Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Ceará Tramway Light
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Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O Centro no "centro" das atenções - Retirada dos trilhos dos bondes (Parte II)


Praça do Ferreira na década de 30.
No projeto de urbanização de Raimundo Girão, a retirada dos trilhos dos bondes da Light era imprescindível, principalmente em se tratando da Praça do Ferreira, cartão postal da cidade. A relação da companhia com a prefeitura, que já não era boa, ficou num patamar de tensão ainda maior:

Jornal A Rua de 16 de Dez. de 1933 
Após essas exigências e impasses, um funcionário da Light foi tomar satisfação com o Prefeito, explicando que não tinha condições de funcionar desta forma. Porém, a mediação encontrada por Raimundo Girão foi permitir que os bondes pernoitassem fora da estação. O chefe da municipalidade havia deixado claro que “a modernização” das ruas e das praças estavam no topo da hierarquia, e qualquer empresa deveria se adaptar a esse projeto.


Vista aérea da cidade na década de 30. Vemos a chaminé da Usina Light, a catedral metropolitana e o Gasômetro. Arquivo Nirez
Foto da Rua Major Facundo com vista da
Praça do Ferreira em 1937
O governo compreendia a importância de controlar os transportes, como parte de um complexo social maior que ia desde o esquadrinhamento das ruas em traçado xadrez, para evitar barricadas e facilitar o tráfego de mercadorias e transeuntes, até o isolamento e marginalização dos pobres em bairros afastados do perímetro central. Enquanto a Light, ou qualquer outra empresa, não aceitassem as regras do jogo, os prejuízos só tenderiam a se elevar até a falência. Pois o Estado brasileiro, com a ascensão de Getúlio Vargas no poder, não estava mais entregue “a mão invisível do mercado” (a experiência de 1929 foi muito educativa sobre os problemas que “tal liberdade” poderia causar), mas, trava-se na época de um Estado interventorial, e que tudo queria controlar.
Percebemos a dimensão desse controle numa matéria do Correio do Ceará, referente ao trânsito de animais pela cidade:


Vendedores em seus burricos - Parque da Liberdade
Todos sabem que não se pode contar com o abastecimento de água do Acarape que falta desde as primeiras horas do dia até a noite. É imprescindível que se recorram aos vendedores ambulantes e se estes não podem transitar com seus burricos como é que vai ser?[...] A situação é, pois, desesperadora para os que ficam sem o precioso líquido do abastecimento público e não podem comprar porque é proibido animais transitarem pelas ruas calçadas a paralelepípedo ou a concreto. 


Vendedores de água no início da Rua Marechal Deodoro,
esquina com a Domingos Olímpio. Arquivo Nirez
[...] Se se permite que animais puxando carroças com rodas de borracha penetrem nas ruas, porque impedir o trânsito deles só porque não estão atrelados a um veículo? A Avenida João Pessoa é calçada a concreto em toda a extensão do Benfica a Porangaba. Entretanto, por ali transitam, sem proibição nenhuma, animais de toda a espécie, sem que dali resulte qualquer dano ao calçamento. Reflita bem o Sr. Prefeito sobre os embaraços que essa medida ocasiona ao comércio e a população em geral e verá que convém revogá-la em bem do público e para maior simpatia da administração municipal. (CORREIO DO CEARÁ, 04/10/1934 p 01).

Praça do Ferreira na década de 30. Arquivo Nirez
A prefeitura proibiu os animais transitarem em algumas ruas do Centro da cidade que foram calçadas a paralelepípedo ou a concreto, alegando que poderia danificar o material do calçamento. Sendo que boa parte do abastecimento de água, venda de diversos produtos como frutas e outros gêneros de primeira necessidade, ainda eram realizado por ambulantes conduzindo as mercadorias nos animais. A contradição aumenta quando o periódico cita que da Avenida João Pessoa a Porangaba, os animais transitam sem nenhuma fiscalização, e mesmo assim não causaram dano algum no concreto. Na verdade, o que podemos inferir dessa medida da prefeitura, é que ela queria afastar os animais do perímetro central, escopo principal da modernização, lócus do comércio e anfiteatro do desenvolvimento, pois, como a Avenida João Pessoa ficava um pouco afastada do centro, sem falar da Porangaba (Atual Parangaba), que era ainda mais distante, não carecia de tanta fiscalização.


Praça Clóvis Beviláqua (Ainda sem a Faculdade de Direito) em 1931.
Arquivo Nirez
Dessa forma, animais transitando pelas artérias centrais causariam contrastes com a remodelação do centro, praças reformadas, introdução de novos cinemas, teatros, clubes recreativos, toda uma série de equipamentos modernos que estavam sendo instalados em Fortaleza na época. A modernização não foi apenas um projeto econômico e político, mas também estético e cultural. 


Praça do Ferreira em 1934. Vemos ao lado do Cine Majestic, o Cine Polytheama. arquivo Nirez
O centro de Fortaleza foi remodelado como síntese de diversos processos convergentes e antagônicos. Só tem sentido em pensar nas reformas materiais das ruas, praças, avenidas, modernização do sistema de transporte, se comparado com a ausência dessas infraestruturas nos bairros mais afastados, nas favelas e nos subúrbios. O que houve no centro da capital foi uma dialética da modernização, uma relação tensa entre o todo e as partes, entre os anseios da população e o projeto de Raimundo Girão, entre a remodelação de algumas ruas e o total abandono de outras, entre uma Fortaleza que se queria moderna ao preço de expurgar costumes e valores rurais.

