Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



sábado, 28 de julho de 2012

Cine Nazaré - Uma demonstração de amor pelo cinema!


Foto

1945 - Abre-se, no Otávio Bonfim, em prédio na Rua Padre Graça nº 65, o Cine Nazaré, pertencente ao marchante do Mercado São Sebastião, José Marcelino, que tinha paixão por cinema. Depois foi adquirido pela empresa Luís Severiano Ribeiro que o fechou em 1954.
Em 18 de maio de 1969, o antigo operador do Cine Familiar, Raimundo Carneiro de Araújo (Vavá), adquire e reabre o Cine Nazaré, na Rua Padre Graça nº 65, com o filme "Desafio de Gigantes".


 
Foto George Hudson

Matéria de 05/07/2006 do Diário do Nordeste:

Em frente à Lagoa da Onça, a um quarteirão do Cercado do Zé Padre, no Otávio Bonfim, o número 65 da Rua Padre Graça é cheio de história. É a Oficina São Pedro, mas ali já funcionou o Cine Nazaré, que faz parte da história do bairro e de Fortaleza. Apesar de a lagoa ter sido aterrada, de o cinema não funcionar mais e de o lugar hoje ter carros no lugar das cadeiras, o que aconteceu no local e nos seus arredores reaparece como um filme na lembrança dos moradores mais antigos. Talvez a sala seja a única que, quando chovia, ninguém reclamava de assistir ao filme com os pés na água. O bairro, considerado calmo por muitos dos moradores, ainda tem casas antigas, principalmente perto da Igreja de Nossa Senhora das Dores, construída em 1951, pela Ordem Franciscana Menor (OFM). Ali próximo ficava também o Cercado do Zé Padre, faixa de terra em duas ruas, que abrigava diversas famílias. Nas imediações, onde hoje se encontram casas, comércios ou onde foram abertas ruas, ficavam os pontos de aluguel de carros e bicicletas. É que, na época, o transporte mais comum era o bonde. Já o trem, que chegou ali pela extinta Rede de Viação Cearense (RVC), não só deu o nome de Otávio Bonfim à estação como o sobrepôs sobre o nome oficial do bairro, Farias Brito. Ali há relíquias. Não só materiais, mas outras subjetivas que ganham vida nas lembranças do radiotécnico Vavá, que até os 18 anos foi Raimundo Getúlio Vargas Carneiro de Araújo e hoje, aos 75, não leva mais o nome do ex-presidente, só o apelido.



Sala de exibição do Cine Nazaré - Arquivo do blog Percursos Urbanos

No final dos anos 40 e início dos 50, os cinemas passaram a ser uma das principais diversões na Capital. Lazer dos mais modernos e disputados. Havia diversas salas em Fortaleza, espalhadas em bairros periféricos ao Centro. Muitos dos espaços eram do Grupo Severiano Ribeiro que, com a inauguração do São Luiz, desfez-se das parcerias para priorizar, a partir dos anos 60, a mais luxuosa sala da Capital.

Segundo Seu Vavá, como é conhecido o radiotécnico, em 1945, quando foi erguido o prédio do Cine Nazaré, o Otávio Bonfim era completamente diferente. A começar pela Lagoa da Onça, marca do bairro, e que hoje não existe mais - a não ser no imaginário dos moradores e nas marcas de algumas paredes que insistem em brejar no lugar do aterro. O primeiro arrendatário do Nazaré foi o marchante José Marcelino, que cortava carne no Mercado São Sebastião.

Na época, já existia o Cine-Teatro Familiar no bairro, feito pelos frades ao lado da igreja. O inusitado do espaço é que os espectadores assistiam ao filme praticamente ao ar livre, pois não havia paredes, só uma coberta.


O Nazaré, por sua vez, começou a funcionar em 1945, final da guerra. “Anoiteceu, o pessoal ia para o cinema, não para bar, restaurante. Muitos casamentos começaram e terminaram ali”, conta Seu Vavá, acrescentando que as mulheres levavam até crianças de colo. A não ser que o filme fosse censurado. No caso, aqueles de terror, com monstros ou os mais insinuantes, com mulheres de maiô ou cena de beijo.


Em sua programação, além de filmes comerciais, películas dos anos 40, 50... 
 Arquivo do blog Percursos Urbanos 

Sobre a censura, o radiotécnico, que também foi censor, lembra que, ao ser exibido um filme científico, com cenas de parto e informações sobre doenças sexualmente transmissíveis, foi preciso fazer duas sessões: uma para mulheres, às 15 horas, e outra para homens, às 22. “Foi algo fora do comum, por volta de 56”, diz.

O Cine Nazaré foi tão marcante naquela época que, na exibição de “O Ladrão de Bagdá”, foi necessário abrir uma segunda sessão. Tantas pessoas esperavam do lado de fora e na lateral do cinema, que o muro caiu. “O pessoal começou a se amontoar, a gritar ‘o gato a miar’, a empurrar. Quando o muro caiu, quem estava vendo o filme nem ligou, continuou assistindo”, recorda, divertindo-se.

No cinema cabiam 300 pessoas. Havia dois tipos de ingresso: 200 nas cadeiras, de madeira no assento e no encosto, e 100 ‘na geral’, bem na frente da tela, com banco sem encosto ao invés de cadeira. Na ‘geral’, onde o ingresso era menos de metade das cadeiras, 400 réis, quando chovia era um sufoco.

A água emanava do chão, já que todo o terreno ao redor da Lagoa da Onça ficava encharcado. Para solucionar o problema, oito pisos foram sobrepostos, para aumentar o nível do chão, cuja base foi construída abaixo do nível da lagoa. “Ou a pessoal ficava de cócoras em cima do banco ou tirava o sapato, chinelo ou tamanco e ficava com as pernas na água, vendo o filme”, explica. Do lado de fora, vendedores de bolo, tapioca e café esperavam os cinéfilos para o lanche. Nada de pipoca, ainda.

Seu Vavá ressalta que sempre foi “louco for cinema”. Em 1938, passou em frente ao Teatro São José e viu, deitado no chão e brechando pela fresta da porta, o filme projetado no palco. No Cine Familiar, o dos frades, Seu Vavá começou carregando rolo de filme, com 18 anos.

Por volta de 1960, com o fim dos cinemas longe do Centro (fecharam o Ventura na atual Aldeota, o Dioguinho na praça do Colégio Militar e outros), o Nazaré também fechou. Em 1968 foi a vez do Familiar.

Dois anos mais tarde e dedicando profissionalmente somente ao cinema, Seu Vavá resolveu arrendar o Nazaré e o reabriu. Passou um ano projetando filmes repassados pelo Grupo Severiano Ribeiro, até que as despesas ficaram altas demais. Na década de 60, também arrendou salas em Sobral, Crateús, Russas e Aracati.

