Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Gustavo Barroso
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



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quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A escrava Bonifácia - Por Gustavo Barroso

Fortaleza 1840 - Pena de Morte.


Quando o Joaquim Carpina se apeou à porta de casa no Sítio Mongubeira, além de Arronches, a escrava Bonifácia, que era pessoa de sua inteira confiança, veio para ele em pranto:

- Meu senhor, - disse por entre lágrimas e soluços: - seu Toinho morreu de mordedura de cobra! .... O homem empalideceu e entrou apressado na habitação, atirando-lhe esta pergunta:

- Onde está ele?

- Lá dentro, na camarinha,


Era uma alcova escura, com um bafio de mofo, onde mal se distinguia a rede do enfermo atravessada.

- Toinho! - chamou o pai, aproximando-se.

Silêncio. A rede imóvel.

Nada. Então, apalpou o corpo e o sentiu gelado.

- Está morto! Pobre do meu filhinho! - exclamou, e desatou a chorar convulsivamente.

A escrava de pé, encostada ao umbral da porta, soluçava.

O filho do português Joaquim Marques Vairão, mais conhecido por Joaquim Carpina, devido ao seu ofício de carpinteiro, ainda não completara quatorze anos. estudioso e dócil, era a grande esperança do pai e fazia-se amar por toda a gente. Vinha sempre passar as férias ao sítio, ora com o progenitor, ora sozinho. A escrava Bonifácia, que tomava conta da casa, gostava muito dele.

- Traga uma vela, - ordenou o português depois de algum tempo, dominando o choro.

A luz trêmula e escassa do pavio embebido em cera de carnaúba, contemplou longamente as feições do morto. Olhando o rosto lívido e chupado, imobilizado numa expressão de dor, notou algumas manchas escuras nas faces e no pescoço.

- Que foi isso? - indagou.

Bonifácia respondeu serenamente:

- Seu Toinho, no dia em que foi mordido, tinha levado uns coices de cavalo, quando metia os animais no cercado. A cobra picou o finado de volta de casa.

Chegavam os moradores do sítio e os vizinhos da redondeza do Siqueira, meio caminho de Arronches ao Maranguape. Levaram o corpo para o capiá e puseram-no sobre uma mesa, com velas ao torno. Foi quando a cabocla Ana sussurrou ao ouvido do carpinteiro Vairão:

- Sou capaz de jurar que a Bonifácia matou o menino... a mordedura de cobra é mentira! ....

Semi aturdido pela dor e ainda mais por aquela revelação inesperada, ele perguntou:

- Mas por que haveria ela de matar o meu filhinho?...

- Para que ele não lhe contasse as artes que ela fazia aqui no sítio.

- Que artes?


- É que vosmicê ignora que ela vive amancebada com o mulato Damião, que os dois vendiam de vez em quando uma terça de farinha e furtavam as suas cabras. Seu Toinho desta vez descobriu tudo e ameaçou de contar. A Bonifácia ficou muito irada, passou-lhe uma grande descompostura, agarrou-o pelo pescoço, deu-lhe uns safanões e uma coça. O menino adoeceu da surra. Levou uma porção de dias gemendo que fazia dó. Uma tarde, quando vim buscar água, ele ouviu minha voz e me chamou. Fui lá dentro e o coitadinho me pediu para passar a noite com ele, porque tinha medo de ficar só com a Bonifácia. Fiquei, e ele dormiu sossegado, mas de madrugada a malvada me mandou buscar um tição na cozinha e, quando voltei, tinha falecido. O corpo ainda estava quente... não quero a salvação da minha alma se não foi ela quem o matou!...

Desvairado, o Joaquim Carpina começou a gritar a todos os trabalhadores:

- Segurem a Bonifácia! .... Amarrem essa assassina!....

A escrava, porém, havia fugido. Então, fez selar um cavalo e galopou para a cidade de Maranguape, em busca da justiça.


O cirurgião militar Machado examinou o cadáver por fora e declarou que as manchas do rosto acusavam contusões e as nódoas do pescoço eram de unhadas, sendo certo que a morte se dera por asfixia proveniente de compressão. Não se fez autópsia. Ouviram-se quatro testemunhas. A primeira vira o menino doente, porém não dera fé das manchas devido à obscuridade da camarinha. A vítima lhe contara ter levado os coices e ter sido mordida pela cobra. À segunda, Bonifácia mandara pedir que fosse a Fortaleza participar ao Sr Vairão que o filho se achava mal dos coices apanhados e da picada da serpente; depois, declarara não mais precisar desse serviço por ter enviado outro portador com o recado. Quando essa testemunha estivera no sítio, a cabocla Ana fazia companhia à escrava. Ouvindo-lhe a voz, o menino perguntara lá de dentro: - É você, Manoel? A terceira testemunha foi a própria Ana, que repetiu o que dissera ao carpinteiro. E a quarta já vira o menino morto, tendo ajudado a lavar e vestir o corpo. A escrava declarara-lhe que a morte fora causada por mordedura de cobra e lhe mostrara num dos pés do defunto duas picadas que antes lhe pareceram feitas com alfinete do que com as presas duma jararaca.


A acusada foi presa vagando pela Estrada do Maranguape e submetida a um único interrogatório, esse mesmo diante do júri. Respondeu calmamente que não surrara nem matara o menino, que ele morrera naturalmente das consequências dos coices e da picada, que passara muitos dias doente e que ela avisara em tempo ao pai. Mais nada. A confissão do crime ninguém lhe arrancou.

