Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Prainha
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



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quinta-feira, 4 de julho de 2019

Fortaleza - Uma cidade colorida (Parte II)

Fortaleza - Junho de 2002

Conhecer o passado não é só estudá-lo , é conviver com ele. Passear em suas ruas, usufruir de seus prédios, aprender a ler sua história, que a cidade deixa escrita em cada canto, em cada pedra, em cada fachada e janela, em cada espaço.

Em Fortaleza o ProjetoCores da Cidade” é uma parceria da Fundação Roberto Marinho e da empresa Tintas Ypiranga, através da Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará. Mas seu principal parceiro é a comunidade local. O projeto tem como objetivos beneficiar comerciantes, moradores e visitantes. Todos os moradores e comerciantes que tem suas casas na área do projeto podem participar. Os interessados recebem o material de pintura necessário e contam com a orientação técnica de especialistas em Restauração de Monumentos do escritório de arquitetura “Oficina de Projetos” para as obras realizadas nas fachadas.

Fundamentalmente a proposta é recuperar elementos de valor e de forma, tal que se revalorizem e retomem sua importância dentro do conjunto, recuperando o ambiente  urbano, de forma harmoniosa e contemporânea.

Imóveis participantes do projeto na época
Fortaleza : Um pouco de sua história

Quando Bernardo Manuel de Vasconcelos, o primeiro Governador da Capitania do Ceará, chegou à Vila de Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção, em 1799, ficou decepcionado. A Vila, fundada em 13 de Abril de 1726, não passava de “um montão de areia, apresentando do lado pequenas casas térreas, incluindo a muito velha e arruinada casa dos Governadores”.

Cartão postal colorizado à mão, do início do século XX. Ancoradouro da Prainha. Acervo de Carlos Augusto Rocha Cruz
O viajante inglês Henry Koster visitou Fortaleza em 1810 e deu um diagnóstico mais preciso. Na opinião dele, seria difícil fazer nascer uma cidade sobre terreno tão arenoso. Além disso, faltava um cais. Apesar do pessimismo do inglês, o ancoradouro da Prainha ficou pronto e contrariando suas previsões, funcionava. Funcionava bem. Foi graças a ele que Fortaleza deixou de ser apenas um areal cheio de casas e iniciou suas atividades econômicas. O reconhecimento oficial do esforço da população local não custou a chegar. Em 17 de Março de 1823, por ordem imperial, a Vila de Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção foi elevada à categoria de cidade com o nome de Cidade de Fortaleza de Nova Bragança e planta desenhada por Silva Paulet, em 1818.

Trabalhadores descarregando algodão no cais da Praia de Iracema em 1935. Foto: Robert S. Platt
Flatcar carregado com fardos de algodão no cais de Fortaleza em 1935. Foto: Robert S. Platt

Descarregamento de fardos de algodão no Porto em 1935.
Fotógrafo: Robert S. Platt
Alguns anos depois de virar cidade, o lugar foi calçado com pedras. Agora, os carros de boi, carregados de algodão, já podiam ir e vir. Era o começo da atividade mercantil que possibilitaria o início do desenvolvimento da cidade. 
Um cais, o calçamento de pedras, o algodão. Parece pouco. Mas com base nisso, no fim do século XIX Fortaleza já mantinha relações comerciais com a Europa. O interesse internacional despertado pelo algodão cearense chamou a atenção do resto do Brasil e logo chegaram os navios a vapor, estimulando os negócios de importação e exportação.

Carregamento de fardos de algodão até o flatcar no porto em 1935. Foto: Robert S. Platt
Porto de Fortaleza em 1935. Fotógrafo Robert S. Platt
Içamento de fardos de algodão via guindaste
no então porto de Fortaleza em 1935.
Fotógrafo: Robert S. Platt
O comércio local começou a se desenvolver. A cidade cresceu, a população aumentou, surgiram os primeiros prédios públicos como a Santa Casa de Misericórdia, a Cadeia Publica e a Assembléia Provincial. Fortaleza não parecia mais um areal. Era preciso um porto maior, cuja construção foi iniciada em 1923.

O surgimento do Porto do Mucuripe transferiu o embarque e desembarque de mercadorias e tirou a razão original de ser da região da Prainha com seus armazéns e edificações. Com o tempo, os prédios do local foram ocupados por escritórios, transportadoras, bares, prostíbulos, ateliês, restaurantes... Mas suas construções mais antigas, como a Casa Boris, a antiga Alfândega ( hoje Caixa Cultural) guardaram aquela historia de 150 anos atrás, do tempo em que Fortaleza começou a deixar de ser um areal desprezado e virou uma cidade de verdade. 


Içamento de fardos de algodão via guindaste no então porto de Fortaleza em 1935.
Fotógrafo: Robert S. Platt
Descarregamento de fardos de algodão em frente a Alfândega na rua Pessoa Anta em 1935. Foto: Robert S. Platt
Pilha de fardos de algodão em 1935. Foto: Robert S. Platt

Fardos de algodão na rua Dragão do Mar, esquina com a Almirante Jaceguai em Fortaleza 1935. Foto: Robert S. Platt

“A luz e a cor, definidores do espaço físico, são como uma musica que acompanha a cidade”.