Esperança e Criatividade - Matéria de 2008 (Diário do Nordeste)



Arquivo de Juracy Mendonça


Já que não podia manter funcionando sua sala, seu Vavá, movido pelo saudosismo, comprou, nos anos 70, o prédio onde funcionou seu cinema, que é mantido sem alterações. É o mesmo espaço onde, agora, mais de 30 anos depois, ele instalou a nova versão do Cine Nazaré (a terceira), que ganhou corpo com o aproveitamento de equipamentos de vários outros cinemas. As 75 poltronas do lugar pertenceram ao antigo Cine Fortaleza. Os carpetes são os mesmos que cobriam as paredes e pisos das salas do North Shopping -antes da reforma. E o projetor, com mais de 60 anos de uso, veio de Belém. “É um dos melhores projetores que existem”, garante seu Vavá.

Mas nem tudo foi só na base da criatividade. O teto, em PVC, é novo. Assim como o aparelho de ar-condicionado e as instalações do banheiro. “A gente só precisa ficar de olho na entrada do banheiro das mulheres, pois não existe porta para homem sem-vergonha”, conclui. Os filmes são exibidos em três dias da semana, com duas sessões aos domingos e às quintas-feiras (16 e 19 horas) e uma sessão aos sábados (19 horas). O preço do ingresso é simbólico: dois reais a entrada inteira e um real para estudantes e idosos. Por enquanto, ainda não tem pipoca. Mas seu Vavá já pensa em terceirizar o serviço de lanches. Assim, ele garante que “o pipoqueiro que pagar o ingresso vai ter o direito de vender seu produto na entrada”.

A primeira sessão do novo Cine Nazaré foi com o filme “O Pequeno Polegar”. Trinta e cinco pessoas pagaram ingresso. Seu Vavá sabe que não será fácil manter o espaço com o que for arrecadado na bilheteria. E mais difícil ainda obter algum lucro. “Pelo menos, o que foi investido já está pago. Mas sei que, nos três primeiros meses, não vou conseguir cobrir os gastos com energia, aluguel dos filmes - ele traz de São Paulo - e com o pagamento de uma moça que me ajuda”, consola-se. “Se o movimento for bom, porém, as coisas vão ficar mais fáceis”, completa, esperançoso.

Continua...

Vale resaltar que o querido 'Seu Vavá' e sua paixão já viraram filme: "Seu Vavá e sua paixão pela sétima arte”.  O Filme é um curta sobre Raimundo Carneiro de Araújo, que dedica sua vida ao Cine Nazaré. O roteiro é de Iasmin Matos.



Imagem do filme de Iasmin Matos - Arquivo do Site Travessias

Fontes: Diário do Nordeste e Cronologia Ilustrada de Fortaleza de Miguel Ângelo de Azevedo

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Otávio Bonfim - Os Frades Alemães



No último quartel do século XIX, a Província Franciscana de Santo Antônio, sediada no Nordeste, originária de Portugal, contava com um reduzido número de frades menores, para fazer frente à avalanche de obrigações religiosas e comunitárias. Em razão desse fato, fez um apelo às províncias franciscanas da Europa, em tom de socorro, encontrando ressonância na Província Franciscana da Saxônia, na Alemanha, que aquiesceu em mandar frades ao Brasil, para reforçar os recursos locais.


(Foto ao lado do benfeitor Frei Teodoro Haerke, franciscano zeloso)



A Província de Santo Antônio, a 12 de dezembro de 1889, foi confiada à Província da Santa Cruz da Saxônia. Na data de 27 de dezembro de 1892, chegaram da Europa os novos confrades que se instalaram no Convento de São Francisco de Salvador-BA. A incorporação jurídica teve como base a Congregação Capitular dos antigos e novos frades realizada no dia 2 de março de 1893. Assim, teve início, notadamene, a reforma e a renovação da Província de Santo Antônio, no Nordeste brasileiro.


Em primeiro de março de 1929, foi lançada a pedra fundamental da Igreja de Nossa Senhora das Dores, que sucedia à antiga capela de São Sebastião, levantada na praça a que deu nome, depois soerguida na antiga Estrada do Gado, atualmente, rua Dr. Justiniano de Serpa. Frei Odilon Gethaus e Frei Lucas Vonnegut, ambos alemães, foram os dois grandes construtores desse templo e do convento franciscano anexo. O primeiro, por motivos de doença, não chegou a ver as obras concluídas, justo por ter falecido em 22 de janeiro de 1930, quando chegava aos 59 anos de idade.


Foto Arquivo Nirez

Para dar continuidade aos trabalhos, Frei Lucas Vonnegut, modelo perfeito de discípulo do "poverello de Assis", chegou a Fortaleza, aos 25 de janeiro de 1930, vindo de Canindé, onde era superior interino do convento. Em 13 de junho de 1930, dia de Sto. Antônio, deu-se a festa da bênção da Igreja de Nossa Senhora das Dores. Em 18 de novembro de 1932, coube a D. Manuel da Silva Gomes abençoar os sinos, vindos da Alemanha, bem assim o altar-mor do templo recém-construído. Após essa solenidade, houve missa cantada, tendo por oficiante Frei Lucas Vonnegut.

Muitos frades alemães passaram pelo convento do Otávio Bonfim, tanto assim que, durante a II Guerra Mundial, quando o Brasil declarou guerra à Alemanha, o prédio foi sitiado, tendo o claustro conventual sido ocupado durante um dia, para uma longa operação das forças de segurança interna, que realizaram varredura infrutífera, em busca de rádio-transmissores ou quaisquer elementos, que se prestassem à espionagem; o resultado, como não podia deixar de ser, foi negativo, porque embora germânicos, os religiosos não tomavam partido no conflito belicoso.


Foto da Avenida Bezerra de Menezes - Arquivo Nirez

Para o laicato, as investidas do povo brasileiro, com os brios feridos pelo torpedeamento de navios mercantes do Brasil, foram de pura e absoluta retaliação. De fato, propriedades e bens pertencentes a cidadãos do Eixo (alemães, italianos e japoneses) foram violados e alvo de pilhagem dos nossos compatriotas, que observavam aqueles como inimigos da Pátria. Aqui, em Fortaleza, o Jardim Japonês, de Seu Guilherme Fujita, foi arrasado ou destroçado pela turba; as Casas Veneza, da família de Francesco, foram saqueadas e depredadas; as lojas de tecidos, da família Lundgren, foram pilhadas, ainda que pertencessem a alemães apátridas, perseguidos na Alemanha nazista, por serem judeus.

Muitos foram os frades tedescos que atuaram na Igreja, e, depois, na Paróquia de Nossa Senhora das Dores (criada pelo Decreto nº 02, de 20/09/1963, da Arquidiocese de Fortaleza), como: Frei Cecílio Sommer, Frei Teodoro Haerke, Frei Hildebrando Kruthaup, Frei Francisco Solano Szczepanek, Frei Venceslau Wallerus, Frei Hermano Wiggenhorn, Frei Fernando Schnitker, Frei Gregório Reckers, Frei Rainério Kroger, Francisco José Goedde, sendo até difícil listá-los, assim, completamente.

