Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O bonde (V) Benfica - Igreja dos Remédios



Bonde elétrico da Light - Benfica -Arquivo Assis Lima

O bonde tinha seus apetrechos necessários, utilizados para o desenvolvimento de seu maquinismo. A começar pela “lança”, colocada na parte superior do bonde que por sua vez se ligava ao cabo que fornecia a eletricidade para mover o bonde, afora as demais peças e instrumento capaz de impulsionar, baixar e aumentar a velocidade, que quando atingia o máximo dizia na compreensão vulgarizada - o “bonde ia a oito pontos” o que significava ter atingido a velocidade máxima. Além disso tinha dois motores - um em cada extremidade do vagão (do bonde), porque quando chegava no término da linha, o motorneiro virava todos os bancos e a “lança” - uma haste com grosso cabo colocada por um carretel no fio para receber eletricidade e correr sobre o mesmo; após a chegada ao término do percurso faziam pequena parada enquanto subiam e desciam os passageiros. Iniciava o itinerário com o outro motor onde estavam acoplados manivelas e relógios registradores e demais peças impulsoras e geradoras do movimento sobre os trilhos. Além do relógio que registrava o número de passageiros em cada seção, era munido de sineta, que quando acionada anunciava a descida do passageiro, cujo cordão percorria os dois lados e se situava na parte superior de entrada do elétrico (teto).


Uma das ruas do bairro Benfica, vendo-se o trilho do bonde em 1937

Havia algumas linhas - bondes que utilizavam os mesmos trilhos até certa distância do percurso e, por isso os desvios das linhas eram feitos por duas linhas paralelas ao lado, para dar ultrapassagem ao outro bonde; como era o caso do bonde da linha Jacarecanga e Soares Moreno. Um seguia reto pela Guilherme Rocha, o Soares Moreno entrava à direita na Rua Teresa Cristina. E, para que não utilizasse a mesma linha, ao mesmo tempo, interrompendo a ultrapassagem, faziam desvio na própria linha, passando um pelo outro sem nenhum impasse. Em certos desvios havia uma espécie de agulha que virava a posição do trilho. Os bondes eram invariavelmente pintados de cor verde escuro, quase verde garrafa, cujo centro de cada fachada, se encravava um holofote com avantajado diâmetro que projetava a luz à grande distância.
Os estribos ou plataformas serviam de degrau para passageiros que se apegavam como arrimo aos pés. Os balaústres, hastes de madeira afixadas às cantoneiras dos bondes, serviam para auxiliar o passageiro no embarque e desembarque do bonde.

Linha do bonde do Benfica na Av. Visconde de Cauipe, 1943 - Arquivo Nirez

Diz Ary Bezerra Leite - História da Energia no Ceará, Pág. 66/67: “A empresa inglesa constituída com o exclusivo objetivo de operar no Ceará tinha sede em Londres, na New Broad Street No 42. Nos contratos, a empresa indicava como seu escritório, em Londres, o No 4, no London Wall Buildings. O capital inicial era de 400 mil libras e sua diretoria composta por C. Hunt, A. A. Campbell Swinton, E. B. Forbes e Sir Howland Roberts. Para administrar a empresa, em Fortaleza, é contratado Hugh Mackeen, nascido no Ceilão, filho de banqueiro, cedido ao Ceará pela Santos Improvements Co., de São Paulo. Ele seria o primeiro gerente local e teve papel decisivo na realização das obras iniciadas a 9 de maio de 1912.”

No primeiro momento, há preocupação de entender claramente os riscos que estavam assumindo em terra brasileira. Nos arquivos da Light, encontramos um expressivo documento, que não traz identificação do autor ou a quem é dirigido, com o seguinte teor:

“Pela lei estadual no 1008 de 19 de agosto de 1910 foi a Câmara Municipal de Fortaleza autorizada a prorrogar por trinta e cinco annos o prazo do privilégio concedido à então Empresa Ferro-Carril do Ceará, devendo esta, para gozar da prorrogação, substituir a tracção animal pela electrica, regulamentando no seu novo serviço segundo as práticas consagradas nas principais cidades do País.
Usando da autorização da lei citada, votou a Câmara Municipal a lei de 5 de maio de 1911, prorrogando por trinta e cinco annos o privilégio da Empresa Ferro-Carril do Ceará, sob a condição de substituir a tracção animal pela electrica. Dita lei (Art. 2) autorizou ainda o Intendente Municipal a mandar lavrar o contracto de prorrogação e expedir o regulamento necessário ao novo serviço.
Em data de 12 de maio de 1911 foi lavrado o contracto e a 8 de junho do mesmo anno expedido o regulamento, approvado ulteriormente por uma lei municipal.
Este, indo além do contracto, criou obrigações novas para a Empresa, não constantes deste; entre outras enumeramos: Art. 9, submeter annualmente à approvação da Intendência o horário das tranvias, salvo quando o intervallo no trajecto dos carros for menor de 15 minutos; Art. 10, fazer circular os carros de passageiros de primeira classe até onze horas da noite, excepto na linha do Alagadiço, cujo último carro a sair da cidade será às 10 horas da noite; Art 11, fazer circular além de carros de primeira classe, carros de segunda classe ou mistos, com horário approvado pela Intendência, rebocados pelos de primeira classe.
Em 6 de junho de 1912, foi o contracto transferido do primitivo concessionário, Sr. Thomé A. da Motta, para a Ceará Tramway Light & Power Co. Ltd.
Essa transferência foi approvada pela Intendência Municipal, mediante termo, no qual a concessionária se obrigou a cumprir os compromissos constantes do contracto de 12 de maio de 1911, sem se fazer allusão ao Regulamento de 08 de junho do mesmo anno”.