Veja AQUI a parte I

Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: http://memoria.bn.br/Arquivo Nirez

domingo, 19 de novembro de 2017

O Centro no "centro" das atenções - Retirada dos trilhos dos bondes


Fortaleza nos anos 30. Acervo de Carlos Augusto Rocha

Praça do Cristo Redentor com a rua Rufino de Alencar
ao fundo. Foto dos anos 20. 
O Sr. Governador da cidade deveria lançar as suas vistas para a Rua Rufino de Alencar, mais conhecida por Ladeira da Prainha. Por ali ainda não se passou o fio de pedra. Nem sequer o chefe da edilidade teve a boa vontade de mandar acertar o calçamento pontiagudo daquela via pública. Parece que o mesmo tem contrato com alguma fábrica de calçados. Os pisos dos passeios têm aspectos de uma escada. Uma verdadeira “montanha russa”....Cheia de altos e baixos. Os transeuntes vencem, de ida e volta aquele trajeto com maior sacrifício. Ora, a Rua Rufino fica situada no centro da cidade, ao lado do palácio Arquiepiscopal. Não se compreende, portanto, o abandono em que o tem deixado o Mairé da cidade. Além da falta de estética, logo no começo da Rua, no bifurcamento da Praça da Sé com a Rua São José, levanta-se um grande areal. Se o Sr. Prefeito tem olhos para ver a Praça do Ferreira, parece se descuidar do resto da nossa capital. (Jornal A Rua, 27/10/1933 p. 03).

Rua Major Facundo, 1930. Arquivo Nirez
Na década de 30 (se bem que hoje não é tão diferente assim....), esse “descuido”, ou negligência com os demais logradouros da cidade não era por acaso. A remodelação da capital, ao contrário do que pensavam alguns jornais citadinos, não se devia à falta de planejamento urbano, mas justamente o oposto. Existia um planejamento que beneficiava uma parte da cidade, tendo em vista principalmente o desenvolvimento do comércio e dos chamados bairros “aristocráticos”. A urbanização do Centro expressava interesses de dirigentes políticos, e de setores da classe capitalista. Não se tratava de um processo caótico e desordenado, mas de uma lógica que tinha como prioridade atender a demanda do Capital, seja ele ligado ao comércio, construção civil, transporte, importação e exportação. Não podemos entender o processo de urbanização de Fortaleza, se não considerarmos o papel que exerceu a necessidade de acumulação de capital, refletindo até na prioridade de reformar, equipar e sanear alguns bairros, em detrimento do abandono de outros.

Imposto sobre os meios fios. Jornal A Razão 11 de junho de 1929
A urbanização de Fortaleza foi resultado de um campo de disputas, de uma luta entre os diversos setores sociais. No caso do governo, estava claro que se tratava de um projeto, pois na época foi criado até um imposto sobre os meios fios, e quem não pagasse no prazo, acarretaria multa. Portanto, o governo crivava fontes de rendas voltadas, exclusivamente, para a construção de ruas. Mas as obras nem sempre correspondiam às expectativas, e às vezes eram motivos de chacotas na imprensa.

Rua Guilherme Rocha, final da década de 30.

Jornal A Razão de
25 de Fev de 1938
Por toda a parte observa-se uma falha no trabalho. Ora, é um bueiro, ora é um arremate mal feito, deixando, as vistas do público, o aspecto do desmantelo prefeitural. O paralelepípedo que estão sentando é tão áspero que tem a aparência do antigo calçamento. Corre até uma pilheria a respeito. Um paraense ironizando o trabalho, disse que aquilo não era paralelepípedo, mas cearenselepípedo. Ontem, ao passarmos pela Rua Dr. Pedro Borges, verificamos que o concreto, que se está fazendo, naquele trecho, nas mediações da Padaria Italiana, é trabalho de tapiação, pois que o concreto é sentado sobre uma camada de areia. Pelo menos, é o que se nota nas extremidades. De modo que a espessura da massa é diminuta, não correspondendo ao que ficou estipulado da firma empreiteira com nossa edilidade. (IDEM, 10/11/1933 p. 01).

À medida que a remodelação da cidade ocorria, as críticas na imprensa acompanhavam nas mesmas dimensões. Todavia, também existiam elogios sobre o aspecto estético da cidade, no sentido de uma urbe moderna, bela, nos parâmetros da “civilização europeia”. Os adjetivos sempre salientavam os equipamentos modernos, a arquitetura dos prédios, o desenvolvimento do comércio, a suntuosidade das sedes administrativas, os recursos de transporte e iluminação, todos apresentados como indispensável e essencial de um estereótipo de cidade moderna. Não obstante, mesmo os periódicos que teciam críticas “cauterizantes” à administração de Raimundo Girão, faziam reverência a Fortaleza como símbolo da modernidade.

Jornal A Razão de 10 de Nov de 1937
Jornal A Razão

É empolgante. Possui prédios colossais como o “Hospital de Santo Antônio dos Pobres”. O cinema como não há igual no sul do Estado; o prédio dos Correios e Telégraphos; o luxuoso Palacete Benevides; sedes da Associação Comercial e da União Artística; a igreja matriz; estação da R.V.C.; Usina C. I. D. A. O; Villa Margarida, Prefeitura, e outros. Duas lindas avenidas. Iluminação elétrica de primeira ordem. (O NORDESTE, 17/03/1934 p. 06).

Jornal A Razão de 10 de Março de 1938
Jornal A Razão
Trata-se de mais um dos paradoxos da modernidade. A elite que pertence ao local não deseja representá-lo como arcaico, prosaico, ou obsoleto. A modernidade adquire tanto um sentido denotativo, de expressão material das ruas e prédios da cidade, do novo suplantando o velho, como uma acepção conotativa, onde a população sintetiza valores “eurocêntricos”, desejando adquirir costumes e culturas de outro padrão societal. O moderno era almejado como um horizonte a ser seguido, ao qual toda a população citadina deveria se adaptar sem nenhuma denegação. Portanto, além de uma pavimentação nova e esteticamente bonita, a capital precisaria ter um sistema de transporte urbano novo e eficiente. A “mobilidade urbana”, para usarmos uma expressão hodierna, foi um dos problemas da modernização de Fortaleza, protagonizando lutas titânicas entre a prefeitura e a Light¹, empresa que exercia o monopólio do transporte na época. Uma dessas lutas ocorreu devido à reforma da Praça do Ferreira, e a prefeitura, no caso, criou um decreto para retirar os trilhos da Ligth, pois estaria atrapalhando a tal reforma e, segundo o prefeito, também estava causando congestionamento no local.