Mais complicado é destacar os feitos e as obras de cada um deles, não obstante terem todos, em comum, o espírito empreendedor, a tenacidade e a disciplina germânicas, logicamente que acostados às condições externas, servindo de êmulo à concretização dos trabalhos projetados. A título de representação de diferentes momentos inscritos na história do convento franciscano, à guisa de exemplo, o perfil de quatro desses frades, que depois de um profícuo trabalho, retornaram à Casa do Pai: Frei Teodoro -um franciscano zeloso e desportista nato, Frei Hildebrando - empreendedor audacioso e humanista; Frei Lauro - um apóstolo da juventude, e Frei Humberto - um evangelizador social, exibe a marca indelével das ações realizadas em prol da comunidade do Otávio Bonfim, bem como de seus arrebaldes.


Créditos: Marcelo Gurgel Carlos da Silva (Diário do Nordeste) e Arquivo Nirez

quinta-feira, 26 de julho de 2012

O Otávio Bonfim dos velhos tempos...


Avenida Bezerra de Menezes - Arquivo Nirez

Na escala do tempo, quarenta e tantos anos já fazem uma boa diferença. Isso se verifica com as pessoas, principalmente, e também com os locais onde as coisas, outrora, acontecem.

Na década de sessenta, por exemplo, o bairro Otávio Bonfim, oficialmente Farias Brito, na zona oeste da capital, tinha um charme bem particular. Não era de classe alta. Também não estava na linha da pobreza.

O que mais o diferenciava de outros, existentes em Fortaleza, naqueles idos, era o clima de família que reinava ali, campeando entre as arvores centenárias que se erguiam na Praça com o nome oficial de Libertadores.

Em cada canto, era comum ver-se mulheres com uma banquinha de café, fazendo fogo ali mesmo e lavando os utensílios em alguidar de barro, deixando a água escorrer pelas coxias.

De vez em quando tinha uma espiga de milho cozida, uma tapioca de goma fresca, sem respeito às normas de higiene, é claro, mas tão gostosas que até se esquecia de alguns prováveis transtornos gastrointestinais.


Avenida Bezerra de Menezes - Arquivo Nirez

Os moradores de bairro tinham uma intimidade bem grande com aquela pracinha. Aposentados ficavam ali papeando, casais de namorados aproveitavam o bucolismo do local, para as costumeiras juras de amor, donas de casa levavam os filhos pequenos para andar de velocípede ou mesmo bicicleta, transeuntes iam e vinham despreocupados, ou com alguma preocupação, que isso já era frequente antes mesmo da virada da economia.

Não havia lugar mais apropriado que a pracinha, para ler os jornais do dia, inclusive a Tribuna do Ceará, de saudosa memória. Muita gente circulava por ali, justo porque lá era ponto de desembarque dos ônibus que vinham do interior, com entrada pelo Antônio Bezerra.

A praça e a Igreja de Nossa Senhora das Dores pareciam geminadas, sequer dando oportunidade de se pensar em uma, sem estar pensando na outra. Até se tinha a impressão de que a primeira era uma extensão da segunda, e vice-versa.


Belíssima vista da Igreja de Nossa Senhora das Dores tendo ao lado o Posto Carneiro & Gentil - Arquivo Nirez

Era só atravessar o passeio de pedra tosca, entre as ruas Justiniano de Serpa e Dom Jerônimo, e lá se estava em frente ao Santuário de Santo Antônio, parede e meia com a igreja.

Nos dias de terça-feira, acontecia a distribuição do pão dos pobres. Nem se falava do Lula, mas o bairro, ou melhor, os frades franciscanos do Otávio Bonfim, já engatavam movimentos sociais de combate à fome, com a ajuda dos paroquianos.

Uma grata recordação que vem daqueles tempos está ligada ao Cine Familiar, que ficava na lateral esquerda da igreja, fazendo quina com a Rua Dom Jerônimo. O Vavá era o grande artífice da 7 ª arte.


Posto Carneiro & Gentil - Situado na Avenida Bezerra de Menezes. O catavento da fotografia ficava no quintal da casa em que morava a família Gurgel Carlos, na rua Justiniano de Serpa, nº 53 - Arquivo Nirez

Era ele que cuidava da exibição das películas, já que sabia só tudo sobre como manejar os rolos na velha geringonça, fazendo hoje com que nos lembremos do Cinema Paradiso.

Tudo isso se foi na enxurrada do tempo, mas o que até agora não sai das retinas cansadas, nem dos ouvidos adormecidos, é a imagem do trem, meio sujo, vindo dos lados do Acarape, rodando e rangendo sobre os trilhos presos aos dormentes, que iam dar na Estação João Felipe. Poderia ser o inverso, se o destino mudasse para Maracanaú.

Nas manhãs de sábado, não tinha passeio melhor do que pegar os filhos menores, subir no trem, e, de joelhos, nas poltronas rasgadas, acompanhar, das janelinhas abertas, o desfile de casas, árvores, pessoas que, indiferentemente à observação, postavam-se à beira do caminho.

Arquivo Nirez

Não se sabia, àquelas alturas, o que era uma bala perdida. No entanto, vez por outra, um garoto mais afoito pegava sua baladeira e conseguia estraçalhar a vidraça ou alcançar a cabeça de um passageiro menos avisado. Quem morava nas imediações da linha férrea, junto à parada do trem, no Otávio Bonfim, costumava despertar com o som estrépito da máquina, anunciando sua chegada à estação.

Muitos dos moradores da área residiam em casas construídas pela RVC, no último quarteirão da Rua Domingos Olimpio e já na Av. José Bastos, indo para a Av. Bezerra de Menezes.

Na verdade, o ícone de maior destaque, naquele quadrilátero urbano, era a Igreja de Nossa Senhora das Dores, apinhada de fiéis, nas missas dominicais, e que, em tempo de festa, "mandava ver" com grandes atrações, incluindo, barracas, quermesses, lembrando antigos costumes das cidadezinhas do Interior.

Av. Bezerra de Menezes em 1982 

Aquele pedaço de Fortaleza foi sempre um reduto da Família Gurgel. Se não era parente, era amigo ou conhecido. Na Rua Justiniano de Serpa, morava D. Dulce Gurgel Valente, mãe do Fernando, dono da Mecesa, do Flávio, funcionário do Dnocs, da Adélia e da Fernanda.

Do outro lado da Bezerra de Menezes, já depois da linha do trem, ficava a Siqueira Gurgel. Era lá onde se fabricava o Sabonete Sigel, o óleo Pajeú, a gordura de coco Cariri e o famoso sabão Pavão.

Arquivo Nirez

Havia, na época, um jingle muito popular: "uma mão lava a outra com perfeição, e as duas lavam roupa com sabão pavão". O óleo de algodão Pajeú, produzido na Siqueira Gurgel, ficou na história, isso porque a lata trazia estampada a figura de uma negrinha de tranças, bem sapeca em seus modos. Os tempos mudaram, a Siqueira Gurgel foi vendida e a área pertence hoje a uma rede de Hipermercado.