Bonde Benfica, raro registro do início séc. XX - Acervo de Fidelino Leitão de Menezes

Dessa vez vamos pegar (apanhar) o Bonde BENFICA - Igreja dos Remédios, que fazia a linha sul da Cidade - no bairro Benfica. Saía da Praça do Ferreira em frente a Rotisserie - hoje Caixa Econômica Federal - Rua Floriano Peixoto, Guilherme Rocha, General Sampaio, Avenida da Universidade, antiga Visconde de Cauipe, até a esquina da Rua Adolfo Herbster, esquina da Universidade com término em frente à Igreja de Nossa Senhora dos Remédios quando inicia a Av. João Pessoa.
O trajeto era feito desde a Praça do Ferreira, lado oeste, da Rua Floriano Peixoto - passava em frente ao Bar Jangadeiro - casa de lanches e sorvete do comerciante Luís Frota Passos, casado com a professora de dança clássica, balet, Regina MacDowel. Nesse local funcionou tembém a Farmácia Faladroga, muito conceituada no seu tempo, hoje vários armazéns de tecidos. Nos altos do prédio funcionou por longos anos a muito afamada alfaiataria e camisaria - do estimado italiano Salvador Cunto. No mesmo quarteirão, antes de chegar à Rotisserie, se instalava a grande sorveteria - “Eldorado” - hoje dependência da Caixa Econômica Federal. Dobrava à esquerda na Rua Guilherme Rocha, local onde existiam várias casas comerciais e depois foram demolidas para dar lugar ao Abrigo Central, fato ocorrido na segunda administração do Dr. Acrísio Moreira da Rocha, quando também se registrou a retirada dos bondes (1947). A demolição do Abrigo Central pelo prefeito José Walter Cavalcante iniciou nova Praça do Ferreira, a qual foi demolida para fazer um retrospecto da antiga Praça do Ferreira e voltar ao status de antes, com o arquiteto Delberg Ponce de Leon e Fausto Nilo (também compositor).

Bonde na Av. Visconde de Cauhype (atual Av. da Universidade). 
Arquivo Luis Alencar

O bonde do Benfica seguia numa reta pela Rua Guilherme Rocha até chegar na Rua General Sampaio, em cuja esquina permaneceu por longos anos o famoso Bar Americano, iniciado por Benício Sampaio e substituído por seu irmão Salomão Benício Sampaio, conhecido pela venda da apreciada bebida de origem indígena - por nome aluá - bebida fermentada, feita de arroz, milho, pão, abacaxi em infusão na água adoçada com rapadura ou açucar ou, ainda, açucar mascavo e condimentada com gengibre e erva doce. A particularidade da preferência por essa bebida por muita gente, e até pelos alunos do Liceu, é que quando ingerida com pão, logofermenta enchendo o estômago para substituir uma refeição, para os menos favorecidos da sorte. Tem como originário da língua bunda, ou língua dos bundos, africano ou tupi, que durante o ano inteiro era vendida e consumida em grande quantidade, por ser apreciada pelo agradável sabor aromático. Na época do inverno e na safra do milho o Bar Americano vendia também a canjica e a pamonha (guloseima de milho envolvida na palha do mesmo, cozida na água fervente e servida com café).
O Bar Americano era ponto de convergência para os apreciadores das músicas nacionais, porque lá existia uma eletrola americana tamanho grande de marca “AMY” que pegava 20 discos de cera e acionada por um dispositivo que fazia girar o disco da preferência do freguês, cujo pedido musical era feito automaticamente e podiam ser ouvidos os ritmos samba, xaxado, xote, baião, e do cancioneiro romântico, desde Vicente Celestino, Ataulfo Alves, Chico Alves, Noel Rosa, Luís Gonzaga, Lauro Maia (cearense), Erivelto Martins, Dircinha e Linda Batista, a Sapoti - Ângela Maria -, Nora Nei e tantos outros cantores da época de 40, 50 e 60. Iguais a essa eletrola - havia em Fortaleza apenas mais 4 (quatro), uma no Passeio Público, outra no Bar do Ferreira - na Rua Dr. João Moreira, detrás da Cadeia Pública, outra no Curral das Éguas - no Bar Expedito Brás e a última no Bar do Afonso - na Praça de Parangaba, segundo me contou Monsueto Benício Sampaio, filho do dono do Bar Americano, que por certo saberá de boas histórias para contar do Bar das multidões que marcou época. Era também ponto de parada obrigatória para os que iam ao Bar Americano bebericar e eram moradores do Bairro Benfica, que ali apanhavam o bonde para se dirigir às suas moradias. Mas tudo acabou quando o famoso bar cerrou suas portas em 1965, deixando órfãos os amantes dos variados ritmos, desde os sambas de breques de Jorge Veiga, o mais plangente do cancioneiro Augusto Calheiros, e Araci de Almeida, para os que se sentiam momentaneamente “guampudos”.