Rua Major Facundo no final da década de 30.

Jornal A Razão de 1931
Isto é o cúmulo. E falta de senso político. O chefe do executivo municipal deve convir que os trilhos da Light não podem ser removidos de um momento para o outro, e ao sabor de um desejo pessoal, da Praça do Ferreira para outro qualquer ponto da cidade. Quanto a rescisão do contrato, é pilheria que não vale a pena nem falar. Nós não temos alcance para capital de tão arrojada empresa. Salvo se desejamos voltar aos antigos bondes de burro.... (A RUA, 29/08/1933 p. 03).

O jornal A Rua, como o veículo que fazia oposição aberta ao prefeito sai em defesa da empresa, alegando arbitrariedade por parte de Raimundo Girão, que tinha ameaçado romper o contrato com a Light, caso ela não retirasse os trilhos da Praça do Ferreira. Porém, a problemática era muito mais complexa, tratava-se, além da questão da referida praça, uma discussão sobre o monopólio dos transportes urbanos. Era uma estrutura arcaica, para um capitalismo que “necessitava de concorrência”. Sem falar que a cidade estava se expandindo, a população aumentando, os subúrbios crescendo, e alargando a distância dos trabalhadores para os seus locais de trabalho. O transporte não poderia ficar fora do projeto de modernização do Estado. Neste sentido, a intervenção do Estado no sistema de transporte se tornara inevitável. O que poderia variar seriam os aspectos dessa intervenção.

A última nota da prefeitura proibindo que viajem mais de 4 passageiros nos bondes da Light, não traz nenhum benefício a população. Ao contrário, acarreta prejuízos. As classes pobres não se utilizam dos ônibus, já pelo preço, que é mais caro, como também porque eles reclamam um traje mais descente. Resulta daí que o número de veículos, em determinadas horas do dia, é insuficiente para lotar os passageiros, e estes ficam naturalmente prejudicados com a nova invenção da prefeitura. Se tal providência é posta em prática com o objetivo de ferir a companhia inglesa, vá lá, nada temos a ver com isso. Acreditamos, porém, que não há de ser com esses processos que a municipalidade consiga que a Light retire os seus trilhos da Praça do Ferreira. (IDEM, 31/10/1933 p 01).

Existiam na época dois tipos de transporte que atendiam a maioria da população, os bondes e os auto-ônibus. Os bondes representavam o passado, o velho, com suas instalações antigas, serviço precário, com excessivas reclamações dos habitantes da urbe. Já os auto-ônibus, surgiram como o moderno, mais novo, mais flexível, visto que não necessitava de trilhos fixos para se locomover. Mais rapidez no transporte do trabalhador para o seu serviço, refletindo as necessidades de uma cidade que crescia e se desenvolvia.
A contenda com a Light figurava, além da questão do monopólio dos bondes, a necessidade de substituir um transporte obsoleto por um mais moderno. Por isso, acreditamos que Raimundo Girão restringiu os números de passageiros dos bondes, com o seu intuito de diminuir a quantidade de lucro da empresa, e incentivar a propagação do auto-ônibus, uma vez que a Ligth detinha o monopólio dos bondes, mas não dos auto-ônibus. Raimundo Girão também estava consciente da difícil fase que passava a empresa inglesa, pois a maioria dos países ainda estava, de maneira lenta, se recuperando da crise de 1929, e a Light não era “imune” a essa situação.

A fotografia dos anos 30 nos mostra um bonde elétrico da Ceará Tramways, Light & Power em Fortaleza. Está perto da Praça do Ferreira, na rua Pedro Borges esquina com Floriano Peixoto, em Frente à Mercearia Leão do Sul
Ônibus Ford - V8, ano 1936, carroceria de madeira,
fabricado em Fortaleza.
Pensará a municipalidade que Fortaleza é um ótimo campo de exploração para os serviços de transporte a cargo da empresa inglesa? Jornais de Londres anunciam, conforme estamos informados, exatamente o contrário. Dizem que as ações (debêntures) da Light, cujo valor nominal é de 100, estão sendo cotadas na bolsa da capital inglesa ao preço de 24,5. A notícia, a ter o fundamento que á mesma atribuímos, demonstra eloquentemente que a companhia estrangeira não está disposta a agravar uma situação já precária. Se a prefeitura quer tirar os trilhos da Praça do Ferreira sem ônus para empresa, deve fazê-lo. Sobrecarregando a companhia de maiores despesas é que não vai, salvo medidas vexatórias que de certo não hão de ser lá muito aconselháveis....(IBIDEM, 07/11/1933 p 01).

Fortaleza em 1930
Os auto-ônibus na Guilherme Rocha
Diante do texto do jornal, é quase certo que o prefeito sabia exatamente como andava a companhia, o que justificava ainda mais as suas medidas antilucrativas para com a empresa. Além do mais, o próprio jornal já modificou o seu discurso, edulcorando um pouco a linguagem, pois, “se a prefeitura que tirar os trilhos da Praça do Ferreira deve fazê-lo”, mas sem acarretar um “ônus” para empresa. Porém, era provavelmente esse ônus o alvo de Raimundo Girão. A Light passou muito tempo sem investir em equipamentos novos e renovação da frota, sem falar que “trilhos” não combinavam com o projeto urbanístico do governo. A relação de tensão da prefeitura com a companhia era bem mais complexa do que se supunham os periódicos da época, pois representavam dois projetos antagônicos, em várias dimensões: monopólio/concorrência; bondes/auto-ônibus; trilhos/pavimentação em concreto; e todas essas contradições tinham como pano de fundo o projeto de modernização do Estado. O que convergisse para o desenvolvimento do projeto seria mantido, ao mesmo tempo em que, os obstáculos seriam “extirpados” do meio do caminho da “modernidade”.