Ninguém lembra mais que na confluência da José Bastos com Bezerra de Menezes havia a Farmácia da D. Rosélia, mãe dos Professores Benito e Lúcio Melo, servindo a toda a população do bairro, necessitada de remédios, curativos e injeções.

Otávio Bonfim - Acervo Marcelo Gurgel

A pracinha, mesmo depois de passar por sucessivas reformas, que lhe presentearam com canteiros, mudas de plantas, calçamento novo, perdeu um bocado do seu encanto. Ficou menos bucólica e mais suja.

A Sumov, então, deu lugar à Regional I, tornando-se um ninho de políticos ligados à gestão municipal. O que não mudou, foi a questão física do perímetro. Por um lado, caminha-se para o Beco dos Pintos, por outro, vai-se para o Cercado do Zé Padre.

Essa é uma versão de Fortaleza, em tempo real. Há marginalidade, há religiosidade, há urbanidade, tudo convivendo democraticamente, em que pese a violência instituída que está impondo aos moradores do bairro fechar suas portas, tão logo o sol descamba na linha do horizonte. Sinais dos tempos!

"Matadouro do Otávio Bonfim, que funcionava perto da estação de trem e onde hoje está o prédio da regional I, ao lado da pracinha. O Matadouro existiu até o ano de 1926. Fortaleza teve quatro matadouros. O primeiro matadouro foi no centro; o segundo, foi este do Otávio Bonfim, o terceiro foi o do Jardim América e o quarto era o Frifort, depois dele, não surgiu mais nenhum e hoje a população não sabe a origem da carne que consome." Nirez

Otávio Bonfim & Farias Brito
Muitas pessoas chamam o bairro de Otávio Bonfim, no código urbanístico da cidade tem, na verdade, o nome de Farias Brito. De igual forma, a praça que fica em frente à Igreja de Nossa Senhora das Dores, diferentemente do que imaginam os transeuntes, é denominada Praça dos Libertadores. Otávio Bonfim, assim conhecido o bairro Farias Brito, foi integrante do quadro de pessoal da antiga Rede de Viação Cearense, tendo sido por conta da sua condição de engenheiro, responsável por obras da RVC, que a sua figura ficou vinculada àquela área da cidade, dando nome, inclusive, à primeira estação do trem, após sua saída do terminal, no centro de Fortaleza, na direção norte-sul. O cine Familiar, vizinho à Igreja das Dores, por muitos anos, até o final da década de 1960, polarizou a atenção do moradores do bairro, que tinham ali um ponto de encontro para assistir filmes projetados, com o maior cuidado, pelo Vavá, um amante, como poucos, da sétima arte.

As pessoas confundem Praça das Dores com Praça do Otávio Bonfim. Na verdade, nem uma coisa nem outra. A praça é dos Libertadores e, se por acaso, tornou-se conhecida como Praça das Dores, o fato deveu-se à Igreja de Nossa Senhora das Dores, ali construída em 1932, e entregue aos frades franciscanos, muito dos quais alemães, empenhados em difundir a palavra de Cristo, entre os moradores da área, especialmente o grupo de jovens, fossem eles mais ou menos abonados.


 
Linda casa do bairro - Arquivo Nirez

A história do bairro, que de direito é Farias Brito, e de fato, é chamado de Otávio Bonfim, ganhou notoriedade por seu ecletismo, haja vista o registro de uma convivência pacífica entre quem, por exemplo, trabalhava, sol e chuva, no ferro velho, junto ao Mercado São Sebastião e quem, como o Sr. Jusako, cultivava flores, no Jardim Japonês. O catolicismo, por sua vez, convive em paz, com outras manifestações religiosas, haja vista a existência, no bairro, de muitos cultos evangélicos.

 
Arquivo Nirez

A renda 'per capita' dos moradores também é bastante variável. Há comerciantes, profissionais liberais, residindo na área, do mesmo modo que a marginalidade também dá suas caras ali, sendo os abusos coibidos pelo 3º Distrito Policial, instalado bem ao lado da linha do trem. O charme do bairro está na sua diversidade e, certamente, no clima de interior, que ainda circula por lá.




Créditos: Diário do Nordeste (Elsie Studart Gurgel/Marcelo Gurgel) e Arquivo Nirez

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O antigo Cine Familiar - Otávio Bonfim


Fachada do Cine Familiar na Praça dos Libertadores, no Otávio Bonfim - Foto Aba Film

Em 1949 começava, no bairro de Otávio Bonfim, a paixão de um cearense pelo cinema. Raimundo Carneiro de Araújo, “Seu” Vavá, começou sua vida profissional como
carregador de filme (o auxiliar do projecionista) do Cine Nazaré, que depois teria o nome mudado para Cine Familiar, e pertencia à paróquia de Nossa Senhora das Dores. Ele trabalhou nesse cinema até 1968, exercendo funções diversas, até chegar a gerente geral em 1957. No Cine Familiar, graças ao publicitário Tarcísio Tavares e ao empresário Maurílio Arraes (arrendatários do cinema às segundas-feiras, mantendo de 1966 a 1970, um dos mais interessantes cinemas de arte de Fortaleza), foi exibido em 16 de fevereiro de 1967, a obra prima de Orson Welles, ‘Cidadão Kane
*.

Seu Vavá - Foto de Neysla Rocha

Depois de aposentado não conseguiu esquecer essa paixão. Comprou as cadeiras do extinto Cine Fortaleza, e devagar, com muito carinho, foi montando seu próprio cinema. E então o Cine Nazaré renasceu, no mesmo bairro de Otávio Bonfim, na rua Padre Graça nº 65. Hoje “Seu” Vavá é o orgulhoso proprietário de uma das últimas salas de cinema à moda antiga, na realidade um pequeno museu, nessa cidade que já teve mais de duas dezenas de cinemas espalhados por seus bairros. Simples, sempre risonho, 81 anos bem vividos, “Seu” Vavá talvez nem imagine que realizar esse sonho foi, ao mesmo tempo, uma declaração de amor a Fortaleza.

O Cine Familiar era anexo a Igreja N.S. das Dores e foi construído com investimento dos frades Franciscanos. Funcionou até a década de 60 como opção de lazer para os moradores de Otávio Bonfim e adjacências.
O Cine dedicava-se à exibição de filmes de arte, localizado no bairro de Otávio Bonfim. Não se localizava, portanto, no “olho” das salas de exibições cinematográficas fortalezenses.

 
Sala de exibição do Cine Familiar na Praça dos Libertadores, no Otávio Bonfim 
Foto Aba Film

O Cine Familiar, foi fundado pelo frei Leopoldo, surgiu para fazer oposição e contrabalançar os malefícios decorrentes da apresentação de fitas a cargo do Cine Odeon, que funcionava em área defronte onde hoje se localiza a Delegacia do 3º Distrito Policial. O Cine Odeon era de propriedade de José Marcelino, àquela época marchante, e que funcionava o seu cinema sem dar grande “bolas” para a moral e os bons costumes, ditados pela censura do jornal O Nordeste.