Quando o bonde dobrava à esquerda na Rua General Sampaio, seguia em linha reta, até ultrapassar a Praça Clóvis Beviláqua, antiga Praça da Bandeira, onde se encontra o prédio da Faculdade de Direito do Ceará, "de onde fui aluno e concluí meu curso de Direito".
Ainda permanece ao lado direito da Rua General Sampaio (lado da sombra) e da Faculdade de Direito, a mais luxuosa mansão - do Barão de Camocim - Geminiano Leite Barbosa, suntuosa por suas linhas arquitetônicas - considerado o mais rico solar da época, por ser o único a ostentar, para atender a comodidade da família, um elevador para o único pavimento superior, o que lhe dava mais conotação à sobriedade e à aristocracia da época. Havia, como natural, outras casas de razoável conforto nas ruas General Sampaio e Visconde de Cauipe - hoje, Av. da Universidade, a começar pelo solar da família do Dr. Rufino de Alencar - o primeiro sobrado do lado direito (sombra) de quem percorre a Av. da Universidade - antiga Visconde de Cauipe - que tem no 1806, onde se acha instalado o Palácio Maçônico Dr. Luís Moraes Correia - Fortaleza 3, esquina da rua Meton de Alencar, e tantas outras como o palacete do Dr. Roberto Nepomuceno, Dr. Edmar da Costa Barroso, etc. O Colégio Fortaleza, Colégio Santa Maria, Santa Cecília, Colégio Americano, Solar Frota Gentil, hoje Reitoria, e Clube dos Sargentos, hoje desativado.
O passageiro ilustre do bonde da linha do Benfica é o Dr. Rufino Antunes de Alencar Junior - nascido em Fortaleza no dia 26 de julho de 1879, filho do Dr. Rufino Antunes de Alencar, pernambucano, e de D. Quitéria Dulcinéia Gurgel de Alencar.
Formou-se em medicina na Faculdade do Rio de Janeiro. Defendeu tese sobre “Hérnias inguinais e seu tratamento”. Fez parte do Corpo de Saúde da Armada Nacional, com assistência no Ceará, médico do Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia. - Dicionário Biográfico - Barão de Studart, pág. 132 (3o Vol.).
Residia no palacete da Av. Visconde de Cauipe no 1806, esquina com a rua Antônio Pompeu, onde hoje se acha instalado o Palácio Maçônico - Dr. Luís Moraes Correia Loja 3, primeiro imóvel da avenida acima mencionada. Ao chegar ao fim da linha - Igreja Nossa Senhora dos Remédios com Adolfo Herbster, o bonde virava a lança e bancos para fazer o itinerário de volta à cidade. Fazia o mesmo trajeto pela Av. da Universidade e na Rua General Sampaio entrava à direita na Rua Clarindo de Queiroz, seguindo por detrás da Igreja do Carmo - antiga do Livramento, para entrar à esquerda na rua Floriano Peixoto até chegar na Praça do Ferreira - cuja parada inicial se dava na Rotisserie para iniciar a Rua Guilherme Rocha.
Assim, caros amigos, mais um passeio agradável no bonde Benfica, para ver a gruta de Lourdes da Igreja Nossa Senhora dos Remédios, ou deixar uma colaboração no Dispensário dos Pobres, que servia de abrigo para os velhinhos pobres desabrigados.
O bairro do Benfica era considerado um dos mais elegantes bairros da cidade, porque servia de residência das mais importantes famílias - daí seguia para o vizinho bairro das Damas - antigo Barreiros, com residências de importantes famílias como a do Dr. Álvaro do Couto Fernandes, Gustavo da Frota Braga, Agapito Sátiro, Prof. Otávio Farias Sabóia, Lauro de Oliveira Cabral, José Abreu Pita Pinheiro, Tenente Joaquim Olimpio Bezerra de Menezes, Dr. Antônio Bonifácio, Edgar Leite Ferreira e família Nepomuceno, e assim tantas famílias que perlustram na nossa memória e permanecem para guardar as imorredouras saudades do tempo que não volta mais porque tudo virou cinzas, menos nós, eternos amantes desta cidade, que despertamos com o Astro Rei e adormecemos embalados pela prateada Lua.