Capital cearense na década de 30. Arquivo Nirez
¹ “Concessionária do serviço de luz, força e viação elétrica no município de Fortaleza, a The Ceará Tramway, Light and Power C, Ltda, tem seu escritório na Rua Barão do Rio Branco nº 844. Tem como gerente o Cel. Francis Reginald Hull, e sub-gerente o Sr. João Batista de Paula. A extensão atual de sua linha é de 20 kms, tendo 38 bondes no tráfego, e 11 auto-ônibus. O número de passageiros transportados, nos bondes, no último ano 16.800.000, em ônibus 2. 160.000. Tem 7.200 consumidores de luz, e 480 de força”. Almanach administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1934 confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 257


Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará./http://memoria.bn.br/Arquivo Nirez

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Fortaleza antiga - Rivalidade no transporte coletivo na década de 20 (Parte IV)


4º Round


"Art.1º Fica o Presidente da Província autorizado a conceder à Companhia Carril,  a garantia de juros de 7% ao anno sobre o capital despendido ou que vier a despender na construcção de linhas de carris de ferro nas ruas da capital e da linha férrea para Mecejana, até a somma de tresentos contos de réis.
Art.2º A garantia de juros será por espaço de vinte annos, e começará do dia em que for aberta ao trafego qualquer linha ou secção da linha."

(Lei Provincial nº 1967 de 17 junho de 1882)

Resultado de imagem para Ferro Carril do Ceará
Como vimos, além de todos os benefícios e facilidades, a empresa Ferro Carril do Ceará ainda desfrutou da chamada “garantia de juros” delimitadas na Lei nº 1967 de 1882.
Essa garantia de juros era um resguardo para o capital do empresário que era investido.
À Ferro Carril foi concedido uma garantia de juros de 7%, significando, assim, que, quando a empresa aplicasse seus dividendos na construção, reforma e exploração dos trilhos e, por ventura não obtivesse o lucro de 7% sobre o valor anual do seu capital, os sócios proprietários poderiam procurar o governo, que se responsabilizava por ressarcir a sua diferença. Em outras palavras, o governo adotava uma política de dar aos investidores uma segurança na aplicação do capital investido, que de certa forma seria revertido aos cofres da empresa. Se o prazo de concessão era de 50 anos, e as garantias de juros eram de 20, isso significava que em quase metade dos anos de trabalho da empresa essa não teria despesas no quadro do seu investimento.


Reminiscências... 
A Vassoura: Orgão da limpeza da rua e dos bolços (Ce) - 1898

A relação da companhia de bondes com as autoridades públicas não se limitou ao transporte de passageiros. Em decorrência do precário serviço de circulação de veículos, a Câmara Municipal assinou um convênio com a Ferro Carril, para que esta conduzisse as carnes verdes do matadouro ao mercado público da cidade (Lei Provincial nº 17 de 12 de agosto de 1880)Esta foi mais uma iniciativa que facilitou o trabalho da empresa, assim como aumentou os seus ganhos e, em contrapartida mais uma vez aliviava a prefeitura municipal de Fortaleza de não ficar responsável pela condução dessa mercadoria.
É interessante perceber que a lei exposta, uma lei provincial, aprovou um contrato feito entre a Câmara Municipal com a Ferro Carril. Esse transporte coletivo, mesmo que fosse relativo a Fortaleza, era regularizado e controlado pelo poder público Provincial. Ou seja, para a Câmara Municipal tentar impor ou regularizar alguma medida referente ao serviço de transporte de tração animal, esta precisava da condescendência da Assembleia Legislativa Provincial do Ceará. Essa situação sofreu mudanças em alguns quesitos, quando o Governo Estadual se absteve da responsabilidade de fiscalizar as empresas de bondes e transferiu essa responsabilidade aos órgãos municipais “transferindo à Intendência Municipal de Fortaleza a fiscalização da Companhia Ferro Carril do Ceará”. (Decreto nº 151 de 30 de janeiro de 1891).

Bondes de tração animal. Foto do livro Impressões do Brasil início do séc. XX

As relações entre governo e Ferro Carril, nem sempre foram tão harmoniosas. Isso devido às quebras de compromissos firmados com a empresa desde o contrato inicial de 1875. Dentre os atritos que começaram a ocorrer entre poder público e poder privado estava a não conclusão das obras da linha de carris de Mecejana. Além disso, refletia-se bastante nessa divergência o mau estado em que estavam conservadas as linhas e o material rodante (herança que a futura empresa que iria trabalhar no transporte de bondes, Light, também iria adotar e seria causa de desavenças tanto por parte do poder público, quanto por parte dos usuários). Essas desavenças levariam o poder público a se posicionar de uma maneira mais enérgica em relação à Ferro Carril do Ceará, tanto que o senhor Cezidio d’Albuquerque Martins Pereira, “Director de Secção da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior”propôs uma lei em que o Presidente do Estado ficasse autorizado a rever o contrato celebrado, em 28 de Agosto de 1875, mediante as seguintes bases:


Praso do privilegio «o mesmo das leis e contractos respectivos»;
Reversão para a municipalidade de todas as linhas construidas e materiaes dellas, findo o praso;
Dispensa de prolongar a companhia uma das linhas até Mecejana, ficando, porém obrigado a prolongar a linha da estação até a extrema do municipio da capital;
Faculdade para reduzir a bitola das linhas existentes, augmentando o numero das viagens;
Delimitar a area privilegiada ao perimetro das ruas que existiam edificadas no tempo da primitiva concessão, respeitando-se igualmente as mesmas linhas cujos traçados já estejam approvados.
Lei Estadual nº 116 de 23 de setembro de 1893