 
Foto de 1960

Frei Leopoldo diz, em registro: “Em dezembro de 1935, resolvi construir, ao lado da Igreja, no parque dos meninos, um pavilhão aberto para nele ser ensinado o catecismo. Ao mesmo tempo adquiri um velho aparelho de cinema, fora de uso, e quase de graça, dando apenas um pequeno aparelho de projeção fixa em troca. Era minha intenção dar, de vez em quando, uma pequena sessão cinematográfica para os meninos do catecismo. Vendo grande interesse do povo e notando ao mesmo tempo que um cinema vizinho passava todas as fitas, mesmo as condenadas pela censura católica, resolvi dar sessões semanais. Consertei o aparelho, um tanto avariado, o melhor possível e comecei. O resultado foi satisfatório. Em dezembro de 1936, na ocasião da visitação canônica, combinei com o Rev. Pe. Provincial de que o dinheiro do cinema fosse aplicado à pobreza. O Sr. Miguel Rosendo daria dinheiro e mantimentos mediante vales despachados por mim e pelo Sr. José Alexandre, presidente dos vicentinos, entre pessoas idosas. No fim de cada mês resgataria esses vales com o dinheiro do cinema. Em agosto de 1937 adquiri um aparelho já usado para tornar o cinema falado, da mão do Pe. Luis Braga, por 7.000$000, montado aqui e funcionando. O dinheiro foi dado, parte por pessoas amigas da cidade, parte do saldo de cada mês. Era um cinema falado, funcionando até bem, mas só na minha mão, por ser muito complicado. Recebendo, às vezes, pessoas “endinheiradas” da cidade, em visita, as mesmas achavam tudo muito trabalhoso, para mim, muito quente na cabine e acharam de bom alvitre em comprar um aparelho moderno, novo, bom, prometendo dar o dinheiro. Combinei, “exigindo” porém, antes de fazer a encomenda, o dinheiro. Aos poucos vinha recebendo os donativos para esse fim. (...) Lá passam fitas aprovadas pela Censura de O Nordeste”.

Cine Familiar, inaugurado em dezembro de 1937, na Praça dos Libertadores, no bairro de Otávio Bonfim, fundado pelo Frei Leopoldo, pertencente à Paróquia de Nossa Senhora das Dores. Em 12 de agosto de 1968 houve a última exibição no Cine Familiar, com o filme “Bandoleiros do Mississipi”.


Por essa época, a Praça fronteiriça era um imenso areal, cuja travessia incomodava muita gente. Chamava-se Praça dos Libertadores. Ganhou a denominação que hoje ostenta, de Praça de Otávio Bonfim, ao ser inaugurada no final do mês de maio do ano de 1941, na gestão do Prefeito Alencar Araripe, quando foi transformada a área, com a plantação de canteiros, construção de passeio e iluminada com lâmpadas elétricas.

Foto da então Praça dos Libertadores - Arquivo Nirez

O cinema funcionou até 1968 quando foi fechado por exigência do Pe Provincial sob
a alegação de que estava dando mais prejuízos que retorno financeiro. Foi aberta
concorrência para arrendamento da sala de projeção em 1970, saindo como vencedora,
a empresa Severiano Ribeiro, que posteriormente, decidiu pela desativação.

Saiba Mais:

  • 02/12/1937   - Surgiu, no bairro de Otávio Bonfim, o Cine Familiar, na Praça dos Libertadores, pertencente à Paróquia de Nossa Senhora das Dores. 

  • 11/08/1968 - Última exibição no Cine Familiar, com o filme "Bandoleiros do Mississipi". 

  • 18/05/1969 - O antigo operador do Cine Familiar, Raimundo Carneiro de Araújo (Vavá), adquire e reabre o Cine Nazaré, na Rua Padre Graça nº 65, com o filme "Desafio de Gigantes". Ficaria até 1972.

*"O filme Cidadão Kane teve lançamento em Fortaleza, no Moderno, no dia 2 de abril de 1944. Como não chamou a atenção maior dos cinéfilos da época, pensavam muitos que não fora exibido na cidade e o Tarcísio é que exibira pela primeira vez no Cine Familiar."  Ary Bezerra Leite

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Fontes: Diário do Nordeste, Cronologia Ilustrada de Fortaleza de Miguel Ângelo de Azevedo 
e  Site Paroquiadasdores.org

sexta-feira, 20 de julho de 2012

No tempo de Paula Ney



Praça do Ferreira ainda com o Cajueiro da Mentira - Arquivo Nirez

A Feira Nova, a futura Praça do Ferreira, a prin­cipal de Fortaleza, teve a sua história, história que merece ser relembrada. Em 1825, chegava de mudança ao Ceará, vindo do Estado do Rio, o boticário Antônio Rodrigues Ferreira.


Estabeleceu-se naquele local, concentrando, em pouco, em seu tôrno, as atenções dos fortalezenses, pois era homem de visão larga e notável simpatia. Sua botica ficou sendo o "rendez-vous” dos políticos da terra, da gente de prol. Dado o prestígio granjeado pelos seus dotes pessoais, era, em 1848, eleito vereador e, logo mais, vice-presidente, depois, presidente da Câmara Municipal da Capital, cargo que exerceu, ininterrupta­mente, pelo largo período de doze anos, trabalhando sem­pre em prol do desenvolvimento material da cidade, e cujo nome ficou perpetuado na Feira Nova, como home­nagem póstuma dos seus contemporâneos, após seu fale­cimento, em 29 de abril de 1859. 


Arquivo Nirez


Antônio Rodrigues Ferreira, o boticário Ferreira, foi o político do seu tempo que mais influência exerceu e que maiores benefícios prestou ao aformoseamento da cidadezinha que desabrochava promissora. Até o seu tempo, a Feira Nova, — nome que se lhe aplicou em virtude de ser ali que os comboieiros costumavam expor à venda as mercadorias trazidas do sertão, — morria no beco do Cotovêlo, formada de uma linha modesta de casas modestas, em cuja extremidade se trifurcava em ruelas pobres. Dessas, uma, a que ia parar na Lagoa do Garrote, em determinado ponto, um pouco além, possuía, situado no centro da rua, grandioso e ensombrado cajueiro. À sombra dele, ficava a casa do Fagundes, o único açou­gueiro da terra. Ali matava e ali esquartejava as reges. Relembremos, com emoção, o episódio que o celebrizou, e que já foi contado, com pena de mestre, por Gustavo Barroso. Ocupava, a êsse tempo, o cargo de governador da Provincia, Luís da Mota Féu e Tôrres, homem ríspido e muito jactancioso das funções que exercia. Costumava êle passear em belo cavalo, tôdas as manhãs, e aconteceu que, certa vez, ao passar sob a frondosa árvore, seu chapéu de três bicos agaloado e com tope fôsse arrancado por um galho. Apanhe meu chapéu, gritou o governador, para Fagundes que, em mangas de camisa, gozava a fresca, assentado num tamborete. Êste não deu ouvidos, imperturbável ficou, imperturbável continuou. Luís da Mota, mais áspero, deu nova ordem. Inútil o resultado. Fagundes permaneceu impassível. Irritado, esporeou o cavalo e avançou, resoluto, na direção do açougueiro, que não se intimidou. Era homem afoito e corajoso. Jamais o haviam humilhado. Se o governador lhe pedisse com boas maneiras, com jeito cortês, por favor, ergueria, sem constrangimento. Mas, daquela forma, com grosseria e com imposições, jamais se submeteria. E foi o que aconteceu. O tom ameaçador de Mota Féu não o demoveu: Não me apanhas o chapéu, vilão duma figa, pois eu, que ia sõmente mandar cortar o galho baixo do cajueiro, agora vou pé-lo no chão e adeus açougue!
Dali seguiu, exacerbadíssimo, o Governador rumo ao Palácio, que ficava naquela casa envelhecida e escura de sujo, que se erguia, acaçapada, dentro de verdadeira muralha, na rua de Baixo, nas imediações do Mercado de Cereais.