Abalroamento do bonde Benfica com camioneta
 Cronologia Ilustrada de Fortaleza de Nirez

Zenilo Almada

Advogado

lança - A lança, conforme é explicado no decorrer do texto, é um tipo de captador de energia, dentre os três gêneros mais utilizados em bondes, lança, arco e pantógrafo.

instrumento capaz de impulsionar, baixar e aumentar a velocidade - Trata-se do acelerador, conhecido no Brasil pelo nome de manivela.

“... a oito pontos” - Ou “no ponto oito”. Esta expressão deve-se ao fato de que o movimento da manivela aceleradora, acionada pelo motorneiro, era dividido em oito posições sincopadas, sendo o ponto 8 o de maior velocidade.

o motorneiro virava todos os bancos e a “lança” - O procedimento de virar a lança e os bancos ao contrário é aplicado quando o ponto final se dá numa extremidade de linha sem continuação, e o bonde retorna sem dar meia volta. Os bondes, geralmente, tinham “duas frentes” (ou duas “cabeças”), ou seja, as duas extremidades providas de controles, de modo que uma “frente” passava a ser a “trás”, e vice-versa, de acordo com o sentido em que o veículo se deslocasse. Não sei se em Fortaleza os pontos terminais eram todos assim, mas há casos, também, em que o bonde, ao chegar ao ponto final, faz a “circular”, isto é, a linha faz a volta. Em linguagem ferroviária geral, esse tipo de retorno é chamado de “pera”, talvez por lembrar a forma do contorno da fruta do mesmo nome. Outra alternativa, menos comum que o retorno pela mesma linha e a “circular” ou “pera”, é o triângulo de manobra, uma disposição de linhas composta de três desvios (dispostos como vértices de um triângulo), de modo que o bonde pode manobrar, entrando por uma curva, a seguir recuando e, por fim, entrando pela outra curva em sentido contrário, de frente, para a mesma linha de onde viera. Há também - mais raro ainda que o triângulo - o “girador” (usado com certa freqüência em ferrovias de trens, para girar locomotivas), que consiste num dispositivo giratório com um segmento de linha na parte superior, na qual o veículo entra, é girado e, em seguida, volta à linha, voltado em sentido contrário.
sobre o mesmo - Pode-se dizer sobre o fio, dando-se a entender que o carretel (ou “carretilha”, ou “trolley”) corria encostado ao fio; mas fazia-o por debaixo, ou sob o mesmo.
outro motor - Cumpre aqui esclarecer sobre algumas questões de nomenclatura: a) Motores: Na verdade, o articulista está-se referindo, neste caso, aos controles e não aos motores. O controle é que pode ser usado ora de uma, ora de outra extremidade do bonde, de acordo com o sentido de marcha. Os motores, propriamente ditos, são os motores elétricos de tração, instalados junto aos rodeiros (eixos com as rodas) - aos quais transmitem o movimento, por meio de engrenagem - e à estrutura à qual são acoplados os mesmos. Realmente podem ser dois, ou quatro, embora os bondes de truque único (quatro rodas) nunca tenham mais de dois, um em cada rodeiro (eixo com rodas). Bondes de dois truques (oito rodas) podem ter dois ou quatro motores. Embora seja possível rodar com parte dos motores, os bondes trafegam, normalmente, com todos os motores - sejam dois ou quatro - ligados, independente do sentido de marcha, sendo que cada controle não é conectado apenas ao(s) motor(es) próximos à extremidade que lhe cabe, mas a todos. b) Relógio registrador: Conforme o próprio texto explica em seqüência, trata-se do dispositivo que, acionado pelo condutor (cobrador das passagens), marcava o número de passageiros cobrados, por intermédio de um cordão (disposto ao longo, geralmente acima, de outro cordão, o da sineta - ou campainha - de solicitar parada do veículo, mencionada adiante, no texto). Não era, portanto, um dispositivo de acionamento eletro-mecânico. A manivela - já comentada -, esta sim, atua no acionamento da propulsão.
Em certos desvios havia uma espécie de agulha - Agulhas: Na verdade, os desvios sempre têm agulhas; os cruzamentos simples é que não precisam delas.
horário das tranvias - “Tranvia” é o mesmo que bonde.


Veja também:

Crédito: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 29 de dezembro de 2002
Fotos: Todos os créditos dados

O bonde (IV) - Soares Moreno


Bonde elétrico Soares Moreno nº 73. Arquivo Luis Antonio Alencar

Assim, a cidade de Fortaleza, por estar dividida em quadrantes, a zona oeste era servida por três linhas de bonde - Jacareacang
a, Via Férrea, por assim dizer, e a linha Soares Moreno, da qual nos ocuparemos agora.

Na retangularidade de um quadrilátero a linha do bonde Soares Moreno - saía da Praça do Ferreira, ponto de convergência de quase todas as linhas, e tomava rumo pela Guilherme Rocha até a rua Tereza Cristina, dobrando à direita e, nesse percurso atingia a esquina da Rua Senador Castro e Silva, onde dobrava à esquerda para estacionar de frente ao Cemitério São João Batista - também conhecido como aprazível “chácara do Sr. Cândido Maia” - decantado nos versos da poetisa Letícia Câmara - tia de D. Hélder Câmara, irmã do dramaturgo teatrólogo Dr. Carlos Câmara. Mas voltando à vaca fria, para ligeira e jocosa explicação sobre a denominação dada ao cemitério. Prendia-se ao fato do Sr. Cândido Maia ser à época o administrador do Cemitério São João Batista, após a mudança do local que deu origem ao segundo. Pois o Cemitério São Casimiro, como anteriormente era conhecido, situava-se ao lado da Estação Central onde hoje se localizam várias dependências da RFFSA (antiga R.V.C.).

Com valiosa informação de um dos maiores conhecedores da história do Ceará, pela vivência no tempo e possuidor de prodigiosa memória - dizia meu inesquecível avô, padrinho e benfeitor - Prof. Dias da Rocha... que na década de 1870 a epidemia que assolou nossa cidade tomou proporções tão agigantadas, que o Cemitério São Casimiro ficou impossibilitado de proceder como fazia antes o sepultamento, diante do grande número de pessoas estrangeiras que aqui chegavam e eram acometidas da peste, razão pela qual abriu-se vala comum para sepultar os vitimados pela peste bubônica.

Dessa forma deu-se início ao Cemitério São João Batista - 1880, sob administração do Sr. Cândido Maia, que durou por muitos anos, passando mais tarde a administração ao construtor licenciado - Marcelo Galvão, o qual permaneceu por longos anos administrando o “Campo-Santo”, como era também conhecido. E como estamos a alguns passos das covas de entes queridos, vale agora lembrar o escrito na lápide do grande poeta Quintino Cunha, onde se lê:

“Diz a Sagrada Escritura,
Que Deus tirou o mundo do nada
E eu nada levei do mundo”

Dizem ainda que os boêmios prosistas aproveitavam o prateado “luar de agosto” e, com seus violões, prostrados à frente da “última morada” entoavam canções, evocando o passado e a lembrança dos entes queridos que dormiam o sono eterno no campo-santo. Também não poderia faltar quem na incredulidade cantarolava:

“incarquei, incarquei a cova dela
uma voz, uma voz lá do alto arrespondeu
Arritira arritira o pé de riba
Deixe o amor, deixe o amor que já foi teu”.

E por aí vão os cantores e trovadores que exprimem seu bem-querer e sua amizade por diversas formas - assim as louvações se repetiam na campa dos que se foram chamados pela morte (parca).
O nosso passageiro ilustre do bonde Soares Moreno é o abolicionista e intérprete comercial Alfredo da Rocha Salgado, morador da grande vivenda “Itapuca Vila”, cujo imóvel num estilo primoroso da arquitetura se sobressaía das demais casas e bangalôs da época. Ocupava quase uma quadra das ruas Guilherme Rocha - frente, Princesa Isabel - lado nascente, Tereza Cristina - lado poente e a poucos metros da rua Liberato Barroso.

