Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Campos de Concentração
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sábado, 7 de outubro de 2017

A seca, o conflito político e a favelização da capital


Os Campos de Concentração fizeram da seca de 1932 um cenário de intensos conflitos, mas outros acontecimentos também influenciaram...

O mundo, na década de trinta estava passando pela maior crise que o sistema capitalista já tinha experimentado, afetando a economia de quase todos os países. No Brasil, o cenário estava sinistro, as oligarquias se viram de uma noite para outra em total desespero: a estrutura do regime abalou-se completamente, a Depressão acabou com a oligárquicaPrimeira República de 1889 – 1930 e levou ao poder Getúlio Vargas, mais bem descrito como “populista nacionalista”.
Neste contexto, ocorreram algumas mudanças políticas no país. Os estados perderam autonomia, e houve uma forte centralização política.

Crédito: TV Verdes Mares

As oligarquias caíram, mas como a “revolução” teria que seguir a cartilha da democracia liberal de reforma do estado burguês, não houve uma mudança na distribuição da riqueza da sociedade. Apesar de não ter ocorrido uma mudança radical em termos de classes sociais, houve uma transmutação política. Passou-se de um “liberalismo oligárquico” para um “centralismo interventorial”. Getúlio Vargas criou as interventorias estaduais, responsáveis para tomarem medidas administrativas, políticas, econômicas e jurídicas sem precisarem consultar as elites locais, embora na prática não fosse bem assim, pois as lideranças locais ainda exerciam influência nos interventores, é claro que de uma forma mais atenuada em relação às oligarquias estaduais.

Carneiro de Mendonça é escolhido para ser o novo interventor do Ceará. Conhecido por ser muito hábil e político, Mendonça faz alianças com as oligarquias decaídas, contrariando, à primeira vista, a orientação dos revolucionários. Todavia, com a aliança, Mendonça conseguia fazer uma gestão mais calma e sem oposição. Apesar de o regime político ter mudado, era necessário agir com cautela, pois muitas oligarquias mesmo não estando no governo poderiam prejudicar o novo interventor, fazendo uma forte oposição ao ponto de perder o cargo.
As relações entre os interventores federais e as oligarquias estaduais eram bastante complexas, tênues, podendo ser rompidas a qualquer momento, o que justificava este malabarismo político. Sem falar que outro episódio norteava Fortaleza em 1932, a revolução constitucionalista, que deixou a situação da seca ainda mais complexa e dividiu a atenção do governo que ora tinha que dirigir as atenções para o sul, preocupado com o movimento das oligarquias “decaídas”, ora tinha que concentrar as energias no combate à seca e manutenção da ordem social. Os discursos ficaram mais eufemizados por parte da elite e do governo, em virtude do momento de tensão que estava ocorrendo em São Paulo. Podemos observar melhor essas mudanças numa matéria do jornal O Povo, que tinha como título “O Momento Político”, que é uma pequena entrevista com o Interventor Carneiro de Mendonça sobre esse período:

O Povo de 11-04-1932

Carneiro de Mendonça fez claramente um discurso de conciliação. Ele demonstra que as coisas serão resolvidas sem radicalismos por parte de ambos os lados, “sem quebra de dignidade”, como sendo possível expurgar as diferenças através da negociação e do diálogo fraternal. Porém, verificamos como ele responde com extrema cautela a pergunta sobre a constituinte, devido ao momento conturbado que se passava no Brasil, podendo afetar diretamente os seus interesses, ou seja, a perda do cargo.

A seca e a situação dos retirantes passaram então a ser segundo plano para o governo e para imprensa, que passou a dar maior ênfase aos acontecimentos do sul até o mês de outubro, quando o movimento em prol da constituinte foi diluído. A imprensa oficial tentava justificar o seu interesse no sul, através da defesa do Golpe de 1930, estabelecendo uma dicotomia norte-sul, como se o “Golpe de 1930” fosse benéfico para o norte e a sua ruptura só favorecesse ao sul.

Retirantes migram para a capital fugindo da seca. Crédito TV Verdes Mares 
Do sertão cearense, assolado por mais um longo período de estiagem, partiam uma multidão de retirantes, verdadeiros refugiados da seca. Vinham do interior do estado em direção ao litoral, atraídas pela possibilidade de trabalho nas obras publicas urbanas.