Praça do Ferreira no início do século XX - Arquivo Nirez


A notícia esparramou-se, veloz como um raio, pela cidade quieta, desacostumada a novas dêsse jaez. Tôda a gente bisbilhotou, assanhada. A novidade era de dei­xar o fortalezense de bôca aberta. — Mas o Fagundes enfrentara mesmo o Governador? — perguntava-se, incrédulo. Era, não há dúvida, homem peitudo de fato. Já o sabiam, mas não para tanto.
O certo é que, no dia seguinte, cedo, cedinho, mal o sol despertara, já os empregados do Governador, arma­dos de machado, ameaçavam derrubar o cajueiro do Fagundes. Êsse, munido de longa faca, juntamente com meia dúzia de magarefes, pôs em fuga os emissários de Mota Féu. A notícia esparramou-Se, veloz como um raio, pela cidade quieta, contaram ao Governador o que acontecera. o qual mais irritado ficou, determinando a ida ao local de uma leva de praças de polícia. Nesse ínterim, o afoito Fagundes, que tudo previra, provocou uma espécie de levante: trouxe para a rua os açougueiros do Gar­rote, os flandeiros da rua da Boa Vista, os merceeiros da rua Formosa, os carapinas da rua de Baixo, os fer­reiros da rua do Quartel, até os pescadores da Prainha, todos os que tinham uma profissão no lugar. Traziam pistolas e bacamartes. A tropa carregou-os. Então levantaram trincheiras na encruzilhada das três ruas e abriram fogo contra ela, que recuou. Daí o nome das três ruas, perpetuando o episódio: rua do Cajueiro, rua das Trincheiras e rua do Fogo”.


Arquivo Nirez


E, encerrando narrativa tão emocionante, Gustavo Barroso escreve: “O governador desistiu de pôr abaixo cajueiro,a cuja sombra o Fagundes continuou a vender carne à cidade. A vontade dum homem só, não conse­guiu vencer a duma população inteira, O capricho dum tirano não conseguiu impor-se a uma gente que ainda tinha vergonha e brio. Defendendo sua liberdade con­tra a tirania, os antigos habitantes da humilde vila do Forte, como era chamada a nossa Fortaleza, deixaram escrito nas tabuletas de suas ruas um belo exemplo às gerações vindouras.” Era assim o fortalezense intrépido e desenvolto. Pagava para não brigar, mas, quando na briga, pagava para não sair. Perto, pertinho, branca de cal, erguia-se a velhís­sima igreja do Rosário, e, logo adiante, quase nos fundos, na rua que lhe tomara o nome, hoje Cel. Bizerril, ficava outra árvore, também histórica para o filho da terra. Era o oitizeiro do Rosário, que a cidade inteira conhecia e amava. O oitizeiro-macróbio, como o haviam cogno­minado, muitos anos depois. Ali o vimos, nos tempos da nossa meninice e assis­timos, contristados, quando a picareta do progresso o prostrou, com o geral protesto de tôda uma população. Foi Gustavo Barroso, quem o cantou em página lapidar: “Velho oitizeiro, contemporâneo da fundação da minha cidade natal, ninguém te cantou a vida centená­ria nem a morte breve. Não houve um Afonso Arinos para louvar a tua solenidade verde e triste como a do Buriti Perdido, testemunha silenciosa das bandeiras! Quando nasceste brotando tímido do solo arenoso, a vila do Forte compunha-se duma única rua torcicolosa, emparelhada ao curso do Pajeú. Aqui e ali, dela saía um beco de mocambos e casebres de taipas. A capela do Rosário, caiada de novo, dava-te as costas com des­dém. Cresceste. A capela tornou-se igreja e a tua copa chegou ao beiral do seu telhado. Por cima dos cercados e das ateiras, vias para os lados do Garrote a histórica cúpula de verdura do Cajueiro do Fagundes, que o governador Luís da Mota Féu e Tôrres quis pôr abaixo, recuando diante do poviléu assanhado e feroz. E éreis as duas árvores tradicionais da cidade que se ia formando.
O cajueiro, que servia de açougue, morreu de velhice. Tu continuaste a crescer, a deitar raízes, a aumentar a fronde, no meio dos casebres barrigudos e escuros. Viste a displicência do viajante Koster, sen­tado ao luar numa “roda de calçada” da praça vizinha. Ouviste o taciturno murmurar do governador Sampaio. Avistaste o governador Rubim vendendo apressadamente as alfaias antes de regressar a Portugal. E estremecestes rudes vozes de comando de Conrado Jacó de Niemeyer, depois de vencida a revolução de 1824.
A cidade de Fortaleza foi crescendo contigo, len­tamente, sob o sorriso azul do céu, alegre nas invernias, melancólica nas sêcas assassinas. E eras como o pastor no meio do teu rebanho de casas humildes, a cabeleira verde agitada ao vento do Atlântico como uma ban­deira. Oitizeiro velho, conhecias tôda a gente e tôda a gente te conhecia. Devia ser no teu tronco rugoso que o famigerado Padre Verdeixa amarrava o cavalo, quando ia em voz alta insultar, debaixo das sacadas do Palácio, o Presidente padre José Martiniano de Alencar. E’ possível que certa noite se tivesse agitado a ramaria àtrepidação do estrondo do bacamarte que matou o major Facundo. Decerto tuas fôlhas mais altas presenciaram por cima dos telhados o enforcamento dos réus no largo à entrada do desaparecido beco do Cotovêlo.
Durante muitos anos, a melhor escola da cidade funcionou na tua vizinhança, em frente do antigo Quar­tel de Polícia. Escutavas, recolhido, a monótona can­tilena dos meninos decorando a cartilha e a tabuada. E, quando os bolos da palmatória estalavam e os lamentos cortavam o ar, não sabias se era o decurião que cas­tigava os alunos vadios, ou se era o delegado que man­dava corrigir os escravos fugidos, os bêbedos, os vaga­bundos, os ladrões ou as rameiras. A cidade que viste nascer fêz-se moça e tornou-se mulher. Em lugar das barrigudas casas de taipa, alevantaram-se sobrados. O arrôjo dos primeiros arra­nha-céus de cimento armado espantou a tua altura vigo­rosa. Os automóveis, fonfonantes, reclamavam tua queda, porque lhes estorvavas a velocidade, tu que conhecias uma por uma as velhas traquitanas de magras pielas, alugadas pelo Golignac, mais velho do que elas. Não houve voz, pedido ou protesto que te salvassem. Condenaram-te à morte. E tu, que perderas a grade protetora, posta pela bondosa Câmara Municipal de 1877, que fôras amputado várias vêzes por estorvares as pla­tibandas dos prédios próximos, desenraizado brutalmente, cortado e recortado em achas, acabaste como lenha ofere­cida pela nova edilidade às cozinhas da Santa Casa. Mais nobre e útil do que os que te derrubaram, morreste dando o teu corpo para ferver a sopa dos enfer­mos e dos pobres. No século XVIII, o povo revoltava-se para salvar um cajueiro. No século XX, os povos não se revoltam mais por causa duma árvore que viveu com êles. .. Os povos aos poucos perderam a alma.” 