Um pouco de sua biografia diz-nos que:

Alfredo da Rocha Salgado nasceu no dia 01.09.1855 e faleceu em 13.04.1947. Intérprete comercial nas línguas inglesa, francesa e alemã; funcionário da Casa Inglesa constituída por sociedade anônima sob o título - Casa Salgado S.A., de grande atuação na economia cearense, sendo a primeira a montar prensa hidráulica para o enfardamento do algodão no nosso Estado.

Entusiasta das causas nobres, foi abolicionista de primeira linha, dos de frente sem receio. Um dos fundadores da afamada sociedade mercantil “Perseverança e Porvir”, em 1879, sob cuja inspiração veio a formar-se a “Cearense Libertadora”, que agitaria e levaria até o final a luta vitoriosa da emancipação dos escravos na Terra da Luz. (Famílias de Fortaleza - Dr. Raimundo Girão, 373/375).

Apesar de ser bom cavaleiro e do animal muito se utilizar como transporte, entretanto na frente de sua chácara, os bondes obrigatoriamente faziam parada, que mais por privilégio atendia quem morava na Vila Ipu e adjacências.
O bonde Soares Moreno era utilizado essencialmente por pessoas que moravam nas ruas centrais até as ruas Pe. Mororó e Agapito dos Santos, bem como os assíduos frequentadores do Cemitério São João Batista, que diariamente visitavam os seus entes queridos como se cumprissem uma verdadeira obrigação de comparecer ao local do sepultamento como se vivo estivesse, ou não tivesse se conformado com a partida do ente querido para o mundo maior.

Assim, o dia de Finados, dia de prestar homenagem aos mortos, levando coroas, flores e velas, tornava grande o movimento na linha de bonde que se encarregava de transportar pessoas de outros pontos da cidade, à Cidade dos pés juntos”, como diz a gíria cearense.

Afinal, em 09 de novembro de 1913, com a presença do intendente municipal Guilherme César da Rocha, marcada pela alegria do povo, ocorre a festividade inaugural do tráfego de bondes elétricos na linha da Estação (Joaquim Távora), no dia 12 de janeiro de 1914, é inaugurada a linha entre a travessa Morada Nova e a Praia de Iracema, denominada Linha da Praia. No mês seguinte, a 14 de fevereiro de 1914, começava a funcionar a linha do Outeiro (Santos Dumont/Aldeota).

Cada passagem custava $100,00 (cem réis).

No livro “História da Energia no Ceará”, de Ary Bezerra Leite, afirma que “Promoção em favor dos estudantes, lançada em 1917, assegurava aos alunos menores de 14 anos das escolas ‘bem conhecidas’, abatimento de 50% das passagens mediante solicitação mensal da direção dessas escolas, constante de emissão de cadernetas de 52 bilhetes nominais e intransferíveis para uso durante o mês especificado e no período entre 6 (seis) horas da manhã e 6h30min (seis horas e trinta minutos) da tarde.” Existiam também “passes” que asseguravam gratuidade a seus titulares nas viagens de bondes, concedida aos empregados da empresa e a outras pessoas, por livre determinação da gerência.
Outro aspecto merecedor de realce refere-se ao fato de a Ceará Tramway Light procurar “desfazer-se do patrimônio insersível da antiga Ferro-Carril”. Por contrato de 31 de janeiro, assumiu a responsabilidade pela conservação e trato de 200 (duzentos) muares o Sr. Francisco Correia, a quem se conferia o direito de “preferencial de compra”.
Mais adiante acrescenta o professor Ary Bezerra Leite em “Os Bondes Elétricos The Ceará Tramway Light and Power Company LTDA”. - Os bondes a burro foram vendidos para empresa Teixeira Mendes, de São Luís, Maranhão, contando que, na chegada, alguns veículos foram jogados ao mar pelos catreiros que protestavam indignados pela compra de verdadeira sucata.
A Ceará Light - pelo que se sabe, fazia algumas concessões aos passageiros concedendo “passes” e outras benesses aos estudantes nos seus bondes; entretanto, tinha uma passageira honorária que nunca pagou passagem nem tão pouco lhe cobravam. Era por assim considerar “a passageira liberada de ônus” - “remida ex-causa” (liberada de ônus) ou “auctoritate propria” (por autoridade própria). Subia no bonde - de repente todos cediam lugar para sentar, não agradecia nem pedia lugar, tudo lhe era ofertado com o máximo respeito e maior cautela para não suscetibilizá-la no menor gesto.