A “Revolução” garantiria para o Norte uma posição favorável no jogo de forças políticas nacionais, já que a vitória governista ameaçaria, mesmo que superficialmente, o predomínio paulista sobre a política e a economia do País, considerado pelas elites locais como principal fator de sua decadência. O jornal O Povo, portanto, imediatamente aprova a criação do “segundo Batalhão provisório destinado a colaborar militarmente com as forças federais, em defesa da Ditadura, ou seja, da própria Revolução de 30, ora agredidas pelos reacionários paulistas”. A “inoportuna rebelião paulista”, segundo o jornal, “traz, em seu bojo, uma sede de domínio que, se tivesse de ser saciada, acarretaria a desgraça do “Norte”, já que a “hegemonia paulista sempre foi funesta aos nossos interesses regionais”. A “Revolução de 30”, ao contrário, veio “criar para o Norte condições próprias até então desconhecidas.” (NEVES, 2000, p. 136 e 137).

Na capital, eram enviados aos Campos de Concentração.  Crédito TV Verdes Mares 
Tentando evitar a instalação destas famílias nos centros urbanos, o governo decide, como medida de contenção deste fluxo migratório, a instalação de estruturas em locais estratégicos as quais dava o nome de campos de concentração. Este era o termo oficial usado pelo governo, inclusive para tratar do assunto nos jornais da época.

A negligência da imprensa em relação à seca até o mês de outubro foi justificada pelo interesse em manter a continuidade do governo provisório que, segundo acreditavam, favorecia os “interesses” regionais, legitimada como sendo necessária para garantir a autonomia do “Norte”. Enquanto isso, os campos de concentração¹ foram esquecidos na imprensa, apesar das verbas do Ministério da Viação continuar chegando ao estado do Ceará. Porém, mesmo num contexto tão repleto de conflitos políticos, o Estado conseguiu agir de maneira centralizada e organizada.
É possível verificar essa organização e centralização com a implantação das interventorias, que refletiu diretamente na maneira de se combater a seca no estado do Ceará. Os retirantes não estavam mais tão esperançosos de receber viveres, ou qualquer outra ajuda da iniciativa privada. Agora isso ficava a cargo do Estado que controlava a economia.


“Por decreto nº. 796, de 17 de outubro de 1932, foi criada, em substituição ao comissário de alimentação, a comissão de abastecimento público, que ficou incubada da fiscalização de todo o território do Estado”.
Com a criação da comissão de abastecimento público, todo comerciante ficou impossibilitado de reter gêneros alimentícios em seus estabelecimentos ou depósitos, com o intuito de provocar elevação de preços. Aqueles que tentassem infringir, - não foram poucos, os infratores – seria condenado a multar de 500 $ 000 a 1: 000 $ 000, e ao dobro, nas reincidências.” (Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará. P. 65.)

O governo estava agindo de forma mais centralizada, controlando até mesmo as oscilações nos preços dos alimentos. O governo efetivou o combate à seca através da articulação dos seus órgãos, que no caso são: IFOCS (Inspetoria de Obras Contra a Seca), Interventoria Federal que tem a frente o Interventor Roberto Carneiro de Mendonça e Ministério de Viação e obras públicas dirigido pelo ministro José Américo de Almeida. Essa articulação se concretiza através do departamento de secas. Podemos perceber essa relação através de uma matéria do jornal O Povo cujo título era “Plano de socorro às vítimas da seca”. A matéria dizia o seguinte:

O Povo de 21-01-1932

Nitidamente havia uma maior articulação, e também uma maior preocupação em relação à seca de 1932. Esta situação de tensão foi aproveitada pelas classes abastadas, que frequentemente “clamavam” pela urgência de obras públicas, conseguindo atrair cada vez mais recursos do governo federal para implantação do seu projeto de modernidade.