Arquivo Nirez


Fortaleza de 1858! Como eras encantadora, na tua modéstia e na tua simplicidade deliciosamente colonial. Já tinhas comoventes histórias para contar-nos, nesse tempo. . . E com que esplêndidos episódios sa­bias tecer as tuas narrativas feitas com o heroismo e com a bravura do teu povo.., da heróica e da brava gente cearense. Mais tarde, o poeta Paula Nei, teu filho dileto, em sonêto magistral, havia de evocar-te, emocionado, os olhos marejados de lágrimas, debruçado na amurada de um navio, vendo-te, distante, ao embarcar para a Côrte:


Ao longe, em brancas praias, embalada
Pelas ondas azuis dos verdes mares,
A Fortaleza, a loira desposada
Do sol, dormita à sombra dos palmares.


Raimundo de Menezes

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Descalços e banguelos - Um causo sério




Em 1968. Como este, ano eleitoral. Campanha de tramas. Na cidade, tempo de eleição era um Deus nos valha e acuda. Matreirice à solta. Burlas a lei.

Candidatos no ludibrio ao eleitorado. Terra de paupérrimos, analfabetos e desdentados. Pontos fracos do povão e fortes dos políticos curraleiros da desgraça humana.

Miguelim, riso fácil, papo do vai dar certo, promessas dos sem faltas e dos sem dúvidas era vezeiro na corrupção. Ou “malfeito”?

Época da popularização das sandálias japonesas. Identificou-as como meio importante na vitória urnária. Encomendou uma carrada da mesma cor, separadas meio a meio, para os pés direito e esquerdo. Pouco antes da votação, distribuiria as primeiras e, vitorioso fosse, o votante a apresentaria e faria jus à complementadora do par.

Novas ideias surgiram-lhe. Contratação de protético que elab
oraria duas mil dentaduras. Superiores e inferiores. De tamanhos diversos. Enquanto isso, um dentista extrairia os restos de dentes naturais dos desejosos em utilizar mastigadores postiços.

Eleito, distribuiu a chinela faltante a um dos pés do eleitor. As pererecas foram entregues, porém, com dificuldades. Nos locais de fornecimento, existiam mesa e caixa contendo várias chapas. Em fila, os banguelos, um a um, experimentavam as próteses e, quando as mesmas se adaptavam ao formato bucal, passavam a pertencer-lhes. Alguns testavam dezenas, sem êxito, devolvendo-as à caixa. Outros as pegavam, mergulhavam na água de pequena bacia e as premiam nas gengivas. As trocas duraram dias. O município? Perguntem ao Miguelim. Não raro, já velho, vem a Capital. Assuntos politiqueiros...


Geraldo Duarte (Diário do Nordeste)

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A Marcha do Pirambu


Desde a década de 1940 a organização dos trabalhadores já era visível em nosso país, principalmente após a derrota do Nazifascismo e do fim do Estado Novo. Fatos que permitem a emergência de um sistema liberal, onde passou a predominar um estilo democrático e representativo de governar, com a proliferação de partidos e agremiações políticas.

Após a instauração do regime democrático em 1946, o movimento sindical sofreu forte repressão. O Partido Comunista Brasileiro foi posto na ilegalidade e seus militantes sofreram perseguições e o movimento operário foi cerceado pelo aparato policial repressivo a mando do Estado.

Contudo, o aparelho repressivo do Estado não conseguiu minar a organização dos movimentos populares. No Ceará foi significativa a ação do Partido Comunista entre os trabalhadores das fábricas instaladas em Fortaleza. No bairro de Jacarecanga muitas fábricas já havia sido instaladas, o que de certo modo, favoreceu a organização dos trabalhadores na área do Pirambu, bairro localizado na zona oeste da cidade e onde residiam os trabalhadores dessas fábricas. Nesse bairro a atuação do Partido Comunista Brasileiro era bem significativa, notadamente através do Comitê Democrático de Libertação Nacional, que juntamente com a Sociedade Feminina do Pirambu passou a organizar debates e discussões entre os moradores, sobre a questão da terra, do transporte, da água potável e da eletricidade, dentre outras necessidades básicas da população local.

Até o início dos anos 50 o Partido Comunista Brasileiro pode atuar livremente no Pirambu e em outros bairros de Fortaleza, pois até então a Igreja Católica ignorava os movimentos populares. Os religiosos se mantinham em silêncio, quase que totalmente alheios à vida pública, se dedicando apenas ao trabalho burocrático e as campanhas assistencialistas, que se resumia apenas à doação de esmolas aos pobres.

 

Essa postura de neutralidade mudou a partir das mudanças políticas nacionais, que passaram a exigir uma nova postura da Igreja diante das questões sociais. Quando o presidente Jânio Quadros renunciou em agosto de 1961, o país se encontrava num caos generalizado. O vice-presidente, João Goulart assumiu o país mesmo diante da resistência dos ministros militares. Jango assumiu, em 7 de setembro de 1961, num quadro de parlamentarismo híbrido, associando um presidente enfraquecido a um parlamentarismo fraco. Foi um ano muito agitado, de intensa movimentação popular. As idéias do comunismo ateu deixaram os cristãos apavorados.

E foi nessa conjuntura de crise e de reivindicações das massas por reformas sociais que a Igreja reaparece em cena, através de Movimentos Leigos e de Educação de Base, a fim de recuperar o espaço perdido para os comunistas junto ao movimento popular.



No Pirambu a Igreja entra em cena a partir da chegada do padre Hélio Campos em 1958, iniciando-se, pois, uma nova etapa de luta e organização dos moradores, sob o olhar disciplinador do padre, que se munindo do poder conferido pela instituição que representava e com o apoio de assistentes sociais, passa a realizar um trabalho de forte teor religioso e comunitário como forma de neutralizar a ação do Partido Comunista junto às massas.

A Igreja Católica através do padre e dos educadores cristãos assume uma postura progressista, visando o homem como um todo e passa a dar atenção especial à formação de lideranças populares e à luta contra a opressão. Ao mesmo tempo se contradiz ao pregar a necessidade incontestável das pessoas se manterem submissas às orientações da Igreja.