O tribunal popular não quis, contudo, saber se o processo tinha falhas graves, se as testemunhas eram insuficientes, se seus depoimentos se mostravam parciais, hesitantes ou incompletos, se o exame cadavérico fora imperfeito e se a ré negava o crime. Era o ano da Graça de 1840 e tratava-se de uma escrava. Foi condenada à morte.

Fotografia da Cadeia Pública de Fortaleza em 1964 - Acervo do IPHAN.

Presa na Cadeia Pública de Fortaleza, a infeliz esperou resignadamente o desfecho de seu triste destino. Uma noite, deitada numa esteira rente ao muro do calabouço que dava para a rua, pensava na sua vida desditosa, quando ouviu para lá e para cá os passos da sentinela que rondava aquele lado do presídio. Uma luz se fez no seu espírito: - Essa parede, pensou, deve ser muito fina, para eu poder escutar esses passos. Arrancou da caliça um prego que servia para pendurar roupa e se pôs a descascar o reboco. Em poucos minutos descobriu os tijolos. Escutou. Os passos haviam cessado. Atacou os interstícios herdados de argamassa e, em menos de meia hora, um buraco pelo qual podia passar a cabeça.

Antiga rua Amélia

Rua Amélia - Atual Senador Pompeu

Registro feito de dentro da cadeia, vendo-se
o anexo da Estação Central. Anos 70.
Crédito: Eugênio Arcanjo
Silêncio e luar. O ar iodado do oceano acariciou-lhe levemente o rosto. Na noite clara, boiavam os perfumes sutis da natureza. Os oitões caiados das casas esparsas da rua Amélia pareciam de prata. O alísio brando agitava devagar a folhagem escura das ateiras. Sentada na guarita do canto da cadeia, com as pernas estiradas para fora, a sentinela dormia a sono solto, ressonando alto como um justo. Bonifácia tirou mais alguns tijolos e conseguiu sair da prisão. Espreguiçou-se com a volúpia da liberdade. Junto ao soldado, encostada à parede, a espingarda reiuna de bandoleira branca. A escrava tomou-a e, agachando-se pela sombras dos ateiros, fugiu na direção do Cemitério de São Casimiro.

No dia seguinte, a notícia alvoroçou Fortaleza. O inspetor da Cadeia de Correição participou ao general José Joaquim Coelho, residente na província, o acontecido, declarando julgar seu presídio impróprio para guardar certos criminosos, pois as paredes eram feitas de "barro e tijolo", podendo ser "arrombadas até com um prego", e pedindo providências para ser tapado o buraco.

Rebuliço nos meios oficiais. A sentinela culposa a pão e água na solitária. O inspetor da Correição recebeu do carcereiro João José Saldanha Marinho o seguinte: "Participo a Vossa Senhoria que foi arrombada a cadeia das mulheres esta meia noite pela sentenciada Bonifácia, a qual se evadiu pelo mesmo rombo que havia feito, por se achar a sentinela dormindo, e de tal modo que deixou furtar a granadeira". E os pedreiros consertando o buraco entre as chufas dos basbaques que vinham admirá-lo. E as patrulhas de linha e de permanentes a percorrer os arredores da cidade, a bater os matos, a devassar areais e praias em busca da criminosa.

Dois dias depois, a 30 de julho, alguns soldados a agarraram no caminho da Jacarecanga para o Urubu, fingindo-se de lavadeira, com uma trouxa de roupa à cabeça. Voltou à prisão e foi algemada, ficando de sentinela à vista.

No dia 21 de setembro recolheram-na ao oratório e no dia 22 marchou para o patíbulo através das ruas principais da cidade, sob o ouro do sol radioso e o dolente badalar dos sinos. O carrasco Pareça segurava a corda, o juiz Samico mostrava-se imponente sobre um corcel alazão e o escrivão, ao lado, de vez em quando berrava:

- Justiça que manda fazer o júri da capital na ré Bonifácia, escrava de Joaquim Marques Vairão e assassina do filho deste, para que sofra na forca morte natural!

Seguia-se a leitura da sentença.

Antigo Arronches
A multidão rodeava a forca no Largo do Paiol em frente da muralha verde do mar que se interpunha entre a alvura puríssima das dunas e o azul luminoso do céu. Silenciosa, calma, com as pernas enfiadas numas calças velhas, a ré subiu os degraus do cadafalso. O carrasco tapou-lhe o rosto com um lenço e a enforcou.

Por que a cabocla Ana a teria denunciado? Única testemunha que precisou os fatos não teria caluniado a outra? O segredo, acusada e acusadora levaram para o túmulo, uma na fossa comum dos enforcados do antigo cemitério da Fortaleza, onde hoje se ergue a , a outra na vala dos deserdados de Arronches ou do Maranguape.


Fonte: Revista Excelsior (1940) - Gustavo Barroso
Crédito: Antônio Neto

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A Prainha de outrora... Parte II


Avenida Monsenhor Tabosa na década de 60 - Arquivo Nirez

Prosseguindo na jornada e tomando o rumo leste, localizamos na atual Avenida Monsenhor Tabosa uma casa em que residiu a família de D. Nenem Bezerra de Menezes, que se casaria com o respeitável clínico cearense Dr. João Otávio Lobo, hoje nome de rua. E já na esquina com a rua Senador Almino, nos deparamos com um grande prédio atualmente subdividido em várias lojas, onde se situava a residência do comerciante Vicente de Castro, correspondente aos atuais nºs 83 a 139, com outros de permeio.


Seminário - Arquivo Nirez

No primeiro quarteirão, face sul, da Avenida Monsenhor Tabosa, foi construído o prédio do Seminário Diocesano, e, completando a quadra, com o oitão para a Praça Cristo Redentor, foi levantada a Igreja da Conceição da Prainha ou do Seminário.