Reminiscências... Jornal O Cearense de 1º de novembro de 1879 

De todas as imposições que se materializaram na lei, a que tem grande importância para a construção do nosso trabalho se encontra no art 2º. Conforme esse artigo, o poder público mandava um recado para a empresa Ferro Carril de que ao terminar o prazo de concessão todo o seu material de trilhos seria revertido à municipalidade. Não podemos esquecer que a próxima empresa que comprará as ações da companhia Ferro Carril será a empresa inglesa Light, que herdará todos os privilégios da companhia de bondes à tração animal, entretanto, as imposições serão também herdadas.
Isso pode ser a causa da explicação dos grandes problemas que ocorreu no setor do transporte em relação aos investimentos não realizados pelas empresas concessionárias. Pois qual o sentido de se investir demasiadamente em um setor, se ao final do término do contrato, todo o seu material seria repassado para o governo municipal? Qual o interesse de um investidor privado em proporcionar melhorias na estrutura de seu negócio, cedendo um bom serviço, se ele vai perdê-lo? Isso foi comprovado com o passar dos anos, especialmente quando a Light era a portadora da concessão, que quanto mais o tempo passava e chegava próximo ao final de seu contrato (década de 1940), menos investimentos eram apresentados pela empresa.


Reminiscências - Jornal A República.

Essa prática da entrega dos trilhos para a municipalidade também foi meta geral pretendida pelo Estado em relação às empresas que visavam trabalhar com bondes de veículos de tração elétrica, tanto na capital do Ceará quanto nas regiões adjacentes e em cidades do interior, como foi autorizada às Câmaras Municipais das cidades de Porangaba, Mecejana, Soure, Redenção, Iguatú, Icó e Aracati a conceder privilégios para a instalação de trilhos desde que: “Os privilégios não poderão exceder de 25 annos e serão concedidos sem ônus para os municípios ou indemnização de qualquer espécies, devendo todo o material fixo e rodante reverter para a respectivas câmaras, findos os prazos estipulados”. (Lei Estadual nº 43, de 28 de agosto de 1911).

É importante frisar uma constatação: o sistema de transporte coletivo em Fortaleza não foi criado em um determinado momento ou por um único ato. Ele foi marcado por sucessivas leis e determinações que iam tentando moldar ou agilizar sua construção. O que tanto a empresa Ferro Carril, como depois a Light tiveram foi uma abertura das autoridades públicas que foram determinantes para alavancar a atuação dessas empresas, através de longos prazos de concessão e em ajuda para o caixa das empresas, como exemplo as isenções de impostos à empresa “Ferro Carril do Ceará”. (Lei Estadual n° 663, de 26 de agosto de 1901).


Reminiscências - Jornal O Ceará 14/09/1928.

A Companhia Ferro Carril do Ceará passou às mãos dos empresários ingleses após algumas transações de vendas com grupos locais: o grupo J. Pontes & Cia, cujos sócios eram Thomé Augusto Mota, João Pontes de Medeiros e Solón Costa e Silva, que foi proprietário da empresa entre 1898 e 1905. De 1906 a 1912 a empresa passou ao grupo T.A. Motta & Cia, de propriedade dos sócios Thomé A. da Mota e Solón Costa e Silva. Em 1907, quando a Ferro Carril pertencia ao capitalista Tomé Augusto da Mota, a Secretaria do Estado dos Negócios do Interior concedeu-lhe mais um privilégio, visando dotar a cidade de Fortaleza em pouco tempo de um serviço de transporte mais dinâmico com força motriz elétrica. Perante a Lei nº 916, o poder público estadual autorizava a concessão para estabelecimento, uso e gozo de uma usina geradora de energia elétrica.
O privilégio da empresa Ferro Carril ainda fora ampliado, a partir de uma rodada de negociações, que levou a reformas das condições contratuais. A grande vitória da empresa foi conseguir prorrogar por trinta e cinco anos o prazo do seu privilégio na distribuição do transporte coletivo. Mas para ser merecedora dessa prorrogação, a empresa de bondes deveria substituir a tração animal pela elétrica (Lei Estadual n° 1008, de 19 de agosto de 1910)
Tal imposição acarretou a venda da Ferro Carril para empresários ingleses que tinham condições de efetivar o oneroso serviço de implantação da eletricidade em Fortaleza. Isso ocorreu quatro meses depois com a venda da Ferro Carril para City Improvements Co Ltda que, em pouco tempo, construiria a Ceará Light, em 1912, para operar o serviço de transporte coletivo servido por bondes de tração elétrica.


Posto Central da Ferro Carril, na praça do Ferreira, logo após sua transferência para a Light
(1912). – Acervo Cepimar

Nessa imagem, encontramos o ponto central onde os bondes da empresa Ferro Carril do Ceará tinham seu ponto de partida, sempre saindo do coração da cidade. Quando esta passa para a empresa inglesa, o posto central ainda continua na Praça do Ferreira. É importante salientar que a Light, com a compra dos aditivos da Ferro Carril, passou a cumprir com as demandas dos contratos que pertenciam à empresa de bondes de tração animal. Neste sentido, a empresa britânica tanto recebia os privilégios oriundos de contratos anteriores, quanto estava submetida a todo um “jogo” de regras e cumprimento de determinadas imposições por autoridades fiscalizadoras da cidade. Dentre outros aspectos, a Light estava se enquadrando no serviço de transporte sob a suprema inspeção do Secretário da Justiça e Segurança Pública, vinculada a uma Inspetoria de Veículos em que o Delegado de Polícia estava encarregado da matrícula e da fiscalização dos veículos.