Critérios de atuação - Avaliação do escritório de arquitetura Oficina de Projetos”:

Preservar o acervo arquitetônico de uma cidade é resgatar sua memória e melhorar a qualidade de vida de seus habitantes.
Restauração é ato crítico. Nenhuma proposta de restauração é neutra. Cabe-nos portanto a responsabilidade de estabelecer um conjunto de critérios que orientem as intervenções, assegurando ao monumento a sua autenticidade, a restituição da sua capacidade evocativa, o seu passado presente.

Dentro do processo de renovação urbana que seguiremos, levamos em conta dois aspectos: a RESTAURAÇÃO - Recuperação de elementos de valor de um imóvel, conhecimento de seus valores arquitetônicos e urbanísticos e REABILITAÇÃO - voltar a fazer aproveitável as estruturas mortas tanto dos bens imóveis, como áreas urbanas.




A área escolhida, tombada a nível estadual, esta limitada entre as Avenidas Pessoa Anta, Almirante Jaceguai, José Avelino e a famosa Rua Boris, no entorno do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, com um total de 56 imóveis entre sobrados e armazéns típicos de regiões portarias.

O conjunto arquitetônico que foi o objeto deste projeto foi um importante sítio de expansão da cidade e que deixou retratado o desenvolvimento econômico de Fortaleza. Hoje dentro deste conjunto foi construído o Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura. O complexo arquitetônico do Centro Cultural tem uma área total de aproximadamente 30.000 m², compostos por Memorial da Cultura Cearense, Museu de Arte do Ceará, Anfiteatro, Planetário, Cinemas para 200 pessoas e Cine-Teatro para 250 pessoas, Salas de aulas do Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura e grandes espaços multifuncionais. O mais significativo é a interação urbana entre dois pontos da cidade através dos espaços do Centro sempre acompanhados por um contexto histórico. 


Pela primeira vez o Projeto Cores da Cidade se enfrenta a um projeto destas caraterísticas onde se contrapõem o antigo com um projeto novo, o Centro Dragão do Mar, com sua nova escala arquitetônica e intervenções a nível urbano, já que foram apropriadas, modificadas e alargadas ruas e praça integrando-as a outras, obrigando a um novo desenho urbano, onde o conjunto antigo mudou totalmente de contexto. 
O componente cromático do Centro Dragão do Mar foi levado em conta como premissa para nossa proposta (Branco nos grandes panos, cinza como detalhes de revestimento de mármores e vermelho nos componentes metálicos). O material utilizado como pavimento também influiu cromaticamente (pedra portuguesa em grandes áreas pavimentadas branca, com algumas áreas em negro).

Dentro do conjunto se definem claramente varias épocas de construção, estilos arquitetônicos e por tanto diferentes níveis de riqueza arquitetônica, sendo o conjunto em sua totalidade de grande valor.


O primeiro passo dentro da metodologia a ser aplicada foi conhecer a história do lugar, suas transformações, evolução arquitetônica, seu contexto e o repertório da cidade onde foi gerado este conjunto. Iniciou-se o trabalho com a elaboração de um inventário arquitetônico e de deterioro para cada imóvel com preenchimento de fichas catalográficas para criar um banco de dados. Nestas fichas, se anotaram as caraterísticas morfológicas de cada edifício, dos seus elementos compositivos (sacadas, fechamentos, postigos, ornamentos) e se executaram prospecções em alguns pontos pré-determinados para garantir as hipóteses sobre algumas das alterações. Foram executados prospecções estratigráficas que nos revelaram as cores originais, que nortearam de forma inequívoca o nosso projeto.

Inicialmente procuramos determinar as regiões mais adequadas à prospecção onde a fotografia foi de grande ajuda. Além do reconhecimento das sucessivas camadas de pintura que o prédio recebeu ao longo dos anos, nosso principal objetivo foi reconhecer as cores mais antigas e por conseqüência a cor original primária, onde foram encontradas as informação sobre a pigmentação empregada, dado que a intensidade era impossível determinar visto que tanto a base como os pigmentos empregados nas tintas eram de inferior qualidade, pois a cor, com o nosso sol, só é original no momento da sua aplicação. Foram utilizadas como método de identificação das camadas de pintura, as técnicas de decape, remoção com solvente e remoção mecânica através de bisturi.

Um dos importantes aspectos que o projeto teve em conta foi a reutilização de materiais e técnicas tradicionais na recomposição de elementos perdidos, e no uso de rebocos com cal.
O objetivo do ato de restaurar, entendido como revitalização é assegurar além da integridade física, a restituição dos seus valores simbólicos e de uma leitura integral do conjunto.


A pintura vem a ser elemento de destaque de um conjunto arquitetônico, daí a importância das cores para personalizar cada imóvel, realçar valores e as caraterísticas formais de cada elemento arquitetônico e de cada espaço urbano. Segundo correspondia, a cor pode utilizar-se para unificar ou individualizar, neutralizar ou acentuar, hierarquizar, subordinar, reforçar a volumetria do detalhe, desvirtuar ou apagar.

Os critérios utilizados para a seleção da gama cromática tendo em conta as premissas expostas foram os seguintes:

O fator estilístico: O estilo arquitetônico se relaciona diretamente com a época de construção e tinha seus códigos. Em nosso caso, edificações erigida a finais do Século XIX e princípios do Século XX: paredes com cores neutros, sendo os detalhes ou relevos destacados. Esquadrias, portas e janelas, cores afins mais escuros. As sacadas foram destacadas e os elementos de serralharia, grades, e portões de ferro em preto verdoso para apagar o reflexo. 