Monumento Cristo Redentor - Arquivo Nirez

Círculo Operário São José

Quanto a praça, antes de 1915 a sua face oeste praticamente não existia, ocupada por casebres, motivo pelo qual foi fácil levantar o então suntuoso prédio do Círculo Operário São José, uma das primeiras e mais felizes iniciativas do 3º bispo do Ceará e 1º arcebispo de Fortaleza, Dom Manuel da Silva Gomes, que empresta seu digníssimo nome a uma das principais avenidas de nossa terra, que aliás tem início naquele logradouro. No centro da praça, foi erguida, em 1922, uma coluna com a imagem de cristo Redentor no seu ápice, abençoando a cidade com um de seus braços e segurando uma cruz com o outro. Segundo informações recolhidas, essa coluna foi construída em comemoração ao centenário da Independência do Brasil, por inspiração de Raimundo Frota, grande benfeitor do Círculo Operário, que concorreu para a construção do monumento com quarenta mil tijolos. O Círculo tomou a si essa tarefa e convocou os mestres Antônio Machado, Domingo Reis e Severino Moura, este último mais conhecido por "Chuva Branca", todos homens piedosos, vicentinos e terceiros franciscanos. Sem a assistência de engenheiros e arquitetos, o belo monumento provocou no Rio de Janeiro a maior admiração, através de apreciações de técnicos, em revistas especializadas. A coluna foi inaugurada a 7 de setembro de 1922. Enquanto os foguetes espocavam, os quatro novos sinos da Igreja da Prainha badalavam, dentre os quais o "Centenário".


Vista aérea da década de 20 ou 30 - Arquivo Nirez


Na ocasião pôs-se em movimento o relógio de quatro faces, depois retirado por inativo, em consequência da oscilação da coluna, e vendido à Igreja dos Remédios, no Benfica. A coluna teve seus dias gloriosos, costumando Dom Manuel da Silva Gomes celebrar, em dias especiais, na capelinha que lhe servia de base, enquanto a imagem era iluminada à noite até que, durante a 2ª Guerra Mundial, as autoridades militares impuseram a retirada das lâmpadas por questão de segurança pública, com a promessa de voltar ao que era no devido tempo, o que infelizmente não ocorreu. Aos domingo e dias festivos era franqueada a subida até o topo da coluna, através de escada interna em espiral, de onde se descortinava belo panorama da cidade e do mar. A imagem de Cristo Redentor infundia segurança em todos, aos de baixo e aos de cima.


A inauguração do monumento Cristo Redentor em  7 de setembro de 1922 - Livro Terra Cearense 1925

Descendo a Ladeira da Prainha, hoje rua Almirante Jaceguai, com fundos para o quintal da casa do Barão de São Leonardo e formando a esquina sudeste da referida ladeira com a rua do Chafariz, hoje José Avelino, tínhamos a casa de D. Benvinda e "seu" Floriano, primos do grande cearense Gustavo Barroso (menininho ao lado) que, em suas "Memórias", relembra inúmeras peraltices por ele praticadas sob a proteção de quem muito o estimava. Hoje, o prédio tem o nº 480 da rua José Avelino e 174 da rua Almirante Jaceguai. O primeiro volume daquelas deliciosas reminiscências, intitulado Coração de Menino, conta o que se passou numa segunda "Noite das Garrafadas" (ps. 256 a 264), assim chamada porque o irrequieto cearense resolveu reagir contra o chicote do português Chico Bracinho, carroceiro de Joaquim Amâncio Farias, residente em casa do bairro. O lusitano embirrava com os meninos que trepavam na traseira de sua carroça. Uma de suas chicotadas atinge Gustavo e este trama vingança. Arma-se de uma garfo velho que servia para revirar o adubo das roseiras da casa dos primos e convida para a desforra do caboclo João Pacheco, munindo-o de cacete, e o incita a vingar a honra cearense ultrajada por um ultramontano. Seria outra "Noite das Garrafadas". Na hora aprazada, os dois desafiam o português. Este reluta, prudentemente: que fossem para casa e deixassem de provocações com quem estava quieto. Os desafios continuam e o carroceiro, afinal, investe contra os provocadores, "com qualquer coisa branca na mão". Gustavo enfrenta-o e enfia-lhe o garfo na coxa. O homem solta um berro e, erguendo a acha de pau-branco que trazia, desce-a sobre Gustavo, que se desvia em tempo, recebendo apenas um raspão da cacetada que, mesmo assim, lhe endurece o pescoço por vários dias. João Pacheco apavora-se e falha na defesa do amigo desfalecido. Limita-se a pedir socorro à vizinhança, sendo Gustavo levado à casa dos primos para os primeiros curativos. Seus parentes nada dizem ao pai, avó e tias de Gustavo, enquanto o carroceiro vai tratar-se na Santa Casa. Encerrando sua lembrança do episódio, o escritor cearense dogmatiza: "A violência do Chicote provoca a violência do garfo, que provoca, por sua vez, a violência da acha de lenha. Felizmente pára aí. A violência somente gera a violência." O carroceiro demora no tratamento da ferida que supurou, escapando por milagre do tétano num tempo em que não se conheciam as injeções antitetânicas. Floriano, ao final, abraçou Gustavo, dizendo: "Eta bichinho bom! De garfo, não! Nunca mais! Mas vá tocando o pau, quando puder, e conte comigo que garanto a retirada. Desaforo não se traz para casa. Prega-se na cara de quem o fez. É melhor morrer do que viver desonrado."