Para o governo as migrações volumosas de pessoas “esfomeadas” era um perigo constante para a capital, ao passo que eles poderiam trazer doenças contagiosas, além de outras “inconveniências” que uma miríade de retirantes mobilizados poderia causar à cidade e ao governo. Foi estabelecido nesse momento um serviço de assistência ao flagelado, que tinha uma preocupação notória com o controle da população e a prevenção de doenças. Sendo interessante transcrever uma parte do relatório do Interventor federal, que mostra como funcionava, segundo ele:

Desde aquele ano, início do grande êxodo das populações sertanejas em face da tragédia climática já declarada, pesando a responsabilidade que nos cabia em função do perigo que representava brusca dessa massa humana inteiramente desprovida de conhecimentos que pudessem interessar à sua defesa sanitária, foram tomadas as primeiras medidas de amparo e salvaguarda. Medindo bem a gravidade e a extensão do problema e não fugindo a ele, deu-se começo a um serviço de assistência e prevenção, que obteve, conseguindo-se com esforço sobre-humano defender o Estado da projeção de epidemias muito mais devastadoras do que as que se apresentavam. De saída a luta restringiu-se aos próprios recursos do Estado e aos pequenos auxílios do governo central, seguida mais adiante pela população da cruz vermelha, vindo tempo após o Ministro da Viação em socorro, por intermédio de um contrato com esta interventoria, elaborando-se assim o projeto definido de organização dos serviços de assistência médicas aos flagelados do Ceará, anexada a D.S.P em virtude de suas cláusulas. Por este acordo os serviços abrangeriam os operários da I.F.O.C.S e os campos de concentração, compreendendo 18 postos, 5 residências sanitárias e 4 hospitais, construídos também de seções matrizes de Direção, contabilidade, farmácia, almoxarifado e expedição, incluída ainda a mantença de 80 leitos destinados às crianças retirantes. Tinham os postos como objetivo os cuidados de prevenção contra doenças contagiosas assistência médica cirúrgica a enfermos e acidentados, a fiscalização dos gêneros alimentícios, o controle de estatística vital e a propaganda e educação sanitárias”. (Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará. P.124 - Pintura: Retirantes de Portinari)


Outro elemento importante é como o governo enxergava o costume dos retirantes, que “eram inteiramente desprovido de conhecimentos que pudessem interessar a sua defesa sanitária”. Podemos notar a comparação em tom de escárnio em relação à higiene dos retirantes. Trata-se de uma contradição aos padrões de assepsia moderna, que a elite fortalezense almejava, sendo, portanto, o papel da Interventoria educar aquela população aos padrões “normais” de higiene.

Prédio da Inspetoria de Obras contra as Secas. Acervo Nilson Cruz

Apesar das migrações não serem uma especificidade da seca de 1932, a peculiaridade desta seca é sua relação com o aprofundamento do processo de favelização da capital, e com o protejo de modernização do governo. Entre 1930-1955 surgiram as seguintes favelas na cidade: Cercado do Zé Padre² no Otávio Bonfim (1930), Mucuripe (1933), Lagamar (1933)³, Morro do Ouro (1940), Varjota (1945), Meireles (1950), Papouquinho* no Dias Macedo (1950), Estrada de Ferro (1954).

*A favela do Papouquinho foi a primeira favela a surgir no Bairro Dias Macedo, tendo origem num processo de invasão de terreno por famílias provindas, em sua maioria, do interior do Ceará.


Cercado do Zé Padre/Mucuripe/Lagamar


A seca acelera um processo de aprofundamento das contradições do espaço urbano de Fortaleza, na medida em que os retirantes, quando chegam à capital, precisam de moradias. Neste ponto entra o projeto do governo, a especulação mobiliária, o poder das classes abastadas, no sentido de afastar os flagelados da zona central e tangenciá-los para as favelas. Pois não era do interesse da elite que essa população ocupasse as áreas nobres da cidade, ou melhor, as áreas mais modernas e urbanizadas. Os retirantes poderiam servir para essa elite como exploração de mão de obra barata no desenvolvimento da urbanização da cidade, mas jamais poderiam servir como “vizinhos”.

Planta da cidade de Fortaleza de 1932, indicando a localização dos Campos de Concentração do Matadouro e Urubu (Apud RIOS: 1998, 74).

¹Segundo a professora Kênia Sousa Rios, do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC) (autora de Campos de concentração no Ceará: isolamento e poder na seca de 1932), os campos de concentração de 1932 ficavam estrategicamente localizados próximos às estações de trem. Assim os retirantes desciam das conduções e eram imediatamente conduzidos aos campos. Os campos se localizavam nas cidades de Buriti (distrito do Crato), Patu (Senador Pompeu), Cariús (São Mateus), Ipu, Quixeramobim, e em Fortaleza nos bairros do Pirambu (chamado Campo do Urubu) e Otávio Bonfim. Estes locais contavam com uma estrutura básica (se é que pode se falar de estrutura neste caso), com posto médico, para onde eram levados os enfermos, cozinha, barbearia, banheiros (insuficientes), capela e casebres ou galpões, divididos em pavilhões para homens solteiros, viúvas e famílias, tudo em estado de precariedade.