O fator de pesquisa arqueológica: Confirmando o fator estilístico, e elementos de interesse. 

O fator de uso: Para o que foi construído o imóvel. Determinando também o uso de cores.

O contexto urbano atual: Determinando premissas contemporâneas. Alem dos fatores técnicos, estéticos e históricos, outro fator importante que determinou em muitos casos a escolha das cores de cada imóvel foi o desejo e a opinião de cada proprietário, ou inquilino.
Tendo em conta todos estes elementos decidimos que deveríamos optar por cores fortes, jogando com a possibilidade que nos permite a ampla gama das tintas Ypiranga e manter uma coerência cromática, mas sem purismo mal entendido, já que as cidades históricas, incluindo-se o centro de Fortaleza, foram dotadas de uma sutil e vibrante policromia. Tratamos de criar uma gramática da cor, para dar esplendor a sua linguajem. 


Como aspectos gerais respeitamos o uso dos sanefas escuras, o remarque de portas e janelas com tons mais claros, também decidimos valorizar na Rua Boris cada edificação individualmente. Os conjuntos da Rua Dragão do Mar seriam reforçados todos seus elementos componentes nos aproximando o mais possível das cores originais. Os elementos de carpintaria originais foram restaurados. Na Rua José Avelino decidimos que as cores rememorassem o mais possível ao origem de edificações populares que caraterizam esta rua. Na Av. Almirante Jaceguai entre a Rua Boris e a Rua Almirante Tamandaré, onde funcionava antiga Fábrica Myriam, foi restaurada toda a fachada com seus elementos componentes investigados historicamente. Somente tomamos a liberdade de pintar cada modulo da fachada, individualizando cada divisão atual dos espaços interiores. E como moldura mais distante do Edifício do Centro Dragão do Mar.


Leia aqui a PARTE I

Fonte: Ofipro

terça-feira, 2 de abril de 2019

A expansão urbana de Fortaleza: O desinteresse da cidade pelo mar

Do ponto de vista histórico, Fortaleza teve seu crescimento urbano voltado em direção ao sertão. A faixa litorânea fortalezense passa dessa forma alguns séculos sendo ignorada pelos seus citadinos. O mar, ponto de início da colonização cearense, vem configurar-­se nos primórdios do crescimento da cidade, como um local fora de Fortaleza. Este curioso fato de rejeição do fortalezense ao mar deu-­se principalmente pela origem daqueles que chegaram. Fortaleza, até 1799 (ano do desmembramento do Ceará da Província de Pernambuco), era uma vila sem importância econômica. Destacavam-­se naquela época as vilas de Aracati, Icó, Sobral, Crato, Camocim, Acaraú e Quixeramobim. Isso se dava pelo motivo da principal atividade econômica da província ser a pecuária, com a exportação de carne, couro e animais de tração para a zona ­da ­mata nordestina. 



A Zona ­da ­mata começava a se dedicar ao cultivo da cana ­de açúcar, cabendo ao Ceará a venda dos produtos pecuários para a região. Dessa forma, é dado início a movimentação econômica interna no território cearense. Fortaleza vem crescer justamente a partir da elite oriunda do interior da província. Dessa forma, o mar passa a se configurar por muitos anos como um local esquecido, ausente de qualquer tipo de interesse do homem. Se utilizando das plantas históricas de Fortaleza, esta pesquisa vem analisar a expansão urbana da cidade, verificando as mudanças de olhares do fortalezense em relação ao mar e observando a tomada da ocupação do litoral. 



Analisando a consolidação de Fortaleza enquanto capital, Dantas (2002) afirma que a cidade nascera voltada para o sertão, contradizendo sua natureza litorânea, dado as relações no campo cultural e econômico da sociedade com o interior do Estado, configurando-­se dessa forma como uma cidade litorâneo ­interiorana. O litoral passa a ser vislumbrado pela sociedade fortalezense quando em busca de uma vida político ­econômica mais independente, a cidade apresenta-­se como ponto de exportação dos produtos produzidos no Ceará, notadamente o charque e o algodão, através do Porto, implantado em fins do século XVIII, nas intermediações da Praia do Peixe, atual Praia deIracema
A oferta de mercadorias para o exterior já era presente desde meados do século XVII nas principais cidades brasileiras, uma vez que vendiam seus produtos para a Europa e outras capitanias. 

A vila encontrava-se ainda sem infraestrutura básica para o surgimento da economia de exportação vigente em outras capitais. A ausência de um porto em Fortaleza, capaz de exportar os produtos produzidos no Ceará, levava o crescimento de outras localidades, portuárias, como Aracati e Acaraú, passando a colocar o Ceará na rota de exportação do algodão. Essa precariedade infraestrutural de Fortaleza é percebida a partir da análise da Primeira Planta da Cidade de Fortaleza, rascunhada em 1726 por Manuel Francês que apresenta a Fortaleza do início do século XVIII. Desenhada pelo capitão-­mor daquele período, a planta surge com o objetivo de apresentar à Coroa Portuguesa o domínio lusitano sobre a região. O brasão português sobre o forte e as dez cruzes espalhadas pelo desenho, com o objetivo de reforçar a dominação católica no local, vem como uma tentativa de mostrar características que favorecessem a elevação da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção à categoria de cidade. Percebem-­se nessa planta as poucas edificações presentes em Fortaleza, que contava com algumas dezenas de casas ainda não arruadas, o forte (ainda de madeira), uma igreja e um mercado. Nota-­se a provável inexistência do sobrado localizado a leste do riacho Pajeú, dado pelo fato de não haver nenhum relato que afirme a existência do mesmo e por ser um local apático à ocupação fortalezense da época. Essa construção serviria apenas como uma alusão ao crescimento de Fortaleza, proposto pelo capitão-­mor ao reinado português. 