Impassível, quase inerte, enquanto não lhe magoassem os calos, não incomodava ao vizinho nem com esse queria “papo”. Alguma vez se esse estivesse fumando pedia um cigarro... Enfim uma passageira “HONORÁRIA” que durante o período de aula do Liceu dificilmente subia no bonde Jacarecanga. Preferia pegar o Soares Moreno e a pé se deslocar para as casas de pessoas generosas que moravam na Jacarecanga e todos os dias lhe ofereciam almoço e jantar. Desnecessário citar as bondosas famílias.
Essa tão respeitada senhora, literalmente falando, não era senão - a famosa, temida e achincalhada - “Ferruge”. Por ser um tipo exótico e demais conhecida em toda essa nossa Fortaleza, marcou época nos anos 40 e 60 perambulando, percorrendo as ruas centrais, tomando assento nos bares, restaurantes, sem pedir nada. Não ingeria bebida alcoólica. Os esmoleres mais compadecidos ofertavam-lhe dinheiro, cigarros, lanches, etc. Cortavam-lhe os cabelos à moda masculina, ou seja, corte a máquina quase zero - hoje esse corte é bastante usado por atrizes e artistas de televisão - de tal forma o corte do cabelo que quando começava a crescer ela própria se encarregava de puxar os fios arrancando-os, fazendo uma “cara feia” de meter medo. Conduzia como parte de sua indumentária um lençol que a envolvia desde os ombros guarnecendo os braços, para se abrigar do frio das noites, nos locais onde pernoitasse.
Mas esse mutismo era quebrado quando algum aluno do Liceu, - mais freqüente - ou outro gaiato se escondia por detrás do poste de iluminação e gritava: “A Ferrugem é homem” - aí acabava o tempo bom. De repente ela se arvorava, abria o dicionário de pornografia e terminava por exibir as partes pudendas e, batendo com a mão na genitália, dizia: - “Taqui não sou homem não!... seu f.d.p!...”.
Por conseguinte, da “Ferruge” nada se sabia em relação à sua origem. Parecia não ter família aqui e nem se podia atribuir a sua naturalidade diante do seu estado patológico. Insana, não sabia se comunicar. Era de baixa estatura, traços fisinômicos corretos, olhar denunciador da entidade nosológica de que era portadora. De certa forma compensada na sua infeliz sina, porque todos dela se compadeciam e na sua desdita não faltava quem dela se condoesse, ofertando-lhe um prato de comida. Após a refeição se prostrava debaixo do ficus-benjamin, geralmente o da casa do Dr. Pedro Sampaio, esquina da rua Guilherme Rocha com Av. Cel Filomeno Gomes; tirava suas sestas sem nenhuma preocupação, nem de saber se era tempo de plantar ou colher, e, nem de escolher os governantes - porque não sabia o que era eleição, eleitor, e muito menos o que significava o dever de votar, porque disso ela nada atinava e nem desconfiava por ser abúlica. Assim, alheia a tudo que a seu redor se descortinava, sem obrigações ou deveres, a vida não passava do simples amanhecer e anoitecer. Tinha como companheiro da noite, um céu azul anilado escuro, com estrelas cintilantes que vigiavam-na através das réstias que se infiltravam por entre as folhas das árvores a alcatifar o seu manto que servia de proteção ao frio. Ah! Quanta ironia do destino. Pobre “Ferruge” que da sorte foi enteada e como madrasta teve a vida como errante, deve hoje estar no céu. Da vida não tinha consciência por ser tudo sem importância, nem responsabilidade com o viver, por não ter conhecimento da própria existência. Talvez mais feliz do que os que na sua perfeita sanidade mental são verdadeiros desvairados... A “Ferruge” foi feliz porque na sua irresponsabilidade nunca teve o propósito do mal, não soube avaliar o bem, não pecou por pensamentos, palavras ou omissões, mas cumpria sem saber os Dez Mandamentos. Será que foi somente infeliz? Só Freud explica...

Zenilo Almada
Advogado


Gíria cearense - Naturalmente, com o afluxo de grande parte do povo cearense - e nordestino em geral - para outras regiões do Brasil, essa gíria se difundiu e hoje é usada largamente em nosso País.


Linha do Outeiro - (Santos Dumont/Aldeota)


Continua AQUI

Veja também:



Crédito: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 8 de dezembro de 2002
e Fotos Arquivo Fortal