Crédito: MANOEL PAULINO SECUNDINO NETO ( “Light 'versus' Ribeiro &Pedreira”)

Veja também:
Parte I
Parte II
Parte III

Recortes de jornais: Biblioteca Nacional/Digital Brasil

sábado, 9 de setembro de 2017

Fortaleza antiga - Rivalidade no transporte coletivo na década de 20 (Parte III)


3º Round


Assentamento dos trilhos dos bondes elétrico na rua Guilherme Rocha em 1913. Acervo Ary Bezerra Leite

Em 1927, Fortaleza adquiria um sistema de avenidas que faziam importantes ligações na cidade como pontos que ligavam o centro da cidade, o Palácio do Governo e a Assembleia Legislativa. Para melhorar a estrutura urbana e principalmente na parte estética, o prefeito de Fortaleza Álvaro Weyne (1928-1930) exigiu a mudança de antigos combustores das praças por lâmpadas da marca Littleton, que era utilizada nas melhores cidades do mundo.

No entanto, ainda na década de 20, as ações das autoridades públicas eram modestas.
Pautavam-se em pequenas reformas, especialmente na parte central da cidade. 

Nogueira¹ relata que uma atitude exercida pela municipalidade foi retirar a árvore denominada Oitizeiro do Rosário da via urbana de Fortaleza e os relatos de vários memorialistas descontentes com essa atuação:
Todavia justificativa presumida para o abatimento do Oitizeiro do Rosário 

repousava na intensificação do tráfego urbano, o que era confirmado pelo crescente número de automóveis que transitavam pelas ruas da cidade. A árvore erguia-se em uma via central – a um passo da Praça do Ferreira, ponto irradiante de veículos, onde

automóveis de aluguel estacionavam e passavam linhas de bondes.

O texto nos informa que algumas atitudes estavam sendo praticadas pelo poder municipal, entretanto não podemos considerar uma grande mudança, ou amplas reformas para o perfil urbano. O investimento no final do ano de 1929 para a circulação de veículos limitava-se, nesse caso, a uma simples retirada de uma árvore, fato muito insignificante para uma cidade que visava crescer. E no mesmo ano de 1929, Fortaleza era portadora de um calçamento totalmente impróprio para a circulação de veículos.

Porém mesmo com algumas mudanças ocorrendo na década de 1920, não podemos ainda considerar este o período de profundas transformações na capital. Como nos apresenta
Ary Bezerra Leite: “Na década de 1920, há relativo progresso, mas é nos anos de 30 que ocorre a expansão territorial, rompendo o zoneamento primitivo para buscar novas áreas de crescimento.”

Ratificamos esse pensamento com as afirmações do pesquisador Liberal de Castro. Para este autor, Fortaleza, na virada do século XX, podia ser considerada um aglomerado urbano ainda modesto. Em 1920, o censo da cidade apontava esta com uma população de 78.000 habitantes. A ponto de Liberal de Castro se referir à cidade chamando esta de “cidadezinha”, o que reflete sua opinião de que Fortaleza não atingia um índice de desenvolvimento urbano ampliado ainda na década de 1920.

Vemos um Bonde de tração animal na Prainha (Praia de Iracema-Rua Almirante Jaceguaí) em fevereiro de 1913.  À direita podemos observar a torre da casa de José Pio Moraes de Castro, que dali observava os navios do Lloyde Brasileiro, para o qual trabalhava. Depois foi vendida para o engenheiro da estrada de ferro Mister Hull, que fez da bela vista um observatório astronômico. A casa ficava no terreno onde hoje temos o Centro Dragão do Mar. (Foto Brun) - Acervo Lucas


Foto ao lado: Filhas e sobrinhas do empresário Alfredo Salgado numa tour pela cidade. Passeio de bonde de tração animal. Foto de 1913 de Jacob Nogueira. Acervo Lucas 


A estruturação do monopólio

Se Fortaleza caminhava na década de 1920 de maneira “devagar e arrumadamente”, as transformações no transporte coletivo no final desta década não caminhavam nesse mesmo ritmo, de maneira amistosa ou pacífica. Esse mercado de transporte foi alvo de disputas e conflitos, especialmente entre a empresa britânica, detentora do serviço de iluminação elétrica e transporte por bondes elétricos, The Ceará Tramway and Light Power, com os primeiros empresários de ônibus que também tencionavam adquirir um pedaço dessa fatia lucrativa, no final da década de 20.

A grande questão era que o serviço de transporte coletivo em Fortaleza sempre foi pensado e realizado através de uma prática de concessões e privilégios. Ou seja, a empresa atuou por vários anos realizando suas atividades com a prerrogativa de monopólio do serviço de transporte coletivo por bondes elétricos, que, na prática, significava um controle sobre todo o sistema, haja vista que até a década de 20, ainda não havia ônibus fazendo esse tipo de trabalho regularmente. Em outras palavras, a empresa britânica gozava de privilégios do tráfego de carros elétricos na área urbana de Fortaleza, privilégio este que chegava a 75 anos.

O monopólio que a Light adquiriu viera de práticas exercidas pela municipalidade desde o século XIX, que repassava a particulares concessões de longos anos para atuar sobre alguns serviços. No trabalho com bondes elétricos, a responsabilidade ficou com essa empresa. Isso significa que o monopólio adquirido pela empresa foi um conjunto de concessões que esta conseguiu contrair com a compra de outras empresas que faziam esse serviço e eram beneficiadas com essa prática. Devido a esse longo período de concessão e privilégios, a instituição não via com bons olhos a chegada de novos veículos como os ônibus, que certamente iriam fazer concorrência e disputar passageiros, transformando-se, assim, em opositores perigosos para os lucros da companhia britânica no setor de transporte coletivo.

As longas concessões cedidas pelas autoridades públicas, que se transformaram em um monopólio do setor com o advento da Light, foram as grandes dificuldades que os novos empresários de ônibus tiveram que enfrentar e, por outro lado, este tipo de situação foi a principal luta pela qual a empresa defendeu para continuar. No cenário que perpassou o final do século XIX para o século XX, três empresas locais adquiriram concessões em troca da instalação de trilhos para a transição de bondes com força animal em algumas ruas de Fortaleza. Maior destaque se dá à companhia Ferro Carril do Ceará, que atuou desde 1880 até 1912, quando foi adquirida pela empresa Ceará Light, ficando esta última responsável pela manutenção do transporte nas linhas adquiridas pela antiga “Ferro Carril do Ceará”.