O desinteresse pelo litoral já era percebido, dado pelas poucas edificações na área. Com a construção das linhas de vapores, que percorriam várias cidades do interior com destino à capital, surge as relações econômicas e sociais do sertão com Fortaleza. Outro fator favorecedor dessa ligação foi a construção do porto nas proximidades da Prainha (atual Praia de Iracema). Nesse sentido, Fortaleza toma um novo rumo. 


Na segunda metade do século XIX, Fortaleza toma de Aracati, responsável até então pela exportação dos produtos cearenses, o comando das relações comerciais de boa parte do Vale do Jaguaribe e Sertão Central, devido o estabelecimento das linhas de vapores diretamente para a capital. A planta da cidade de Fortaleza de 1850, organizada por Antônio Simões Ferreira de Farias, e há muito perdida, reencontrada nos dias atuais por José Liberal de Castro, vem reforçar a expansão da cidade para longe do litoral. A área litorânea mostrava uma ocupação irregular, quase espontânea, indicado no desenho de modo um tanto confuso, fato que teria motivado a contratação de Farias para organizar uma outra planta, unicamente referida aquela parte da cidade (CASTRO, 2005). 
Nota-­se também que o riacho Pajeú continuava a constituir uma barreira física à expansão para o leste, embora já estivesse aberta a rua do Norte (atual GovernadorSampaio), delineada por Paulet no começo do século. A rua Governador Sampaio passava a servir naquela época como eixo direto de um futuro crescimento de Fortaleza para o leste. 

Observando a planta de Simões percebe-se também um caminho cruzando o riacho próximo a foz. Essa estrada que vem ligar o litoral oeste do riacho Pajeú ao litoral a leste do mesmo vem a ser a estrada do Meireles (Mucuripe). Essa estrada, um simples caminho arenoso, atuais Rufino de Alencar e Monsenhor Tabosa, encontrava-­se com uma capela (Conceição da Prainha), cujas obras, iniciadas uma década antes, ainda estavam por completar. Desse ponto, a estrada continuava para o leste, atingindo o Meireles, de onde prosseguiu até o Mucuripe, desviando-­se das dunas (CASTRO, 2005). 


No detalhamento da planta de 1850, onde se destaca a Prainha, nota-­se a predominância da paisagem natural, composta por dunas e lagoas interdunares, tendo como sinal de ocupação a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, o quartel da Fortaleza, a Tesouraria provincial e a Alfândega (capitania dos portos). 

O fato de a cidade instalar-­se no litoral permanecia sem contar muito na formação do imaginário social dos seus habitantes. Segundo Gustavo Barroso, o imaginário interiorano continuava a se legitimar por toda Fortaleza, até mesmo aqueles imóveis localizados à beira-mar, faziam referência a presença do homem do sertão e de seus utensílios.

As zonas de praia em Fortaleza caracterizam-­se nesse período como área de escoamento dos esgotos da cidade, vindo a ser ocupada somente em fins do século XIX, com o surgimento das favelas, devido ao aumento do contingente de imigrante pobres do sertão. 



Com Fortaleza apontando como centro político-econômico do Estado, ela passa a despertar o interesse da elite cearense para a fixação de moradia. A urbanização de Fortaleza é também favorecida pela vinda dessa elite, pois com ela surge a necessidade de melhorias infraestruturais e de serviços na capital. 

Percebe-­se o incremento de equipamentos urbanos em Fortaleza, como a construção de um novo cemitério, a criação da Academia Francesa, a iluminação a gás carbono, entre outros. Surge também a Planta Topográfica de Fortaleza e Subúrbios, de autoria do engenheiro Adolfo Herbster. Integrante da diretoria de obras de Pernambuco, Herbster é cedido ao Governo Provincial do Ceará em 1855, sendo contratado pela municipalidade fortalezense. Dois anos depois, sendo solicitado para a elaboração de plantas da cidade. O urbanista traça um plano urbanístico de desenvolvimento para a cidade, dado pela necessidade de expansão àquela época, devida o aumento de sua população, que passa de uma população estimada em 1500 habitantes em 1800, para 16000 habitantes em 1863 e a 21872 em 1872. 


A referida planta possui um traçado xadrez com grandes boulervards, imitando o modelo parisiense implantado pelo Barão de Haussman, e já idealizado para as ruas da capital cearense cinquenta anos antes de Herbster, por Silva Paulet
Além de retratar a cidade, Herbster propôs sua expansão, elaborando cintas de avenidas, circulando o espaço urbano habitado, configurados através dos boulervards do Imperador, Duque de Caxias (logo prolongada para leste), e da Conceição (atual Avenida Dom Manuel), que comporia as vias de acesso à cidade, estabelecendo um modelo secção de vias urbanas em voga até os dias atuais. Dessa forma, percebe-­se que Herbster desprezou o arruamento proposto por Simões de Farias em 1850, evitando cortar o Pajeú em trechos centrais, já ocupados por residências. 