Na rua Almirante Jaceguai, ficava essa casa, que era residência de Mister Hull

Ainda tendo por base a casa dos primos na Prainha, Gustavo armou outras, uma das quais narra no capítulo intitulado "O Mascarado" da publicação Liceu do Ceará, segundo volume de suas recordações (ps. 191 a 194). Próxima à residência de seus primos havia uma casinha, esquina nordeste das ruas Almirante Jaceguai (continuação, para o norte, da Ladeira da Prainha), e Dragão do Mar (antiga rua da Praia ou da Alfândega). Nela viviam modestamente duas irmãs de Telésforo de Abreu, Mariana a mais velha, viúva de um veterano da Guerra do Paraguai, e Demétria, solteirona. Telésforo de Abreu era um dos mais ricos habitantes do bairro da Prainha, cuja suntuosa casa, ficava no primeiro quarteirão da rua Boris, face leste, olhando para a sede da empresa que deu nome à essa rua, foi posteriormente ocupada por Bertrand Boris, quando este chegou ao Ceará


Rua Boris do Álbum Vistas do Ceará 1908

Casa Boris - Acervo de Carlos Juaçaba

Floriano, primo de Gustavo, costumava dar boa noite às duas irmãs de Telésforo e aceitar um cafezinho bem quente, certamente torrado em casa, que as duas lhe ofereciam. Determinada noite, sabendo Gustavo que o parente fora ao centro da cidade, escurece o rosto com cortiça queimada, arranja barba postiça, veste roupa do primo e enterra surrado chapéu de feltro na cabeça, indo à casa das velhinhas passar um trote. Dá-lhes boa-noite, como se fosse Floriano, mas, momentos depois, vêem as boas velhas o logro em que caíam e botam a boca no mundo, gritando: "Socorro! Um mascarado!"
A vizinhança corre pressurosa mas Gustavo, bom conhecedor do terreno, esgueira-se em tempo. Estranha-se o desaparecimento súbito do mascarado e nunca se esclarece o episódio. Somente Floriano, no dia seguinte, após tomar conhecimento dos fatos, diz reservadamente para Gustavo, batendo-lhe no ombro: "Foste tu!" E caem ambos na gargalhada.



Foto de 1900, onde vemos, a Casa Bóris, Alfândega e o antigo Porto de Fortaleza

Onde já funcionou a Capitania dos Portos (pequeno quarteirão entre as ruas José Avelino, Almirante Jaceguai, Almirante Tamandaré e Dragão do Mar) levantava-se a velha Alfândega. E, em diagonal com esta (esquina sudoeste das ruas Dragão do Mar, nº 207, e Almirante Jaceguai, nº 93), ficava a casa de Joaquim Amâncio Farias, de quem era carroceiro o português Chico Bracinho, já aqui referido como protagonista do episódio em que se envolveu Gustavo Barroso. Um dos filhos de Joaquim Amâncio, chamado José, integrava o grupo que depôs o Presidente do Estado, Antônio Pinto Nogueira Accioly, em 1912, tendo sido baleado no histórico dia 24 de janeiro daquele ano, de cujo ferimento faleceu. Outro seu filho, de nome Adalberto, foi para o Rio de Janeiro estudar Astronomia com um seu cunhado, Dr. Moritz, Diretor do Observatório Nacional. Vinha passar tempos nesta casa D. Ana Rabelo, tia do coronel Franco Rabelo, guindado à chefia do executivo estadual, em substituição a Accioly, e também destituído em 1914 pela Sedição de Juazeiro, sob a inspiração do Pinheiro Machado e do próprio Presidente da RepúblicaMarechal Hermes da Fonseca.


Continua...

Leia a primeira parte AQUI
Fonte: Prainha, um bairro decadente - Mozart Soriano Aderaldo

domingo, 9 de setembro de 2012

Olhares sobre a praia através da literatura


"Defronte da avenida o mar, na sua aparente imobilidade, tinha reflexos opalinos que deslumbravam, crivado de cintilações minúsculas, largo, imenso, desdobrando-se por ali fora a perder de vista, e para o sul, muito ao longe, a luz branca do farol tinha lampejos intermitentes, de minuto a minuto. No porto a mastreação dos navios destacava nitidamente, inclinando-se num movimento incessante para um e outro, com oscilações 
de um pêndulo invertido."

Adolfo Caminha

Alvarenga e catraia (embarcação menor). Arquivo H. Espínola

Durante o século XVII, a praia era frequentada pelos grupos da elite econômica que desejavam fugir da melancolia e da solidão. Então, a praia passou a ser o local de conversas ou de retiros e meditações e da manutenção ou da busca pela saúde. Nesse sentido, o mar ganha feições terapêuticas e o banho de mar passou a exercer importante papel nos tratamento de enfermidades.

A praia é o lugar que ganha sentido de espaço a partir dos seus frequentadores como: banhistas, turistas, curistas e trabalhadores. Dessa maneira, para compreendermos a praia como um espaço de sociabilidade, podemos nos remeter também aos passeios de Maria das Dores na direção da Praia do Mucuripe, uma das personagens principais do livro 'A afilhada'. Assim, Manoel de Oliveira Paiva aponta suas impressões sobre a praia e seus moradores:  