² O Cercado do Zé Padre era um imenso areal ao norte do Jardim Japonês, ao sul da Praça São Sebastião, após um açude onde as lavadeiras das redondezas lavavam suas roupas. (Diário do Nordeste)

³ É necessário fazer uma observação sobre a favela do Lagamar. A citação do (Silva, 1992) foi extraída do documento organizado pelo Governo do Estado, intitulado Migrações para Fortaleza em 1967. O problema é que, no referido documento, a favela do Lagamar é datada de 1953, e não 1933 como mostra Silva. O debate do inicio da favela não é uma questão menor. Diferentemente do Mucuripe, Pirambu, Arraial Moura Brasil, que em 1933 já eram favelas com razoável número de moradores, o Lagamar começa a constituir as primeiras habitações após a seca, como demonstra o depoimento da Maria Lagamar. “A favela do Lagamar surge em 1933, momento em que estava sendo construída a BR-116 no antigo Caminho de Messejana, acesso para quem vinha do sul, centro e sudeste do Estado. O terreno era irregular e alagado e foi sendo ocupado por retirantes da seca. "Aqui era só lama, mato e espin... Eu cavei um buraco, formou um olho d´água que era um amor... Aí é que foi chegando gente", diz dona Maria Custódio da Silva, a Maria Lagamar, uma das primeiras moradoras do local, em depoimento ao pesquisador Luiz Távora. Segundo a moradora, o próprio nome do bairro advém dela. A questão é que se os primeiros habitantes do Lagamar começam a chegar no local em 1933, não podemos dizer que ali já se encontrava uma favela. Isso demonstra que a seca de 1932 contribui para a gênese desse processo, e não secas anteriores como Mucuripe e Pirambu.

Leia também:
A Seca e a Modernidade da Capital


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fontes: NEVES, Frederico de castro. A multidão e a História: saques e outras ações de massa no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará./ Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará./SILVA FILHO, Antonio Luiz Macedo e. Imagens da Cidade. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2002./ Biblioo Cultura Informacional

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

A seca e a modernidade da capital



Já no começo de janeiro de 1932, o jornal O Povo noticiava a situação da seca no Ceará, uma das maiores que já ocorreram na história do Estado. A falta de chuvas, morte de gado, migrações massivas e a fome disseminada, foram fatores bastante presentes nesta seca, e que estimulam os sertanejos a saírem de suas cidades em busca de melhores condições para a garantia de sua sobrevivência.

Em 1932, matérias como essa do jornal O Povo não são raras, uma vez que a seca seria o estopim para uma série de conflitos sociais que iam permear a cidade de Fortaleza e o interior do Ceará. Nesta reportagem, lemos que os retirantes saquearam um comboio carregado de gêneros alimentícios, antes de a seca ter sido declarada oficialmente. Isso é resultado do saber acumulado dos retirantes que passaram por experiências de secas anteriores como a de 1877, a de 1915 e a de 1919, chegando à conclusão que naquele momento não deveria mais esperar pela “caridade do governo”, nem pela assistência das relações de compadrio¹ que, em momentos de seca, se mostrava bastante tênue, portanto era necessário agir por conta própria mediante violência se preciso fosse.
Ao chegar o mês de abril, a situação do flagelo ficava cada vez mais recrudescente. Alguns municípios do interior, em especial da região centro-sul, já declaravam estado de calamidade, com parte significativa da população passando fome.


Essa notícia é referente ao município de Icó, mas no mesmo dia o jornal publicou uma matéria semelhante, em relação ao município de Senador Pompeu em que, segundo O Povo, a população da cidade pede a construção do açude patú. Esse discurso da construção de obras públicas como sendo a melhor alternativa para resolver, ou pelo menos atenuar o problema da seca, vinha sendo utilizado desde a época da construção da Estrada de Ferro de Baturité.