A proposta de expansão de Fortaleza por Herbster fez-se, portanto, pela continuação da Avenida Duque de Caxias, atual Avenida Heráclito Graça. Essa solução visava contornar o riacho cruzando pela Avenida Dom Manuel e suas paralelas, em trechos já distantes da foz. 

Essa nova proposta de expansão da cidade para o sul e para o leste, reforçava o desinteresse de fixação de moradia na faixa de praia pela classe abastada. Nesse período, algumas das mais importantes edificações da cidade foram se instalando próximo ao Forte de Nossa Senhora da Assunção. O Passeio Público, a Santa Casa de Misericórdia, a Penitenciária e a Estação da Estrada de Ferro terminaram por formar uma barreira entre a cidade e o mar, afirmando o desinteresse de uma possível urbanização do litoral. O acesso à praia tornava-­se mais difícil, já que somente o Passeio Público tinha suas vistas voltadas para o mar. É importante ressaltar que mesmo com o Passeio Público estando voltado em direção ao mar, isso não leva a crer numa possível tomada de consciência da sociedade para o mar, já que o andar em que se encontrava mais próximo da praia era reservado aos pobres e miseráveis (o Passeio Público possuía três andares representados pelas classes sociais da época). 




O desinteresse dado pela faixa praiana fortalezense resultava na distribuição de serviços insalubres instalados próximos à zona costeira, como o velho Paiol da Pólvora, o Gasômetro, dos tempos da iluminação a gás (1867), a Santa Casa de Misericórdia, bem como o depósito de lixo da cidade. O espaço entre o mar e essas edificações, passou a ser ocupado pelo comércio de exportação, próximo ao desembarcadouro e o Arraial Moura Brasil, formado pela população sertaneja foragida da seca. 



Nesse contexto, é criado o Código de Posturas, vindo em confluência com as preocupações de ordem higienistas e urbanísticas que tinham por objetivo salvaguardar o decoro, a moral e os bons costumes dados à explosão demográfica decorrente do êxodo rural naquele período. Essa legislação reforçava o desinteresse pela zona de praia, ao afirmar, por exemplo, a regulamentação de que os dejetos fecais não poderiam ser despejados nas ruas, mas sim na Praia do Porto das Jangadas, denominação antiga da Praia de Iracema

Tornava-se evidente o desinteresse do litoral por parte da elite da cidade, de natureza interiorana. Mesmo com os discursos médicos afirmando dispor o litoral fortalezense de excelentes condições climáticas para o tratamento de doenças respiratórias, os abastados ainda não se voltavam para o mar.



Fontes: A cidade e o mar: considerações sobre a memória das relações entre Fortaleza e o ambiente litorâneo - Fábio de Oliveira Matos. 
DANTAS, Eustógio Wanderley. Mar à vista: estudo da maritimidade em Fortaleza. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 2002. 
BARROSO, Gustavo. Terra do sol: natureza e costumes do Norte. Rio de Janeiro: Benjamim Aguila, 1912.  
LINHARES, Paulo. Cidade de água e sal: por uma antropologia do litoral do Nordeste sem cana e sem açúcar. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1992.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Ladeira do André


Fortaleza é metrópole com poucos logradouros de acentuada declividade.
Na rua Almirante Jaceguai, trecho entre a Avenida Monsenhor Tabosa e rua José Avelino, no bairro Seminário, destacou-se – em especial nos anos 60 – o rampadouro conhecido por Ladeira do André.

A denominação da íngreme via deveu-se à bodega, cujo proprietário possuía aquela graça.

Ali, fatos inusitados registraram-se.
Os carrinhos ingleses Prefect e Anglia, para subir, necessitavam do desembarque dos passageiros, que seguiam a pé até o topo e reembarcavam.

 Foto de uma revenda Ford, em 1951. Os carros expostos são Prefect e Anglia. 


O jipinho Crosmobile, modelo 1952, de nosso saudoso professor padre Tito Guedes, para vencer a inclinação, tinha de tomar velocidade desde a Avenida da Abolição.

Ciclistas desciam tranquilamente. Subir? Só levando a magrela no muque. Os
bêbados? Caminhando para cima ou para baixo era um “valha-me Deus!”.

Um curtume usava toda a extensão das calçadas na secagem de peles de animais para transformar em couro. Além da insuportável fedentina, os transeuntes tinham de andar sobre o pavimento de pedras toscas.

Conheci a Ladeira levado pelas circunstâncias.

Junto à Guarda Estadual do Trânsito submetia-me a exame para conseguir a
Carteira Nacional de Habilitação. Dia das provas práticas de direção. Sob o
humor irritadiço do Inspetor Webster, sentado no banco do carona do jeep da Auto Escola Willys, principiaram-se os testes. Baliza e percurso de dirigibilidade na Avenida Dom Manuel, descendo a rua Almirante Jaceguai. Pela mesma artéria retornando. E, no meio, o mando de frear o veículo e desligar o motor.

“Agora, a minha ordem, você liga a ignição, solta o freio de mão e realiza a subida da rampa! Se o veículo recuar ou estancar, está reprovado! Outra chance somente mês que vem! Pronto, execute!”.

Suores frio, morno e quente escorriam pelos caminhos do corpo. Mesmo havendo treinado inúmeras vezes, naquela data, tudo parecia desigual. O carro era outro. Os pedais tinham alturas e folgas diferentes do anterior e o freio de mão teimava em não obedecer, apesar do grande esforço empregado.