"...Subiam à Maria das Dores desejos de largar-se por ali afora, curiosamente, como se por trás de cada morro se preparassem novas paisagens, como se novas praias beirassem outros mares e regiões de outra natureza. Arrancharia nas povoações plantadas do coqueiro, nos arraiais de pescadores, nas palhoças metidas na areia como no gelo a cova dos esquimós; espraiaria-se-ia como aquelas ondas de mar, de vento, de céu, de poeira nevada.
A terra parecia findar-se na duna enorme de ponta Mucuripe, de onde descia uma alvura vagamente corada pelos tons das nuvens.
Sob o fundo dos coqueiros da povoação, viam-se branquejarem as velas das jangadas empoleiradas no seco e saídas da pesca: um acampamento de alvas barracas pontudas no poeiramento de crepúsculo. A praia vinha acompanhada, longe de uma linha escura de matos e de sítios, aqui fugindo para trás de um morro de pó, ali aparecendo como os cabelos de uma calva incompleta. E uma duna, de cimácio quase reto, encostando no escuro anil do sul, era como o dorso de um oceano de leite. Da areia porejava uma 
frescura conformativa. Porém, as educandas chegaram até a povoação. A irmã disse que já estavam muito afastadas do Meireles, e que era preciso voltar.  Descansaram num dos botes, jangadinhas a remo para um só tripulante. Maria das Dores, com a irmã, sentaram-se no banco do remeiro. Veio-lhe de súbito um desejo de ir-se naquela jangadinha pelo mar adentro, e puxou a sua ex-preceptora a conversar sobre viagens."

Vista de 1950 - Dunas do Mucuripe (hoje é o Serviluz) e a orla do Meireles sem prédios. IBGE

Para Maria das Dores o passeio pela praia proporcionou-lhe momentos de contemplação e prazer, chegando a enxergá-lo como espaço de liberdade, pois poderia conhecer outros lugares através da viagem pelo mar. O espaço da praia para Das Dores era marcado pela beleza da paisagem natural e as intervenções humanas. Essa era uma visão do século XIX que compreendia a praia como espaço que favorecia o bem-estar das pessoas. Após o passeio, Maria Das Dores passou a observar a praia e o mar com olhos mais sensíveis: “Gostava de avistar os caminhantes, lá por longe, pela beira da praia, meio ocultos pela ribanceira do areal, e fitava agudamente o ponto branco das jangadas na risca do mar”.

A praia, com o decorrer dos séculos, passou a ser utilizada para a manutenção da saúde, fundamentada pelo discurso médico vigente, o que provocou um afluxo de enfermos que buscavam a cura de doenças, em sua grande maioria de membros das classes dominantes, tomados pela tristeza, melancolia e, passaram a ter nos contatos com as ondas, uma maneira de tratamento médico.

No  livro Mississipi, Gustavo Barroso descreve que “os bandos que buscavam as praias movimentavam-se a ida, mal caía à noite, e regressavam para a ceia o mais tardar às oito horas”. Enquanto alguns iam à praia ficavam as senhoras a preparar o jantar, pois diziam que o banho de mar abria o apetite, e também ajudava na cura de doenças como o beribéri, pois tinham a idéia da função terapêutica do mar.
Os médicos e higienistas do século XVI já pensavam na importância do contato com a água do mar e a contribuição à saúde das pessoas através de diferentes ambientes, não somente nas praias, mas também nas montanhas, para fugir das transformações da “vida moderna” que se avizinhava. Para os higienistas, a praia representava limpeza e a diminuição da proliferação das epidemias.
Além da utilização para fins terapêuticos, o mar era um espaço de sociabilidade. Afinal, as pessoas passaram a ter o hábito de se reunirem nas “noites de lua” para ir à praia, pois esse horário era recomendado pelos médicos, principalmente aos indivíduos escravos do conforto, que não sabiam andar senão sobre tapetes; em outras palavras, as pessoas “presas ao luxo”:

Arquivo H. Espínola. Antigo trapiche Ellery.

"As meninas, moças e senhoras, acompanhadas de mucamas e moleques, guardadas pelos homens da casa, de cabelos caídos aos ombros, saia e blusas, arrastando chinelas, desciam pelas ladeiras do Gasômetro, da rua de Baixo, do Boris e da Conceição para as praias da alfândega e do Pocinho. 
Na primeira sobre o costão arenoso, alinhava-se uma dezena de barraquinhas de madeira, construídas por gente de recursos, nas quais se operava a mudança de roupas. Quem não possuía um desses refúgios, despia-se e vestia-se na própria praia, por trás duma empanada de lençóis estendida pelas criadas. A ocasião era propicia para certos namoros breves recados dos coiós, mas com os maiores cuidados, porque pais e irmãos vigiavam ciosamente o mulherio. Os costumes da época obrigavam os homens a se banharem separados das mulheres, que usavam sungas de baeta grossa geralmente vermelha, as mangas chegando aos punhos, as calças descendo até os tornozelos e a gola afogando o pescoço. Não se via, afora a cabeça, as mãos e os pés, um tico de carne."

Segundo Gustavo Barroso, os banhistas precisavam pegar o último bonde de nove horas, descrevendo a maneira que as mulheres saíam do banho e eram acompanhadas por meninotes que carregavam as roupas molhadas que pingavam pelos passeios. Enquanto ocorriam essas movimentações na praia “a lua boiava alta, muito redonda, no céu limpíssimo”.

João Mississipi, personagem principal do romance, guardava na sua memória as paisagens de Fortaleza, proporcionando-nos um passeio pela cidade e ressalta a pobreza marcante da sua cidade natal. Assim Barroso descreveu suas lembranças:

"...dava-lhe o pensamento ganas de voltar rapidamente ao Ceará e rever aquilo. 
Mas logo encolhia os ombros magros ao sentir que dessa paisagem, tão viva na memória, as figuras humanas - mãe e os irmãos - tinham desaparecido para sempre e os aspectos materiais já não eram os mesmos."