O padre Hélio em pouco tempo se tornou uma importante liderança no bairro e com o apoio da irmã Lindalva Miranda e da assistente social Aldaci Barbosa, passou a mobilizar toda a comunidade com o intuito de discutir os problemas, sendo que o que mais chamava a atenção de todos era a questão da terra.

'Organizando um trabalho de quarteirão em quarteirão e com a ajuda do padre Hélio, os moradores realizaram a Marcha na cidade no dia 1 de janeiro de 1962, reunindo 20.000 pessoas até o centro.' (BARREIRA, 1992, p.58).

A Marcha do Pirambu segundo alguns pesquisadores foi o marco inicial da luta popular em Fortaleza. Mesmo tendo existido muitas lutas populares em nosso Estado, não podemos deixar de reconhecer que a Marcha foi um dos maiores movimentos populares em nossa cidade. Ela não foi um movimento isolado, pois fazia parte de um contexto histórico de lutas e mobilizações populares. Apesar da liderança da mesma ser atribuída ao padre Hélio, não podemos negar a efetiva participação de militantes do Partido Comunista Brasileira e de lideranças sindicais.

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Na verdade, o padre Hélio, na sua forma carismática, deu uma dinâmica ao movimento sem entrar em choque frontal com o Estado e com as elites de Fortaleza. Isso reflete o caráter apaziguador do movimento. Entrando, pois, em contradição com o seu objetivo maior que era a luta por terra, trabalho e pão. Isso evidencia o esforço da Igreja Católica de tomar a direção do movimento popular no Pirambu, que sob a direção do padre Hélio Campos e do padre Arquimedes Bruno tomam a dianteira da Marcha na tentativa de excluir da mesma, a voz das lideranças sindicais e comunistas que atuavam no Pirambu na época.

Não podemos negar que a Marcha do Pirambu foi um movimento político cuja participação não se restringiu somente aos padres e religiosos, mais contou com a participação de militantes do Partido Comunista Brasileiro e de líderes sindicais, dentre os quais, podemos citar: João Meneses Pinheiro, do Sindicato dos Securitários; Marcelo Alves Ribeiro, do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Calçados; José Braga da Silva, do Sindicato dos Têxteis; Francisco de Farias de Melo, do Sindicato dos Rodoviários; José Jatay, do Sindicato dos Músicos; Luciano barreira, da Federação dos Camponeses do Ceará; Jorge Pereira Nobre, do Sindicato dos Ferroviários; José Maria de Oliveira, da União dos Ferroviários; Milton Barbosa, do Sindicato dos Marceneiros; Francisco Anísio Lobo, do Sindicato dos Telégrafos; Padre Tarcísio Santiago de Almeida, da Federação dos Círculos Operários do Ceará e José de Moura Beleza, representando os Bancários e o Pacto Sindical de Fortaleza.

A Marcha do Pirambu foi um movimento popular que teve repercussão nacional, de caráter político inspirado nos ideais de Reformas Sociais defendidos na época por entidades cristãs e sindicais. Apesar de ser credito apenas a figura do padre Hélio Campos, não podemos negar a forte presença de militantes sindicais e do Partido Comunista.

A Marcha idealizada pelos moradores do Pirambu foi divulgada pela imprensa local com certo temor, principalmente quando o padre Hélio Campos afirmou que a mesma se tratava de uma advertência aos poderosos do Estado. Os jornais locais noticiaram o fato como se não fosse possível um padre e seus seguidores conseguir concentrar um número significativo de pessoas. Porém, o movimento se concretizou no dia 1 de janeiro de 1962, quando a população do bairro, após a celebração de uma missa no pátio à frente da Casa Paroquial às 16 horas, saiu marchando pelas ruas da Cidade, indo pela Avenida Francisco Sá, prolongando-se pela Rua Guilherme Rocha, Sena Madureira e finalmente Conde D’Eu, onde os manifestantes de forma pacífica passaram a ocupar os espaços da Praça da Sé.


A multidão de aproximadamente 30 mil pessoas conduzindo faixas, cartazes e gritando palavras de ordem por uma Reforma Social, assustaram os comerciantes que fecharam seus estabelecimentos e até as portas da Igreja da Sé foram fechadas, pois Arcebispo Metropolitano, Dom Antônio de Almeida Lustosa nunca assistira uma aglomeração tão grande de pessoas em tal espaço. Diante de tal fato, o padre Hélio pediu para todos ficarem sossegados, pois o movimento era pacifico e ordeiro e na ocasião pediu perdão ao Governador do Estado e demais autoridades pelo susto causado. Depois do susto, o Arcebispo fez um elogio a bravura dos moradores do Pirambu, o seu espírito disciplinado e ordeiro.

Na verdade, o grande temor da Igreja e das elites do Estado era a presença de militantes de esquerda e de sindicalistas, que pudessem tomar a direção do movimento em prol de seus ideais revolucionários. Mas o padre, com o apoio de religiosos, políticos conservadores e da imprensa local conseguiu até o último momento da Marcha manter a liderança da mesma, não permitindo que outras lideranças pudessem se manifestar a massa. E a idéia que ficou do movimento para a população de Fortaleza que se tratava de uma manifestação pacífica de favelados liderados por um padre que pregava o Amor, a Fraternidade e a Justiça Social.


O Mocupp - Movimento de Cultura Popular do Pirambu (1980) - Acervo Juracy Mendonça

A Marcha teve efeitos positivos para os moradores do Pirambu, pois ao seu término políticos influentes do Estado, como o Senhor Virgílio Távora, então Ministro de Aviação e Obras Públicas do Governo de João Goulart, que através de sua influência política conseguiu junto ao primeiro Ministro Tancredo Neves a desapropriação das terras do Pirambu, fato esse que se deu através do Decreto nº 1058/62 assinado no dia 25 de maio de 1962.

Juracy Mendonça pedalando pelas ruas do Pirambu em 1976 - Crédito da foto

Embora tenha conseguido a desapropriação das terras junto ao Governo Federal, o povo do Pirambu acabou perdendo uma de suas mais expressivas lideranças. Pois, decorridos os acontecimentos marcados pelo Golpe Militar de 1964, os movimentos populares foram desarticulados e suas lideranças presas ou exiladas. A Igreja e as forças da repressão no intuito de desarticular o crescente movimento de resistência dos moradores do Pirambu trataram rapidamente da transferência do padre Hélio Campos para o Estado do Maranhão, e o Pirambu foi dividido em duas paróquias: Nossa Senhora das Graças e Cristo Redentor, originando, pois, dois bairros. A partir de então, o silêncio veio à tona e os movimentos populares acabaram se enfraquecendo e o Pirambu, de bairro operário passou a ser visto pela elite local, apenas como mais uma favela de Fortaleza.



 
Parte I


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Crédito: Artigo “O Pirambu e seus atores sociais: Do povoamento em 1930 até a Marcha de 1962.”  de Raimundo Nonato Nogueira de Oliveira.

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