Socorri-me de meu padrinho – Santo Antônio de Lisboa – e fui atendido.
Dos doze examinados, quatro foram aprovados. O “... de Tetéu”, como o alcunhavam os candidatos, era tido e havido como o verdadeiro terror dos aspirantes a motorista.


Geraldo Duarte
 
(Advogado, administrador e dicionarista).

sábado, 16 de fevereiro de 2013

A Prainha de outrora... Parte III


Rua Dragão do Mar

Em pequena casa que tem hoje o nº 198 da rua Dragão do Mar e os números 117 a 119 da rua Almirante Jaceguai, moravam as velhinhas Mariana e Demétria, irmãs de Telésforo de Abreu, ocupante da Casa Boris, como ficou registrado aqui quando foi feita referência a uma das peraltices de Gustavo Barroso.


Casa Boris em 1921. Vista fronto-lateral do prédio - Foto Pierre Seligman

Casa vizinha a essa foi uma das residências do pai do futuro constituinte e deputado federal Luis Cavalcante Sucupira, este enquanto solteiro.  No local atualmente se levanta um sobrado (nº 2012 da Rua Dragão do Mar), onde instalada estava a firma H. B. Transportes.


Rua Dragão do Mar

Do lado leste deste prédio havia um armazém de peles e couros de IONA e CIA, empresa do industrial pioneiro Delmiro Gouveia, cujo gerente era o futuro capitalista José Magalhães Porto, que viria a ser tesoureiro da Liga Eleitoral Católica (LEC), pai do médico José Porto Filho (Zebinha) e avô de Dona Miriam Fontenele Porto Mota, esposa do governador Luis de Gonzaga Fonseca Mota. Em 1983 era um sobrado desocupado e a alugar. É o nº 218 da rua Dragão do Mar.


Rua Dragão do Mar

Prosseguindo na direção leste da rua, encontramos o prédio que tem o nº 242. Pertencia a D. Maria Pio, esposa de José Pio, construtor do primeiro bungalow de Fortaleza, na Praça Cristo Redentor.

Na esquina sudoeste das ruas Dragão do Mar (antiga da Praia e da Alfândega) e Senador Almino (antiga do Arrecife) levanta-se o prédio assobradado em que nasceu e viveu por muitos anos o grande intelectual Araripe Júnior. Tem hoje os números 316 e 322 da Rua Dragão do Mar. Merecia melhor tratamento da parte dos poderes públicos.


Araripe Júnior

Em frente, esquina noroeste das ruas Dragão do Mar e Senador Almino, sem numeração, permanece a casa em que morou Francisco José do Nascimento, o "Chico da Matilde", que tomaria a alcunha de "Dragão do Mar" pelo papel saliente desempenhado junto à capatazia quando do movimento em prol da Libertação dos escravos. Triste destino o deste prédio: abrigou, depois, o Cabaré da Emília Costa

Na esquina nordeste das referidas artérias, em casa que tem o nº 345, morava um cidadão que era conhecido pelo apelido de Precabura. Devia ter vindo de lá, o aprazível recanto das imediações de Messejana.

Relativamente à fronteiriça face sul da rua Dragão do Mar, fique assinalado que se eleva a casa de nº 366, em cujo frontispício se acha registrado o ano de 1925.

Adiante, outra casa, de nº 372, da mesma rua, com o ano de 1929 inscrito em sua frente.
Depois, a casa de nº 380, com o ano de 1928 em sua testada.

Podemos ver, a seguir, a casa de nº 418, com a indicação do ano de 1920, naturalmente o de sua reforma porque muito antes era habitada por José Sérgio de Melo Rabelo, primo do Coronel Franco Rabelo e depois sogro do futuro constituinte e deputado federal Luis Cavalcante Sucupira, cuja família morava nas imediações. Nesta casa Sucupira residiu, após casado, até quando se mudou para o Rio de Janeiro, em 1920.


 Luis Cavalcante Sucupira

Em casa que ainda se acha de pé e exibe em sua fachada o ano de 1914, hoje nº 422 da rua Dragão do Mar, morou o major Peregrino Montenegro, casado com uma irmã do jornalista Matos Ibiapina, diretor de 'O Ceará', jornal de forte conotação anti-religiosa e antigovernamental. Filho desse casal é o jornalista Alci Ibiapina Montenegro.

Na casa ao lado dessa última, atual nº 430 da rua Dragão do Mar, morava o carpina Júlio Bernardo da Silva, construtor das primeiras carrocerias de caminhão no Ceará. Estava abandonada, com o quadrado das antigas janelas fechadas a tijolo.

A casa a leste dessa última, hoje nº 454 da mesma rua, abrigou também, enquanto solteiro, o futuro constituinte e deputado federal Luis Cavalcante Sucupira, pois, durante certo tempo, serviu de residência a seus pais.


Rua Itapipoca

Como que fechando a atual rua Itapipoca, antigo Beco do Sabóia, existe a casa de nº 462 da rua Dragão do Mar. Nela morou Ademar Bezerra de Albuquerque, fundador da Aba Filme. Era funcionário do London Bank e fotógrafo amador, depois profissionalizando-se.


Ademar Bezerra de Albuquerque

Segue-se a essa casa uma outra, de nº 464, que servia de residência do pai do futuro comerciante Manuel Gentil Porto, este neto e aquele genro do coronel José Gentil Alves de Carvalho, fundador da família Gentil.

Finalmente, a rua finda com um sítio pertencente a Manuel Porto.