Além da açudagem e estradas de rodagem, foi utilizada de maneira mais sistemática nesta seca, outra forma de combate, ou melhor, outra maneira de apropriação da seca, que foi a construção de “melhorias urbanas”. Foram construídas várias “melhorias” na época da seca de 1932 como:

a pavimentação da Rua Major Facundo, a primeira a ser pavimentada a concreto; o prolongamento da Rua Liberato Barroso; a reconstrução da ponte do Jacarecanga; o serviço de arrasamento das dunas para o prolongamento da Avenida Pessoa Anta; a construção do primeiro mictório público; a remodelação da Praça do Ferreira; a construção do posto da cidade; a abertura de uma nova rua a praia de Iracema
Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça 22/09/31 à 05/09/34. 
Arquivo Público do estado do Ceará.

Anos 30

No entanto, essas obras não foram erigidas por acaso, haja vista que: Fortaleza já havia passado por uma série de transformações na sua tessitura urbana. Desde traçado xadrez, projetado pelo arquiteto Adolfo Hebster, dividindo o centro em quatro, boulevard, até a construção de novas ruas, introdução de equipamentos modernos, cinemas teatros, iluminação pública, sistemas de transporte, instituições de saber, como Academia Cearense de Letras e o Instituto Histórico do Ceará, enfim, um conjunto de “melhorias urbanas” visando aproximar Fortaleza da modernidade.

A praça na década de 30

Nesse sentido, a presença dos retirantes na capital mostra-se para a elite e o governo como paradoxal. Se por um lado, eles representavam um contraste ao padrão de modernidade influenciado pelos costumes europeus, e que tinha na França o seu arquétipo. Por outro, eles possibilitavam ao governo edificar o seu projeto de modernização do centro, utilizando a mão de obra barata dos retirantes, e ainda atraindo recursos do governo federal para o combate à seca. Portanto, as classes dirigentes enxergavam os retirantes como uma possibilidade contraditória de lucro e perturbação social.
Enquanto isso a situação do flagelo no Ceará não dava trégua:


A seca era abordada diariamente nos jornais com o intuito de angariar recursos oriundos do Governo Federal. Sempre salientando o perigo de a população ficar sem trabalho, ociosa e os projetos de açudagem e irrigação como sendo fundamental para empregar os retirantes e assim “salvá-los” da funesta ociosidade, que tanto fere os ideais de produção capitalista. A elite de Fortaleza, através dos periódicos, passa a comentar a partir dos seus valores, quais seriam os melhores projetos para  “socorrer” os retirantes, demonstrando sempre uma preocupação exorbitante do controle desses “flagelados” pelos serviços públicos, que, segunda a notícia, caso não se resolvesse o problema da fome, se tornava inevitável um ataque desse povo.


IMAGEM FORTE - Crianças e adultos, vítimas da seca, ao lado da linha férrea que levava para o Campo de concentração de Senador Pompeu.

À medida que as contradições da seca de 1932 ficam mais explícitas, a elite e o governo passam a se preocupar cada vez mais com o controle social, no caso o isolamento dos retirantes no interior do estado. São criados, portanto, sete Campos de Concentração, cinco no interior (Crato, Cariús, Quixeramobim, Ipu e Senador Pompeu) e dois na capital (Urubu e Otávio Bonfim), sendo que esses campos não eram criados aleatoriamente, havia a estratégia de erguê-los nos locais das estações de trem. Pois se os “flagelados” fossem embarcar para a capital, já eram detidos lá. Outra tática era construir os campos perto das obras públicas para evitar que os retirantes ficassem perambulando pelas ruas e, no caso da capital, evitando incomodar a relativa “paz urbana” dos moradores da cidade.
Segundo o jornal O Povo, a concentração de retirantes nesses campos era dividida da seguinte maneira: “6.507 em Ipu, 1.800 em Fortaleza, 4.542 em Quixeramobim, 16.221 em Senador Pompeu, 28.658 em Cariús e 16.200 no Crato, perfazendo um total de 73.918 flagelados”. (O POVO, 30/06/1932).