Passe de bonde em 1945. Acervo de Clóvis Acário Maciel

Nessa perspectiva, outras duas empresas, na década de 1890, adquiriram também concessões para conseguirem transitar em Fortaleza. A segunda empresa a ser formada foi a Companhia Ferro Carril de Porangaba², em 1894, transitando no percurso Benfica-Damas-Parangaba e teve sua atuação exercida até o ano de 1918. Em 1896, surgiu a última empresa de bondes com tração animal denominada Companhia Ferro Carril do Outeiro³, que teve sua atuação até o ano de 1912, quando foi comprada pela empresa inglesa de bondes elétricos, uma vez que já pertencia à “Companhia Ferro Carril do Ceará” desde 1898. O itinerário da terceira empresa começava na Praça do Ferreira, Praças General Tibúrcio (conhecida como Praça dos Leões), José de Alencar, atravessava a Praça Caio Prado (Praça da Sé), seguia pela Praça Figueira Mello, rua Gustavo Sampaio, até a Praça Benjamin Constant (Praça da Bandeira), que significava um percurso de 1.550 metros.

A partir desses fatores, podemos entender que o serviço de transporte coletivo em Fortaleza foi estruturado da seguinte maneira: a cidade era fatiada para alguns empresários que investiam no setor de bondes, sendo repassado a esses capitalistas as concessões. Cada empresa tinha sua área de atuação, cuja circulação nas linhas era de privilégio da portadora da concessão.

Não, nesse sentido, havia espaço para uma concorrência entre empresas em uma mesma linha, já que cada uma era detentora de uma linha em que somente a concessionária podia atuar. Em uma cidade em que as empresas locais Ferro Carril do Ceará, Ferro Carril do Outeiro e Ferro Carril de Porangaba tinham essas concessões, como poderia a Light entrar nesse mercado? A empresa inglesa não podia disputar através da concorrência, restando uma alternativa para os ingleses, que era comprar a propriedade das empresas de bondes locais para atuar, e foi exatamente isso que fizeram. Com a compra das empresas Ferro Carril do Ceará e Ferro Carril do Outeiro, e a falência da Ferro Carril de Porangaba, em 1918, a Light passava a ser a única empresa detentora de concessões nas linhas urbanas, o que outorgava a esta um monopólio de transporte coletivo de bondes.

A nossa análise para entender a opção tomada pelas autoridades públicas em ceder as concessões com privilégios de tempo e sem concorrência para alguns grupos, é que o governo municipal não estava interessado em investir na construção de calçamentos e implantação de trilhos de bondes, deixando isso para a iniciativa privada, que por outro lado era recompensada com o uso exclusivo desses trilhos por um determinado tempo.

O funcionamento dos serviços urbanos também envolvia a iniciativa privada como agente ou beneficiária de algumas atividades básicas, sempre a usufruir de um protecionismo concedido pelos agentes governamentais em detrimento dos interesses coletivos. 


Para a construção desse serviço, as autoridades públicas se valeram de todo um arcabouço legislativo para colocar em atividade o serviço de transporte coletivo. Nesse sentido, a atuação das autoridades públicas se reportaria à fiscalização e à distribuição de concessão, enquanto a iniciativa privada realizaria as obras necessárias de infraestrutura.

Fortaleza compartilhou, no começo do século XX, situações parecidas com o que estava ocorrendo em parte nas grandes cidades do Brasil. O crescimento urbano demandou
investimentos na distribuição de água, iluminação e energia. No Brasil, inicialmente, a
prestação desses serviços ficou a cargo de pequenas empresas de âmbito municipal. Todavia,
o tempo de atuação dessas empresas não teve uma longa escala. Devido ao crescimento de
empresas internacionais, principalmente no que se refere à produção de materiais elétricos e distribuição de eletricidade, algumas empresas multinacionais assumiram o controle do mercado latino-americano. Na capital do Ceará esse processo teve origem em 1870, data em que foi sancionada a Lei nº 1382, concedendo um privilégio de 50 anos no contrato para Estevão José de AlmeidaFirmino Cândido de Figueiredo, Antonio Pinheiro da Palma e José Joaquim de Sousa Assunção, que ficariam encarregados de montarem os alicerces do serviço de transporte pautado no bonde com tração animal. Logo, demais leis foram sendo efetivadas e resultariam, em pouco tempo, em uma configuração concreta dos estatutos da Companhia Ferro Carril do Ceará, como a Lei Provincial nº 144 de 11 de outubro de 1871, que repassou a Estevão José de Almeida os direitos para colocação de trilhos de ferro nas ruas da cidade, com um ramal paraMecejana.

A transferência desses direito foi efetivada aos negociantes Francisco Coelho da Fonseca e Alfredo Henrique Garcia. A Lei 1382, de dezembro de 1870, concedeu esse privilégio a Estevão José de Almeida (Lei Provincial nº 1631 de 05 de setembro de 1874) que se efetuou no contrato de 28 de agosto de 1875. O resultado do conjunto dessas leis levaria à aprovação dos primeiros estatutos da “Companhia Ferro Carril do Ceará” com o Decreto Imperial nº 5110, de 09 de outubro de 1872, e que seria ratificado com o Decreto Imperial, assinado pela princesa Isabel com o nº 6620, de 04 de julho de 1877:

Art. 1º Fica organizada uma sociedade anonyma que se denominará Companhia ferro-carril do Ceará, cujo fim é construir linhas de carris de ferro nas ruas da cidade de Fortaleza, capital a Província do Ceará, e mais uma linha que ligue a dita capital à povoação de Mecejana.
Art. 2º À Companhia ficam pertencendo todos os direitos e privilégios, que aos contractadores, Francisco Coelho da Fonseca e Alfredo Henrique Garcia, foram
concedidos do dito contracto, de conformidade com a Lei provincial do Ceará nº1631 de 5 de Setembro de 1874 e outros que de futura venha a adquirir.
Art3º Pela cessão do privilégio com todas as suas vantagens, incorporação da companhia, etc. receberão os cessionários como indenização uma comissão de 10% sobre o capital, que vier a ter a Companhia, destinado à execução de todas as suas obras até Mecejana, em ações consideradas inteiramente pagas.
Art. 4º A companhia terá sua sede e direção geral na cidade da Fortaleza.