Encerrando esta viagem sentimental por um bairro decadente, que abrigou gente tão boa, aparece-me que prestei algum serviço a memória da cidade, fixando para sempre coisas que a história, preocupada mais com os grandes acontecimentos, jamais guardaria. Convicto me acho de que as informações aqui prestadas são fidedignas, decorrentes de fontes seguras e sérias, uma das quais foi o próprio Luis Cavalcante Sucupira, cuja colaboração sinceramente agradeço.


Mozart Soriano Aderaldo

Fim

Parte I
Parte II

Fonte: Prainha, um bairro decadente - Mozart Soriano Aderaldo

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A Prainha de outrora... Parte II


Avenida Monsenhor Tabosa na década de 60 - Arquivo Nirez

Prosseguindo na jornada e tomando o rumo leste, localizamos na atual Avenida Monsenhor Tabosa uma casa em que residiu a família de D. Nenem Bezerra de Menezes, que se casaria com o respeitável clínico cearense Dr. João Otávio Lobo, hoje nome de rua. E já na esquina com a rua Senador Almino, nos deparamos com um grande prédio atualmente subdividido em várias lojas, onde se situava a residência do comerciante Vicente de Castro, correspondente aos atuais nºs 83 a 139, com outros de permeio.


Seminário - Arquivo Nirez

No primeiro quarteirão, face sul, da Avenida Monsenhor Tabosa, foi construído o prédio do Seminário Diocesano, e, completando a quadra, com o oitão para a Praça Cristo Redentor, foi levantada a Igreja da Conceição da Prainha ou do Seminário.


Monumento Cristo Redentor - Arquivo Nirez

Círculo Operário São José

Quanto a praça, antes de 1915 a sua face oeste praticamente não existia, ocupada por casebres, motivo pelo qual foi fácil levantar o então suntuoso prédio do Círculo Operário São José, uma das primeiras e mais felizes iniciativas do 3º bispo do Ceará e 1º arcebispo de Fortaleza, Dom Manuel da Silva Gomes, que empresta seu digníssimo nome a uma das principais avenidas de nossa terra, que aliás tem início naquele logradouro. No centro da praça, foi erguida, em 1922, uma coluna com a imagem de cristo Redentor no seu ápice, abençoando a cidade com um de seus braços e segurando uma cruz com o outro. Segundo informações recolhidas, essa coluna foi construída em comemoração ao centenário da Independência do Brasil, por inspiração de Raimundo Frota, grande benfeitor do Círculo Operário, que concorreu para a construção do monumento com quarenta mil tijolos. O Círculo tomou a si essa tarefa e convocou os mestres Antônio Machado, Domingo Reis e Severino Moura, este último mais conhecido por "Chuva Branca", todos homens piedosos, vicentinos e terceiros franciscanos. Sem a assistência de engenheiros e arquitetos, o belo monumento provocou no Rio de Janeiro a maior admiração, através de apreciações de técnicos, em revistas especializadas. A coluna foi inaugurada a 7 de setembro de 1922. Enquanto os foguetes espocavam, os quatro novos sinos da Igreja da Prainha badalavam, dentre os quais o "Centenário".


Vista aérea da década de 20 ou 30 - Arquivo Nirez


Na ocasião pôs-se em movimento o relógio de quatro faces, depois retirado por inativo, em consequência da oscilação da coluna, e vendido à Igreja dos Remédios, no Benfica. A coluna teve seus dias gloriosos, costumando Dom Manuel da Silva Gomes celebrar, em dias especiais, na capelinha que lhe servia de base, enquanto a imagem era iluminada à noite até que, durante a 2ª Guerra Mundial, as autoridades militares impuseram a retirada das lâmpadas por questão de segurança pública, com a promessa de voltar ao que era no devido tempo, o que infelizmente não ocorreu. Aos domingo e dias festivos era franqueada a subida até o topo da coluna, através de escada interna em espiral, de onde se descortinava belo panorama da cidade e do mar. A imagem de Cristo Redentor infundia segurança em todos, aos de baixo e aos de cima.


A inauguração do monumento Cristo Redentor em  7 de setembro de 1922 - Livro Terra Cearense 1925