quinta-feira, 17 de junho de 2010

O bonde III

Bonde na Estação da RVC, 1918. - Arquivo Luis Antonio Alencar

Quem teve a felicidade de se transportar utilizando-se do bonde até os fins dos anos de 1947, e ultrapassou meio século de existência, pode ainda recordar para dizer da sensação que sentia até no balanço causado pela trepidação do bonde que vibrava no deslizar dos trilhos. Tão perfeitamente ajustados ao solo como duas listras de ferro que pareciam intermináveis na sua forma perpendicular. Na ardência do sol a pino essas duas listras negras reluziam como se fossem faiscar no calor, capaz de queimar quem ousasse pisar sobre as mesmas descalço. Era o trilho de ferro de intenso brilho e por onde os bondes passavam conduzindo passageiros. Contrariamente, à época invernosa, os trilhos parecia que se escondiam nas pequenas poças e regos d’água formados pelas chuvas caídas ao solo, como se estivesse das nuvens recebendo prenúncio da chegada do inverno; para isso o bonde se munia com o aparato das sanefas brancas listradas de verde, que acionadas verticalmente deslizavam por fresta e fechavam o compartimento de cada banco tornando-o protegido das águas das chuvas. O mesmo ocorria quando o sol estava a pino e muito quente. Embora, às vezes, essa fase invernosa não se prolongasse quase nada, contrariando o período de sua duração, do seu devido tempo, eis que a escassez pluviométrica se acentua e o nosso Ceará vem a sofrer as agruras de uma seca, que no seu império absoluto, expulsa levas e mais levas de nossos irmãos sertanejos que por aqui se achegam à procura de emprego e melhores dias para a família. Mas, mesmo assim, o sofrido cearense que de tudo tira proveito, até do sofrimento e da desgraça atmosférica, para amenizar o sofrimento causado pelo efeito da metereologia, arranja jeito para filosofar, quando resolve emigrar do sertão bravo e toma o trem rumo à Capital. E dentre eles surge sempre o matuto inteligente e astuto que quando desce do trem sabe que chegou à Capital; observa a diferença logo na Estação central, e quer satisfazer a curiosidade de conhecer o tão falado “bonde elétrico” que tem na Cidade e transporta gente, porque até então só conhece além do trem “o lombo dos animais”, automóvel, nem sabe se é “homem ou se é mulher”... Em aqui chegando e descobrindo o bonde verseja no repente: I Eu vim do sertão, pro’ mode vê A capitá do Ceará! Eu vi coisa do árcu da véia! Qu’i faz à genti siarripiá. II Q’uando eu cheguei na estação centrá Vi u’ma luz acendê sem pavio U’ma “gaiola cum nome de bonde”, Qui vinha danada pu riba du trilhu!! III Na casa em qui fui amoitado, Tinha u’ma “tirrina” no pé da mesa O povo cuspia dentro, Meu Deus nunca vi Tama-nhá nogenteza. Daí corria o olhar para cidade baixa, ou seja, a descida do curral das éguas e logo se engraçava de uma “grinfa” já traquejada e levava para dançar no Salão Azul ou no Bola Preta... ou para ver o “Açude do Sr. Boris” - a Praia Formosa. O nosso passageiro ilustre do bonde Via Férrea - é o naturalista, - o cientista Prof. Dias da Rocha, que morou durante 61 (sessenta e um) anos (de 1899 a 1960) na Rua 24 de Maio No 214, há exatamente uma quadra da Praça da Estação Central - entre as ruas Sen. Castro e Silva e Senador Alencar, vizinho à antiga Escola de Artífice do Ceará (esquina da Rua Senador Alencar). Um pouco de sua história: - “Dic. Barão de Studart”. Francisco Dias da Rocha - Filho do negociante português Joaquim Dias da Rocha e D. Francisca de Paula Rocha, nasceu em Fortaleza a 23 de agosto de 1869. Avós paternos: Dr. Maximiliano Dias da Rocha, que dirigiu durante alguns anos o antigo Colégio da Formiga, na cidade do Porto, e foi professor de Latim na mesma cidade, cadeira que obteve por concurso após a revolução de 1820, e D. Maria José Pinheiro Chagas, prima legítima do escritor Pinheiro Chagas. Avós maternos: Professor Francisco de Paula Cavalcanti e D. Cosma Rufina de Pontes. Começou seus estudos em 1880 nos Colégios S. José e Atheneu Cearense, mas teve de os suspender em 1886 para dar um passeio a Europa d’onde voltou no ano seguinte. Tinha o propósito de completar os preparatórios para seguir a carreira de Medicina, o que aliás não realizou a conselho do pai, que via nele o continuador de sua casa comercial. Constrangido, abraçou essa carreira, mas ao mesmo tempo dedicava as horas que lhe sobravam às leituras das Ciências Naturais e à aquisição de espécimes da fauna e flora cearense. Em 1898, deixando o comércio, entregou-se completamente aos estudos das ciências, suas prediletas, e tomaram tal incremento suas coleções que organizou um valioso museu a que deu o nome de “Museu Rocha”, o qual se compõe de seções: Botânica, Arqueologia, Minerologia e Zoologia, e um jardim com coleções de Fougeras, Cactáceas e Aráceas cearenses e de muitas outras plantas. Para maior divulgação das raridades que possui, e como instrumento de estudo, deu início à publicação do Boletim do Museu Rocha. O primeiro número dessa interessante publicação, correspondente a janeiro, foi impresso nas oficinas do Cruzeiro do Norte, editora e Livraria Araújo e distribuído a 6 de junho de 1908. - “Dicionário Bio-Bibliográfico Cearense pelo Dr. Guilherme Studart - Barão de Studart - Volume Primeiro - 1910. Pág. 292”. O Prof. Dias da Rocha, juntamente com outros estudiosos fundaram em 1916 a Faculdade de Farmácia, da qual foi ao mesmo tempo aluno e professor de Botânica Aplicada à Farmácia e História Natural. Em 1918, mais uma vez, congrega-se com novo grupo para fundar a Escola de Agronomia do Ceará, onde foi seu segundo diretor e professor de Fitopatologia e Botânica, recebendo mais tarde em sua homenagem, o Centro Acadêmico Dias da Rocha, o seu nome e, em seguida, por iniciativa de seus ex-alunos, a herma no pátio da Escola de Agronomia em homenagem aos seus 90 anos - “Zenilo Almada - Revista do Instituto Ceará - vol. 107 - 1993. pág.302”. Ainda em homenagem ao professor Dias da Rocha, foi-lhe concedida a denominação do seu nome numa das ruas do bairro Aldeota, por iniciativa do grande e inesquecível amigo Dr. Raimundo Girão quando secretário de Cultura do Município.

Na foto, um bonde elétrico no centro da capital cearense, em meados do século XX. Na altura do depósito, o bonde dobrava à esquerda e, depois de cerca de 50 metros, na rua 24 de Maio, parava na esquina da rua Castro e Silva. Virava a lança, voltava e parava de novo ao lado da Estação Central, para dar embarque (serviço inverso de quando vinha trazendo passageiros para os trens urbanos) aos passageiros que haviam chegado ou outros usuários que demandavam o centro da cidade. Mais histórias: Um viajante inglês registrou a existência de bondes em Fortaleza na década de 1870, mas outras fontes afirmam que a primeira linha de bondes puxados por cavalos, entre a estação ferroviária e o centro de Fortaleza, foi inaugurada pela Companhia Ferro-Carril do Ceará (FCC) em 25/4/1880, usando bitola de 1.400 mm a mesma usada pela Trilhos Urbanos na linha de bondes a vapor em Recife. A Ferro Carril do Parangaba abriu uma linha para o lado Sul da cidade em 18/10/1894 e a Ferro Carril do Outeiro (FCO) iniciou sua linha no lado Leste de Fortaleza em 24/4/1896. A Ceará Tramway, Light & Power Co., Ltd., registrada em Londres em 11/12/1911, comprou os sistemas da FCC e da FCO e inaugurou a primeira linha de bondes elétricos da capital cearense em 9/10/1913, agora com bitola de 1.435 mm. A linha Parangaba foi fechada em 1918 e não chegou a ser eletrificada. Todos os veículos elétricos de Fortaleza tinham um padrão, com troles: a United Electric construiu 30 em 1912 e dez em 1924. A linha de bondes de Fortaleza foi fechada por problemas elétricos em 19/5/1947 - três semanas após o fechamento do sistema de bondes em Belém. Vinte anos depois, em 25/1/1967, a Companhia de Transportes Coletivos inaugurou duas linhas de trólebus entre o lado Oeste da cidade e o Largo do Carmo.