Para João Mississipi, as paisagens apesar de terem sido modificadas, permaneceram imutáveis e vivas na sua memória. Mesmo depois de cego, afirmava conhecer toda a cidade de Fortaleza e guardava-a na memória, ressaltando que “agora” precisava conhecê-la através do olfato, devido à cegueira.
Na descrição de Barroso, a partir do Porto ou da “terra firme”, essa era a visão que se tinha do mar:

"Além da alfândega nova, montado sobre estacas, ficava o trapiche da Guardamoria. Nas grandes marés de agosto, as ondas venciam o costão arenoso e se espraiavam debaixo daquela comprida construção de madeira pintada de azul. Corria paralela, vencendo um maceió do poço da Draga, ultima vestígio do projetado porto, uma grande ponte de ferro que unia a Alfândega ao quebra-mar atolado no areal."

A partir desta descrição da região portuária, podemos perceber a visão que os trabalhadores catraieiros tinham do mar através das suas ações cotidianas do trabalho. 

No romance 'A Normalista',  percebe-se a presença marcante do mar na dinâmica da cidade, quando Adolfo Caminha descreve o vai-e-vem de pessoas no Porto e na praia:

"O tempo estava magnífico. Ventava forte e o mar em ressaca atirava sobre o quebra-mar uma toalha de espuma que se desmanchava em poeira tenuíssima irisada pelo sol. A cada golpe de mar havia uma algazarra na praia coalhada de gente. Escaleres navegavam para terra puxados a remo, destacando a bandeira do escaler da Capitania do Porto."  

Foto do Poço da Draga em 1932

Visualizamos a praia como sendo um espaço marcado pelo movimento dos trabalhadores, passageiros e transeuntes, que admiravam o movimento das águas. Para esses trabalhadores o mar podia ser visto como local fundamental para a retirada do sustento da sua família e local de dura rotina de trabalho. Ou seja, ao mesmo tempo em que era fonte de vida, era também de cansaço. Daí a pertinência de afirmarmos que “nada pior que o mar para cansar um homem, por mais forte que seja”.
E o catraieiro, ao transportar carga e pessoas sobre a água, tinha que possuir além da força física, habilidade para esse trabalho, além de depender das condições da embarcação que manobrava para realizar de maneira satisfatória sua função. 
Porém, os fatores abordados anteriormente estavam à mercê do “humor” da natureza, como no caso do barco “São Raphael” que precisou de um “comcerto urgente, ou seja rebaixar as bordas, pois altas como são, não se presta para o serviço de transporte de sal, porque no balanço, bate contra  navios e arrebetam-se como de facto se acham...” (MOREIRA, Trajano. Telegrama Aracaty - Fortaleza, 17 de novembro de 1903. Documentação da Casa Comercial Boris Frères.)

Esses trabalhadores estão diante de mais uma relação de tensão, posto que o mar se apresentava de maneira dual através dos aspectos favoráveis e desfavoráveis na lida diária. O mar, local de onde retiravam o sustento da família, era também marcado pelas batalhas cotidianas para dominar a embarcação e realizar o transporte das mercadorias sem provocar prejuízos ou até mesmo acidentes no trabalho. 
Com as lutas, diante do movimento das marés, o catraieiro, na sua atividade diária, precisava saber lidar com as adversidades causadas pela força dos ventos, elemento fundamental para o funcionamento da pequena embarcação, muito susceptível às ventanias. Como podemos perceber na descrição do serviço de carregamento do escaler “São Raphael” para bordo do Vapor Grão-Pará que foi prejudicado devido às dificuldades impostas pela força dos ventos.

"Na primeira viagem que dei, foi-me precizo fundar a noite para entrar no outro dia, devido ao mar e forte ventania sucedendo porem partirem-se as 2 amarras, e correndo porem grande risco de naufrágio fora da barra, consegui salvar o “S. Raphael”. (MOREIRA, Trajano. Telegrama Aracaty - Fortaleza, 17 de novembro de 1903. Documentação da Casa Comercial Boris Frères.)

Serviço de carga e descarga dos navios, através de alvarengas, 
escaleres e catraia na década de 1930. Arquivo H Espínola.


Apesar das nossas limitações para identificar a visão dos trabalhadores catraieiros sobre o mar de Fortaleza, partimos da idéia de existirem adversidades impostas pela natureza e que estas fizeram parte das experiências vivenciadas pelos catraieiros no Porto, de modo que foram fundamentais para a elaboração de uma percepção sobre a importância do mar nas suas vidas.



“Todo cais é uma saudade de pedra”: Repressão e morte dos trabalhadores catraieiros
(1903-1904) - Nágila Maia de Morais

terça-feira, 17 de maio de 2011

Praça Gustavo Barroso - A Praça do Liceu

A Praça Fernandes Vieira foi inaugurada em 07 de março de 1940, após remodelação e ajardinamento.

A então Praça Fernandes Vieira. Foto em direção ao norte, estas duas casas deram lugar a um bloco de apartamentos. A rua à esquerda é a Avenida Filomeno Gomes. Hoje é a  Praça Gustavo Barroso. O ano dessa foto é entre 1940 e 1943 - Arquivo Nirez

Um vento carregado de mar assobia entre as construções. Corta o calor do meio dia, levantando as folhas deitadas ao chão e também as saias das meninas. Os pássaros cantam enquanto os alunos gritam festejando o fim das aulas. De um canto, pouco mais à margem, vem um cheiro bom de comida feita na rua. Os carros passam, as motos buzinam e os ônibus tomam a frente de todos. O som agudo de uma sirene irrompe no espaço e identificamos o que lhe é particular. Vem do quartel do Corpo de Bombeiros.
Logo, veículos saem rapidamente e enfim reconhecemos a personalidade da praça.




