Refiro-me à seca de 1877 a 1879. Na época, mais de um em cada quatro cearenses morreram vitimados pela sede, fome, varíola e cólera. Não havia casa sem luto. Alguns registros dão conta de que no ano de 1878 foram sepultadas nos cemitérios São João Batista e Lagoa Funda mais de 56.000 pessoas, isso numa população de 124.000 habitantes. Um verdadeiro holocausto.
Alguns poucos e sérios livros de História contam que durante a tragédia cearense foi organizada uma campanha de socorro às vítimas, destacando-se nomes importantes, entre eles João Cordeiro, então comissário-geral dos Socorros Públicos. Mas naqueles tempos sobressaiu-se um outro personagem. E é sobre ele que este texto vai se reportar: um filho da cidade de Aracati nascido em 1839 na localidade de Canoa Quebrada e que respondia pela alcunha de Chico da Matilde. De batismo, era Francisco José do Nascimento, herdeiro do pescador Manoel do Nascimento, que resolveu tentar a vida na Amazônia e faleceu nos seringais, e da rendeira Matilde Maria da Conceição.
Com a morte do pai, aos oito anos, Chico da Matilde teve que assumir a casa, envolvendo-se no cotidiano do litoral. Como outros milhares de sua época, cresceu analfabeto, fenômeno que, infelizmente, ainda se repete até hoje, exatos 170 anos depois. Só aos 20 aprendeu a ler. Homem do mar por ofício, começou a vida como menino de recados à bordo do navio Tubarão, para depois tornar-se chefe dos catraieiros, os condutores de jangadas e botes do litoral da capital cearense. Em 1859, trabalhou nas obras do porto de Fortaleza. Depois, empregou-se como marinheiro em um navio que fazia a linha Maranhão-Ceará e, em 1874, foi nomeado prático da Capitania dos Portos.
A única lembrança triste deste episódio é que o ícone da libertação dos escravos no Brasil, a jangada de paus roliços e vela branca, doada ao Museu Nacional, desapareceu alguns anos depois. O jornalista catarinense Raimundo Caruso, no livro "Aventuras dos Jangadeiros do Nordeste", descreve o que pode ter acontecido: “A jangada Liberdade, de Francisco José do Nascimento, era a clássica, de troncos. Símbolo de uma resistência popular vitoriosa no Ceará, foi levada à Capital do Império a bordo de um navio mercante e, mesmo viajando no porão, inaugura a rota das futuras aventuras dos jangadeiros nordestinos em direção ao Sul. A embarcação foi exibida nas ruas do Rio de Janeiro, sob os aplausos da multidão, e pouco depois é doada ao Museu Nacional, onde foi recebida como valiosa peça etnográfica (...). Em seguida a jangada foi transferida para o Museu da Marinha (...), de onde, queimada, feita em pedaços ou desmontada, desapareceu”.
De volta a Fortaleza, em 1889, ele foi reconduzido, por ordem do Imperador D. Pedro II, ao cargo de prático da Capitania dos Portos. No ano seguinte, com o advento da República, João Cordeiro assume brevemente a presidência do estado e entrega a Dragão do Mar a patente de Major-Ajudante de Ordens do Secretário-Geral do Comando Superior da Guarda Nacional do Estado do Ceará, em reconhecimento à sua bravura.
Contudo, à força, o governo embarca os amotinados, não antes de deixar 90 homens feridos e um morto em confronto com os soldados da província. Nessa ocasião, Dragão do Mar lidera uma marcha até o Palácio da Luz, sede do governo de Pedro Borges, cobrando justiça. O presidente, temendo o pior, recolhe suas tropas. Até seus últimos dia de vida, o herói cearense agiu em defesa das classes menos favorecidas, vindo a falecer no dia 6 de março de 1914, em razão de ataques dos jagunços do Padre Cícero, que lutavam para derrubar o presidente Franco Rabelo.
Em 1999, o símbolo da resistência popular cearense contra a escravidão foi finalmente homenageado pelo governo do Ceará dando seu nome ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Em comemoração aos dez anos de fundação, uma série de atividadesfoi promovida, entre exposições, concurso de redação, reedição do livro "Dragão do Mar – O Jangadeiro da Abolição", de Edmar Morel, de 1949, além da confecção da estátua de Chico da Matilde.
Apesar de esquecido pelos livros, Francisco José do Nascimento entrou para história como um verdadeiro herói. Em um país acostumado a venerar em carro público vencedores de reality-shows tão fajutos quantos seus destaques, Chico da Matilde é, e sempre será, exemplo para esta e futuras gerações. Que o Brasil tenha outros jangadeiros como Francisco, homens que fazem da sua vida e do seu trabalho um instrumento para transformar o mundo em um lugar mais justo e igual para todos.