Depois dos meses iniciais e turbulentos (abril e maio), muitos flagelados não mais chegaram à capital porque ficaram presos nos campos do interior. É importante ressaltar que o sucesso da estratégia do governo de manter os retirantes no interior foi parcial. Pois se compararmos, por exemplo, a quantidade de ração distribuída em Fortaleza em junho de 1932, mês da notícia, ou seja, logo após os meses turbulentos de abril e maio veremos que a ração distribuída era de “46.794”. Já em outubro do mesmo ano, aumentou para “63.803”, chegando a “160. 508” em janeiro do ano seguinte.
Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. 
Arquivo Público do estado do Ceará. p. 320

Retirantes da seca no Passeio Público - Revista Fon Fon

Esse aumento substancial dos alimentos distribuídos mostra que também houve crescimento na população dos campos nesse período. Portanto, a tentativa de manter os retirantes no interior não foi atingida plenamente, porém foi de maneira satisfatória, visto que as populações nos campos de concentração no interior eram exponencialmente mais volumosas do que as da capital. Sem falar que os retirantes que chegaram à capital não representaram apenas “prejuízo social”, pois eles também foram aproveitados para desenvolver a remodelação do perímetro central de Fortaleza. Contribuindo, por conseguinte, com o processo de modernização de Raimundo Girão².

Os campos de concentração fizeram parte de uma estratégia racional e bem elaborada de excluir e isolar uma camada da população da capital. Mas não se tratou de uma estratégia nova, ela foi utilizada na seca de 1877 com o nome de abarracamentos, e pela primeira vez com o nome de campo de concentração na seca de 1915, na região do Alagadiço, chegando a comportar cerca de 8 a 9 mil almas.

Jornal O Povo de 20/06/1932 - Acervo O Povo

O projeto urbano de Fortaleza estava traçado pelo governo, onde os campos seriam construídos próximos aos bairros pobres da cidade. Desta maneira, as classes abastadas não teriam contato com esses flagelados, e após o término da estiagem, caso os retirantes não voltassem para sua cidade natal, já habitaria a periferia da cidade. As populações de flagelados eram vistas pelas elites da cidade, não apenas como pobres. Mas com costumes considerados prosaicos e “indesejáveis”. Pedir esmolas, andar esfarrapados perambulando pelas ruas da capital, fazer bebedeiras, cuspir nas ruas e calçadas, todo esse conjunto de costumes que “chocavam” a população mais rica de Fortaleza, contrária aos seus ideais de modernidade, sem falar o constante perigo de saques, pois os retirantes se organizam coletivamente e saqueavam em momentos de necessidade, ou, até mesmo, aproveitando o ensejo da seca, que dava legitimidade ao ato.
Essas relações sociais em constante perigo de ebulição causavam um medo enorme na elite fortalezense, que não queria ver abaladas as suas relações de dominação e exploração. Portanto, para a elite, seu principal medo era a organização desses flagelados, saqueando, invadindo a cidade, questionando a ordem vigente, era seu pior flagelo. Neste sentido ela se reveste de um discurso de modernidade e progresso para justificar o seu “apartheid” social, que no contexto da seca de 1932 se reverbera num alojamento socioespacial, onde o centro de Fortaleza passa a ser remodelado para atender aos interesses do governo, das elites e da circulação de capital.

Localização dos Campos de Concentração em Fortaleza


¹Compadrio é uma relação baseada no binômio proteção – submissão. Onde o padrinho geralmente o fazendeiro garante proteção ao afilhado, que geralmente é um filho do morador da fazenda. Isso faz com que a família do apadrinhado preste servidão e obediência ao fazendeiro, em troca de proteção. Esta relação é bastante presente ainda hoje no interior do Ceará.

²Raimundo Girão foi prefeito de Fortaleza no ano de 1933, período que ocorreu a maior quantidade de reformas urbanas na cidade.

Leia também:
A Seca, o Conflito Político e a Favelização da Capital

Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza a partir da Seca de 1932'  de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fontes: NEVES, Frederico de Castro. Getúlio e a Seca: Políticas emergenciais na Era Vargas. In: Revista Brasileira de História. – Orgão Oficial da Associação Nacional de História. São Paulo, ANPUH/Humanitas Publicações, Vol. 20, nº 40, 2000./ PONTE, Sebastião R. Fortaleza Belle Époque. Fortaleza: FDR/ Multigraf, 1993./ RIOS, Kênia de Souza. Campos de Concentração Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932. Fortaleza: museu do Ceará, 2001./ SOBRINHO, Tomás Pompeu. Histórias das Secas (século XX). Fortaleza: Batista Fontenele, 1982.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Cem anos da seca (1915-2015)


"O céu, transparente que doía, vibrava tremendo feito uma gaze repuxada. Vicente sentia por toda parte uma impressão ressequida de calor e aspereza. Verde, na monotonia cinzenta da paisagem, apenas um juazeiro ainda escapa à devastação da rama”. A escritora Rachel de Queiroz imortalizou a seca de 1915, mas as palavras da cearense também serviram de retrato de outras grandes secas ao longo desses 100 anos.

