital devido à seca de 1932, e que buscavam em Fortaleza uma melhoria na qualidade de vida, e não um recrudescimento da miséria.
É importante compreender a modernidade como sendo um complemento do desenvolvimento capitalista na cidade, uma vez que as reformas urbanas que ocorreram em Fortaleza no inicio da década de 1930, mais especificamente nos anos 1933 e 1934, estavam relacionadas também ao contexto de uma nova classe social que emergia no País, a burguesia industrial urbana.
¹Mozart Soriano Aderaldo, apesar de ter nascido no
Maranhão era descendente de uma tradicional família cearense de
Mombaça. Ocupou vários cargos no governo chegando a ser prefeito de
Senador Pompeu, diretor da
Imprensa Oficial do Estado, secretário Estadual de administração do governo
Plácido de Aderaldo Castelo. Foi também professor universitário e participou efetivamente do grupo
“Clã”. Fizemos essa lacônica apresentação para que possamos entender melhor o seu lugar social da fala. Portanto, entender melhor o seu discurso.
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
As melhorias urbanas durante a seca de 1932 - Parte II
Leia também:
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza
Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de
Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fontes: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça 22/09/31 à 05/09/34. Arquivo Público do estado do Ceará/ Livro Fatores de Localização e de Expansão da cidade de Fortaleza, do arquiteto José Liberal de Castro/ http://memoria.bn.br/