Estátua de Gustavo Barroso - Livro Geografia Estética de Fortaleza de Raimundo Girão

Em 1945, o Liceu do Ceará teve sua administração transferida para as proximidades da então Praça Fernandes Vieira. Ainda que, com o passar do tempo, tenha havido mudança de nome para Praça Gustavo Barroso, sela-se a “vox populi”. Não importando qual o nome – aliás, quem sabe o verdadeiro nome da praça? - todos a conhecem somente como a "Pracinha do Liceu".


Antiga Praça Fernandes Vieira

Próxima ao Centro de Fortaleza, a pracinha do Liceu foi, e ainda é, ponto de encontro de pessoas das mais variadas classes sociais. No passado, recebera em seus bancos alunos do Liceu, hoje personalidades ilustres. Ainda continua a receber os alunos do colégio, mas muitos com perspectivas de um futuro não tão ilustre. 

Aprendizes de marinheiros vindos de todos os locais do país, moradores das redondezas, transeuntes, trabalhadores, idosos e pessoas que simplesmente gostam da praça. Enfim, todos os tipos e estereótipos, passam, sentam, encontram-se, fazem sua história nas calçadas da praça.

Foto do dia 31 de agosto de 1962 - Inauguração do monumento à Gustavo Barroso com as presenças de Luis Sucupira, Raimundo Girão, Albano Amora e Mozart Soriano Aderaldo - Arquivo Nirez

Em 1965, os restos mortais de Gustavo Barroso foram depositados aos pés da estátua, em cumprimento ao desejo do próprio homenageado. Agradecimento: Isabel Pires

Pela manhã, colorem suas calçadas os que começam a preparar as barracas para mais um dia de labor, os esportistas amadores, o jardineiro e os vizinhos do largo. Mais ou menos às 11:30 h, o toque avisa o término da aula. Os estudantes saem em multidão, rapidamente a praça fica tomada pelos que preferem ficar mais um pouco para bater um papo. Os bancos de concreto são ocupados por casais de namorados, os alunos reúnem-se à mesa de
pingue-pongue para o jogo. Para os que querem matar a fome, opção é o que não falta. Há duas barracas na praça servindo lanches, refeições e todos os tipos de petiscos.

A barraca do Silvestre*, localizada quase ao centro da praça e bem de fronte à saída do colégio, é a mais popular. São 25 anos enchendo o paladar de visitantes, famílias e dos trabalhadores das redondezas. O proprietário, Silvestre Neto de Oliveira Mota de 55 anos, é o caixa e afirma: “A praça é tranquila. Nunca fui assaltado. Dificilmente aparece algum menino se queixando de roubo de celular.”
A concentração da praça se volta para a barraca do Silvestre. Ninguém se preocupa com a vestimenta. O que mais chama à atenção são as opções de pratos. As mesas brancas dão lugar aos que saem da fila de pagamento. Os mais despojados estão de boné, sandália rasteira e, quase sempre, ficam sem camisa. Já outros, que trabalham por perto, usam uniformes. Cada um escolhe onde quer ficar.
Um casal maranhense almoça, tranquilo. E, em meio a tanta conversa, não percebe quem está mais interessado na comida: o cãozinho do casal. 

A companhia mais inesperada vem do céu. São os pombos que se alimentam de todas as migalhas que caem ao chão.



As árvores e as plantas, que embelezam os canteiros, recebem cuidados especiais.O responsável por manter o verde da praça é o jardineiro Francisco Monteiro da Silva de 37 anos. Sozinho, ele cuida das plantas e está atento a todo movimento da praça “Sempre some alguma placa. Já roubaram a placa da estátua do Gustavo Barroso e, recentemente, sumiu a placa que informava a última reforma da praça na gestão da prefeita Luizianne Lins, comenta o jardineiro, chamando a atenção para o descaso do policiamento durante o dia. Vestindo um uniforme verde, com a esperança de um dia o descaso acabar, o jardineiro molha a terra e ao mesmo tempo conversa com um menino descalço que se aproxima. Ele não se importa em dar atenção à curiosidade do garoto. A água é espalhada pelos canteiros dando vida às plantas. O dia ensolarado também ajuda o trabalho de Francisco. Quando se sente cansado, senta em um dos bancos, acomoda -se, tira um cigarro do bolso e passa a fumar pensativo. Vira a cabeça de um lado para o outro. Nada o tira a concentração, pois os 10 minutos servem para pensar na vida e contemplar a beleza da praça.


11 de agosto de 1944 - Inauguração do busto do Padre Antônio Tomás na Praça do Liceu

O nome que batiza a praça é em homenagem ao ex liceísta Gustavo Barroso. Advogado, professor, político, contista, folclorista, cronista, ensaísta e romancista, nasceu em Fortaleza, em 29 de dezembro de 1888, e faleceu no Rio de Janeiro, em 3 de dezembro de 1959. Em 8 de março de 1923, foi eleito para a Cadeira n.º 19 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Silvério Gomes Pimenta.
Foi redator do Jornal do Ceará (1908-1909) e do Jornal do Comércio (1911-1913); professor da Escola de Menoresda Polícia do Distrito Federal (1910-1912); secretário da Superintendência da Defesa da Borracha, no Rio de Janeiro (1913); secretário do Interior e da Justiça do Ceará (1914); diretor da revista Fon-Fon (a partir de 1916); deputado federal pelo Ceará (1915 a 1918); secretário da Delegação Brasileira à Conferência da Paz de Venezuela (1918-1919); inspetor escolar do Distrito Federal (1919 a 1922); diretor do Museu Histórico Nacional (a partir de 1922); secretário geral da Junta de Jurisconsultos Americanos (1927); representou o Brasil em várias missões diplomáticas, entre as quais a Comissão Internacional de Monumentos Históricos (criada pela Liga das Nações) e a Exposição Comemorativa do Centenário de Portugal (1940-1941). Em honra à sua memória, ao centro da praça, ergue-se sua estátua que, a mercê do vandalismo e do descaso das autoridades, jaz pichada e sem a placa que lhe identificava.