Art. 5º A duração da companhia será de 50 annos contados da data da approvação destes estatutos, prazo este prorrogável mediante deliberação da assembléia geral de accionistas para isso convocada e autorização do Governo Imperial.


Decreto Imperial nº 6620 de 04 de julho de 1877

A atitude do Presidente da Província era bem taxativa, pois além de ser concedido um bom tempo de privilégio de trabalho, a empresa de bondes ainda era premiada com isenção de
impostos aduaneiros e taxas para materiais importados que fossem necessários para o
assentamento da linha de bonde nesta capital. Mesmo querendo executar um serviço de
interesse público, que era a instalação de trilhos urbanos para a circulação dos bondes, o
grande privilegiado desse serviço acabava sendo a proprietária das concessões, Ferro Carril,
do sistema de transporte coletivo.


Rua Formosa, Barão do Rio Branco, em 1908. Bonde da Companhia Ferro Carril. 
Acervo Cepimar

Esta imagem refere-se ao bonde de tração elétrica em Fortaleza, circulando em uma das principais ruas da cidade nesse período. No ano em questão, a empresa de bonde Ferro Carril do Ceará tinha o maior número de linhas na cidade de Fortaleza. Com a configuração do estatuto da Companhia Ferro Carril do Ceará, percebemos como a concessão de privilégios foi sendo repassada juntamente com a construção do sistema de transporte coletivo. Essa primeira empresa teve privilégios que a vincularam a uma concessão de tempo de meio século para realizar suas atividades de uma maneira isenta de concorrência dentro de suas linhas, cujo material seria repassado à municipalidade. Não bastasse essa facilidade, o grupo que pretendeu investir no transporte coletivo também foi privilegiado por outras  prerrogativas das autoridades públicas. Isso foi confirmado quando o Doutor José Júlio de Albuquerque Barros, Presidente da Província do Ceará “Concede isenção de direitos para a Companhia Ferro Carril do Ceará” (
Lei Provincial nº1852 de 02 de outubro de 1879).


Continua...


¹Carlos Eduardo Vasconcelos Nogueira - Dissertação (mestrado) em História Social. Universidade Federal do Ceará, 2006.p.19. Tempo, progresso, memória : um olhar para o passado na Fortaleza dos anos trinta. 

²A segunda Companhia de Bonde a se fundir foi a da Companhia Ferro-Carril de Porangaba, de propriedade de Gondim e filhos, dirigida pelo Cel. Arlindo Gondim, fundada em 10 de outubro de 1894. Vinha de Parangaba onde era a sua Estação e parava no fim da linha de Bondes do Benfica, defronte do Café do Eugênio, junto ao muro da Chácara das Amarais, onde do lado de fora existia um grande tanque com água para os animais dos bondes e dos comboieiros. A linha servia os bairros das Damas e de Parangaba. In: BEZERRA DE MENEZES, Antonio. Descrição da cidade de Fortaleza. Fortaleza: UFC/Casa de José de Alencar, 1992. p.194.

³A terceira Companhia foi a Ferro-Carril do Outeiro, fundada em 1896; o assentamento dos trilhos se iniciou em 13 de maio e foi inaugurada em 12 de outubro do mesmo ano de 1896. Era propriedade de membros da família Acioly. Sua Estação se localizava um pouco além da atual Rua Gonçalves Ledo, antiga Rua do Guariju e em seu local foi construído o prédio residencial do Dr. Aderbal Freire. Eram servidos dois bairros, o do Outeiro e da Aldeota. O bonde do Outeiro partia da Praça do Ferreira às horas certas e atingia até a frente do prédio que foi construído na seca de 1877 e se destinava a um asilo de mendicidade; em 1902 foi alugado para um Colégio de moças sob a direção da grande educadora e professora Ana Bilhar, que, mediante contrato com Governador Pedro Borges, o alugou com o prazo de nove anos, mediante o aluguel mensal de 150$000. "Suas alunas só trajavam verde e por isso eram apelidadas de periquitinhos verdes; hoje o prédio é ocupado pelo Colégio Militar. (Nota de Fernando Lima). IN: BEZERRA DE MENEZES, Antônio. op. cit., p.194.

Crédito: MANOEL PAULINO SECUNDINO NETO ( “Light 'versus' Ribeiro & Pedreira”)

Veja também:
Parte I
Parte II
Parte IV

Fontes: CASTRO. José Liberal de. Arquitetura eclética no Ceará. In: Annateresa Fabris (org.) Ecletismo na Arquitetura Brasileira. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo: 1988. p.220 – 230./ LEITE, Ary Bezerra. História da Energia no Ceará. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1996. P.51./CASTRO, José Liberal de. Fatores de Localização e de Expansão da Cidade de Fortaleza. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade de Fortaleza, 1977. p.35. /Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1918, confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica, 1918. p.197. / Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1918,
confeccionado por João da Camara. Fortaleza: Empreza Tipographica, 1899. p.107./
JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Verso e Reverso do Perfil Urbano de Fortaleza (1945 – 1960). São Paulo: Annablume, 2000p.111. / SAES, Alexandre Macchione. Conflitos do Capital: Light versus CBEE na formação do capitalismo brasileiro (1898-1927). Tese(doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, 2008. p.51./ NOBRE, Geraldo. Ceará: energia e progresso. Secretaria de Cultura e Desporto. Imprensa Oficial do Ceará.
Fortaleza, 1981. p. 103./ 

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