Muitas pessoas que sofriam com a seca chegaram à capital e, para conter o fenômeno, centenas de retirantes eram, literalmente, concentrados. Os primeiros campos de concentração foram criados em Fortaleza, um deles no Bairro Otávio Bonfim. O local hoje abriga uma praça e a Igreja de Nossa Senhora das Dores.

“A ideia era muito clara: concentrar, disciplinar essas pessoas. Colocar essas pessoas ali pra que elas não perturbassem a ordem social. Lá havia uma rígida disciplina. Não poderiam sair, tinham, muitas vezes, os cabelos raspados, separavam mulheres de homens. Muitas vezes, o governo que administrava os campos. Havia cadeias pra punir quem agisse com indisciplina. Então, era um modo de controle”, explica o professor e historiador Airton de Farias.


Veremos agora um conjunto de registros fotográficos de vítimas da seca. O autor das fotos é  Joaquim Antonio Corrêa, cujo ateliê ficava em Fortaleza.
Esse conjunto de fotografias pertence atualmente, ao acervo da Biblioteca Nacional. São imagens chocantes, em formato de 'cartes de visite', e retratam crianças, homens e mulheres desnutridos e maltrapilhos, de aparência doentia, e, muitas vezes, as fotos, feitas em estúdio, trazem textos rimados que se referem à miséria.



"Tenho fome! Tanta fome
Que já não me posso erguer!
Miseria que me consome,
Faze que eu possa morrer!"

"Foi o céu inexhoravel
Contra á mim, contra á meus paes,
Deixou-me na orphandade
Entregue a dores e ais!"

"Desgraçado! Assim creança
Pae, mãe e irmãos perdi!
A miseria á mim se avança
Abre as garras e sorri!"

"Triste orphão da ventura
Só dores no mundo achei
Dá-me oh" Deus a sepultura
Onde a paz encontrarei!"

 ILEGÍVEL
"...Foi lusidio e feliz!
Mas hoje é pallido espectro
Que a existencia maldiz"

"Coberto de immundos trapos
Dormindo exposto ao luar
Falta-me n'alma o talento
Té mesmo para chorar!"

"Porque me tornas cadaver,
Miseria, que me assassina?
Porque plantas tantas dores
Na minh'alma inda menina?"

ILEGÍVEL
"Vive exposto o corpo meu!
Meu pae e mãe, meus amores!"
ILEGÍVEL

"Deixei, por amôr a vida
Me roubarem o pudor!
E hoje mulher perdida
Morro de fome e de horror!"

"O filho, como uma furia
Ergueu-se a um pão pedio!
Pobre pae, ante á penuria
Tremeu de fome e cahio!"

"Eu sou cadaver esguio
Que por entre os vivos erra;
Meu-corpo tomba sombrio
No solo da ingrata terra!"

"Tão bello na face outr'ora
Eu tinha os risos dos céus!
E myrrada pelle agora
Cobre mal os ossos meus!"

(Obs.: Os textos das fotos estão com a grafia da época)

Em 1915, uma seca severa fez com que os sertanejos se dirigissem para as grandes cidades, desta feita o Governo do Ceará, optou por criar o primeiro "campo de concentração, no Alagadiço, hoje Otávio Bonfim, ao oeste da cidade de Fortaleza, lá foram "abrigadas" mais de 8 mil almas a quem eram fornecidas alimentação sob a vigília constante de soldados. Mais uma vez (sim, essa infelizmente não foi a primeira e não seria a última seca que tivemos) foi estimulada a migração para a Amazônia e o campo (curral humano) foi desativado em novembro do mesmo ano.

Decididamente aqueles não seriam anos bons para os cearenses. Depois das duas guerras de 1912 e 1914, seu Jader e sua família iriam assistir em 1915 a pior seca de todos os tempos. 

 
Relatório dos Presidentes dos Estados - 1916



Créditos: G1 Ceará/ Brasiliana Fotográfica

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