As instalações do Corpo de Bombeiros, ao lado da praça, comemoraram 76 anos no dia 7 de setembro de 2010. As dependências do prédio vermelho, já serviram e ainda servem, eventualmente, de prisão. Pela livre expressão, a escritora Rachel de Queiroz foi mantida presa na época da ditadura. O preso mais recente é o juiz Pedro Percy que matou um vigilante na cidade de Sobral.



Foto de Chico Monteiro

A frase, “Corpo de Bombeiros Militar – Liceu do Ceará. Somos fortes porque somos unidos”, está pintada na lateral do colégio, em frente ao quartel dos Bombeiros, para lembrar o comando do coronel Leonel Pereira de Alencar Neto - 1995 a 2000. Os 5 anos foram marcados por uma parceria entre o Corpo de Bombeiros e o Liceu do Cearáquando foram ministradas palestras, a pintura das dependências do colégio e a poda das árvores. Com a mudança de comando, a ajuda ficou restrita ao socorro em caso de emergência, ressalta o cabo Sena, de 33 anos.

A vida desbrava na praça. Se durante o dia é parada certa para os que passam em seus arredores, à noite é reduto de uma alegria e lazer insondáveis. De tantas reformas sofridas, a última trouxe de volta o brilho das lâmpadas de néon e o calor de famílias, amigos e namorados que aproveitam o cair da noite para se deliciar com uma agradável brisa sob as estrelas.



Foto do livro Fortaleza Somos nós - 1994

As crianças correm, brincam, andam de bicicleta, jogam bola, ressuscitam os velhos pega-pega e esconde-esconde, mas gostam mesmo é do pula-pula e da cama-elástica. De quinta a sábado, das 17:00 às 23:00, Carlos Henrique faz a festa da criançada. Dono dos brinquedos, ele já está há seis anos na praça e gosta muito de ver a molecada pulando e dando cambalhota.

Bruno Azevedo, 21 anos, filho do vizinho Piauí, formando da Escola de Aprendizes de Marinheiros, vê na praça um ponto de encontro com os amigos. A diversão é garantida nas quadras, onde participa das boas e velhas peladas. “Também é bom usar os equipamentos de ginástica. A gente sai da escola e vem se exercitar aqui. Rola um clima de descontração e uma paquera com as meninas que vêm e vão”, afirma o jovem marinheiro, que está de partida para o Rio de Janeiro, após onze meses em Fortaleza, mas promete voltar. “A cidade é muito boa. Gente bem humorada, brincalhona. Vou voltar sempre que puder!”

A barraca do Silvestre também abre para a vida noturna. Agora, porém, a clientela tem outras exigências. Longe da pressa do dia, as pessoas que vêm à praça querem sentar, conversar, tomar uma bebida e relaxar. Mas a concorrência não dá mole. Barracas de caipirinha espalham-se pela praça e conquistam um público fiel, com o bom papo e a simpatia de quem está por trás do balcão.

Mas ir à pracinha do Liceu e não tomar um caldo de cana com salgado, é como ir à Roma e não ver o Papa! Há dez anos, com um preço sempre convidativo, Aki Lanches faz história.
A lanchonete está bem em frente à praça, especializada em caldo de cana geladinho e feito na hora. Às vezes, a quantidade de clientes é bem maior do que os dois únicos atendentes podem dar conta. “Tem horas que o negócio aqui é estressante. Só tem dois pra atender, receber o dinheiro e fazer o caldo. Quando está muito cheio a gente tem que ficar ligado, pois o pessoal pode ‘vazar’ sem pagar”explica Luís, irmão de Farias, o dono da lanchonete.




“Em geral, aqui fica cheio entre seis e oito da noite. É muita gente mesmo! Nós pedimos o dinheiro adiantado para evitar os engraçadinhos, mas sempre tem um esperto que ‘passa a perna’. O preço de R$ 0,50 por um copo de caldo e um salgado chama muita gente. Principalmente o pessoal de baixa renda”.
Entre salgados, copos, a moedeira e os pedaços de cana, uma mochila pendurada bem ao centro da lanchonete chama a atenção. Com o logotipo da Marinha bordado, a mochila é produto da confecção que lá funciona. “A gente faz todo tipo de fardamentos e acessórios. Mas o que dá dinheiro mesmo é o lanche”, afirma Luís.

A bela vista da praça é complementada pelas construções que a rodeiam. Casarões antigos, com arquitetura colonial, propriedades do patrimônio histórico de Fortaleza, lembram-nos de que no passado, o bairro fora o reduto das elites.

Seja pelas pernas das meninas que desfilam de minissaia, pelos corpos malhados dos jovens que jogam bola, pelas crianças que vem e vão, pelas pessoas que se sentam para colocar a fofoca em dia, a Pracinha do Liceu transborda em vida. O preconceito de que é um reduto de marginais cai quando pisamos em sua calçada. Todos os tipos de pessoas vão à praça, mas sempre com saudáveis objetivos: descontrair-se, relaxar e admirar a beleza que a praça esbanja. De dia ou de noite, aqui se respira vida.


Islene Moraes


* Silvestre não trabalha mais na praça! :/




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