Descendo a Ladeira da Prainha, hoje rua Almirante Jaceguai, com fundos para o quintal da casa do Barão de São Leonardo e formando a esquina sudeste da referida ladeira com a rua do Chafariz, hoje José Avelino, tínhamos a casa de D. Benvinda e "seu" Floriano, primos do grande cearense Gustavo Barroso (menininho ao lado) que, em suas "Memórias", relembra inúmeras peraltices por ele praticadas sob a proteção de quem muito o estimava. Hoje, o prédio tem o nº 480 da rua José Avelino e 174 da rua Almirante Jaceguai. O primeiro volume daquelas deliciosas reminiscências, intitulado Coração de Menino, conta o que se passou numa segunda "Noite das Garrafadas" (ps. 256 a 264), assim chamada porque o irrequieto cearense resolveu reagir contra o chicote do português Chico Bracinho, carroceiro de Joaquim Amâncio Farias, residente em casa do bairro. O lusitano embirrava com os meninos que trepavam na traseira de sua carroça. Uma de suas chicotadas atinge Gustavo e este trama vingança. Arma-se de uma garfo velho que servia para revirar o adubo das roseiras da casa dos primos e convida para a desforra do caboclo João Pacheco, munindo-o de cacete, e o incita a vingar a honra cearense ultrajada por um ultramontano. Seria outra "Noite das Garrafadas". Na hora aprazada, os dois desafiam o português. Este reluta, prudentemente: que fossem para casa e deixassem de provocações com quem estava quieto. Os desafios continuam e o carroceiro, afinal, investe contra os provocadores, "com qualquer coisa branca na mão". Gustavo enfrenta-o e enfia-lhe o garfo na coxa. O homem solta um berro e, erguendo a acha de pau-branco que trazia, desce-a sobre Gustavo, que se desvia em tempo, recebendo apenas um raspão da cacetada que, mesmo assim, lhe endurece o pescoço por vários dias. João Pacheco apavora-se e falha na defesa do amigo desfalecido. Limita-se a pedir socorro à vizinhança, sendo Gustavo levado à casa dos primos para os primeiros curativos. Seus parentes nada dizem ao pai, avó e tias de Gustavo, enquanto o carroceiro vai tratar-se na Santa Casa. Encerrando sua lembrança do episódio, o escritor cearense dogmatiza: "A violência do Chicote provoca a violência do garfo, que provoca, por sua vez, a violência da acha de lenha. Felizmente pára aí. A violência somente gera a violência." O carroceiro demora no tratamento da ferida que supurou, escapando por milagre do tétano num tempo em que não se conheciam as injeções antitetânicas. Floriano, ao final, abraçou Gustavo, dizendo: "Eta bichinho bom! De garfo, não! Nunca mais! Mas vá tocando o pau, quando puder, e conte comigo que garanto a retirada. Desaforo não se traz para casa. Prega-se na cara de quem o fez. É melhor morrer do que viver desonrado."


Na rua Almirante Jaceguai, ficava essa casa, que era residência de Mister Hull

Ainda tendo por base a casa dos primos na Prainha, Gustavo armou outras, uma das quais narra no capítulo intitulado "O Mascarado" da publicação Liceu do Ceará, segundo volume de suas recordações (ps. 191 a 194). Próxima à residência de seus primos havia uma casinha, esquina nordeste das ruas Almirante Jaceguai (continuação, para o norte, da Ladeira da Prainha), e Dragão do Mar (antiga rua da Praia ou da Alfândega). Nela viviam modestamente duas irmãs de Telésforo de Abreu, Mariana a mais velha, viúva de um veterano da Guerra do Paraguai, e Demétria, solteirona. Telésforo de Abreu era um dos mais ricos habitantes do bairro da Prainha, cuja suntuosa casa, ficava no primeiro quarteirão da rua Boris, face leste, olhando para a sede da empresa que deu nome à essa rua, foi posteriormente ocupada por Bertrand Boris, quando este chegou ao Ceará


Rua Boris do Álbum Vistas do Ceará 1908

Casa Boris - Acervo de Carlos Juaçaba

Floriano, primo de Gustavo, costumava dar boa noite às duas irmãs de Telésforo e aceitar um cafezinho bem quente, certamente torrado em casa, que as duas lhe ofereciam. Determinada noite, sabendo Gustavo que o parente fora ao centro da cidade, escurece o rosto com cortiça queimada, arranja barba postiça, veste roupa do primo e enterra surrado chapéu de feltro na cabeça, indo à casa das velhinhas passar um trote. Dá-lhes boa-noite, como se fosse Floriano, mas, momentos depois, vêem as boas velhas o logro em que caíam e botam a boca no mundo, gritando: "Socorro! Um mascarado!"
A vizinhança corre pressurosa mas Gustavo, bom conhecedor do terreno, esgueira-se em tempo. Estranha-se o desaparecimento súbito do mascarado e nunca se esclarece o episódio. Somente Floriano, no dia seguinte, após tomar conhecimento dos fatos, diz reservadamente para Gustavo, batendo-lhe no ombro: "Foste tu!" E caem ambos na gargalhada.



Foto de 1900, onde vemos, a Casa Bóris, Alfândega e o antigo Porto de Fortaleza

Onde já funcionou a Capitania dos Portos (pequeno quarteirão entre as ruas José Avelino, Almirante Jaceguai, Almirante Tamandaré e Dragão do Mar) levantava-se a velha Alfândega. E, em diagonal com esta (esquina sudoeste das ruas Dragão do Mar, nº 207, e Almirante Jaceguai, nº 93), ficava a casa de Joaquim Amâncio Farias, de quem era carroceiro o português Chico Bracinho, já aqui referido como protagonista do episódio em que se envolveu Gustavo Barroso. Um dos filhos de Joaquim Amâncio, chamado José, integrava o grupo que depôs o Presidente do Estado, Antônio Pinto Nogueira Accioly, em 1912, tendo sido baleado no histórico dia 24 de janeiro daquele ano, de cujo ferimento faleceu. Outro seu filho, de nome Adalberto, foi para o Rio de Janeiro estudar Astronomia com um seu cunhado, Dr. Moritz, Diretor do Observatório Nacional. Vinha passar tempos nesta casa D. Ana Rabelo, tia do coronel Franco Rabelo, guindado à chefia do executivo estadual, em substituição a Accioly, e também destituído em 1914 pela Sedição de Juazeiro, sob a inspiração do Pinheiro Machado e do próprio Presidente da RepúblicaMarechal Hermes da Fonseca.


Continua...

Leia a primeira parte AQUI
Fonte: Prainha, um bairro decadente - Mozart Soriano Aderaldo

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