A linha do bonde Via Férrea, cujo nome deve ter sido atribuído em virtude do fato de estacionar na Praça da Estação Central - rede Ferroviária Cearence (RVC), seu percurso obedecia ao seguinte itinerário: partia da Praça do Ferreira - seguia pela rua Guilherme Rocha entrando à direita na rua Barão do Rio Branco até alcançar a esquina da Santa Casa de Misericórdia, quando entrava à esquerda na Rua Dr. João Moreira, passando em frente à Estação Central (trem) e dobrando à esquerda para estacionar no fim do quarteirão da quadra da antiga Praça Gal. Sampaio, hoje - Praça Castro Carreira, quando inicia a rua 24 de Maio, esquina com Senador Castro e Silva. O retorno obedecia o mesmo percurso. Como se pode fazer idéia, era a menor linha de bonde da Ceará Light existente à época, mas atendia a grande número de passageiros que iam em visita aos doentes da Santa Casa e aos detentos do Casarão da Rua Sen. Jaguaribe - Cadeia Pública, cujos fundos davam para a rua Dr. João Moreira, na quadra da rua Senador Pompeu - (lado nascente) e Gal. Sampaio - (lado poente), no início da descida do Curral - local onde se aglutinava maior número de prostitutas, reduto de boêmios, músicos e cantores, sobretudo, para os que apreciavam os banhos de mar na Praia Formosa. Daí surgiu um barracão de madeira - pintado de cor verde, que servia para guardar roupas e pertences dos banhistas e, com direito a banho com água doce, que mais tarde virou associação para dar início ao grande clube Náutico Atlético Cearense. O bonde Via Férrea atendia aos passageiros que se dirigiam à Santa Casa de Misericórdia e aos reclusos e detentos da Cadeia Pública, que cumpriam pena naquela casa de correção. A pé enxuto desciam os passageiros que iam apanhar ou deixar parentes e amigos na Estação Central, para viagens aos sertões cearenses. Atendia de certa forma a várias camadas sociais. No bonde viajavam as elegantes senhoras enchapeladas e portando guarda-sol, que se dirigiam à Praça do Ferreira para fazer compras, bem como as que para sessões à tarde se dirigiam aos cinemas Majestic, Moderno, Diogo ou, ainda, para tomar sorvete no Eldorado do inesquecível e querido amigo Antônio Figueiredo (“Figueiredão”) que, com D. Márcia Amora, formava uma grande família. A sorveteria “Eldorado” tinha fama por fabricar os melhores sorvetes da cidade, era por isso ponto de encontro dos jovens e de atração da sociedade da época, que para lá se deslocava para saborear os mais típicos sorvetes e lanches de excelente qualidade. O Bar Jangadeiro do Sr. Luís Frota Passos - depois local ocupado pela Farmácia Faladroga é, hoje no mesmo local, loja de tecidos da família Otoch - na rua Floriano Peixoto, na Praça do Ferreira. Era o mais requintado bar da época, por manter diariamente uma vesperal animada por conjunto de pau e corda, quase uma orquestra de câmera. A freguesia se compunha de pessoas gradas, pertencentes à camada social de alto coturno, porque dela fazia parte a aristocracia da cidade que, depois, com a chegada dos americanos a esta capital nos anos 40 (tempo de guerra), tomou ares cosmopolitas e se misturou com lindas jovens casadoiras, dando origem às famosas e discriminadas coca-colas (moças faladas da época). Esse envolvimento das moças com os soldados americanos que aqui chegaram e permaneceram por algum tempo despertou certa disputa com alunos do Colégio Militar, que vinham do Sul e eram colocados em segundo plano pelas jovens que se permitiam a namorar soldados americanos. Aqui ainda não se conhecia a bebida Coca-Cola, que foi trazida por eles, e por isso apelidaram de “coca-cola” as jovens que namoravam americanos formando uma extensa lista... Mas deixemos as coca-colas sossegadas e falemos do quarteirão da rua Floriano Peixoto, situado na quadra da Praça do Ferreira, do delicioso caldo de cana do “Merendinha”, da família Quezado, na década de 50, perto da Rotisserie, onde se bebia o melhor caldo de cana, com o infalível pastel - de carne ou queijo - onde quase toda turma do Liceu, que estudava à noite, descia do ônibus Jacareacanga, na alameda situada bem no centro da Praça do Ferreira e corriam rápido para comprar o caldo de cana, esfriando o pastel nos grandes ventiladores, para matar a fome da rapaziada que não tinha tempo de jantar antes das aulas noturnas. Existia também já àquela época um pequeno armazém misto de mercearia e lanchonete - que tanto vendia caldo de cana, pastéis, bolos e outras guloseimas, bem como enlatados finos, ameixas, vinhos, passas e frutas secas vindos da Europa. Era a Leão do Sul - do Sr. Dimas. Mais adiante, em maior proporção, estoque e variedade, a Casa Miscelânea - do Sr. Frota, na qual gerenciava o ilustre advogado Airton Angelim. Mas, do Bar Jangadeiro ficou apenas uma paisagem viva, vista de dentro do bonde pelos passageiros, a contemplar com os olhos aquele belo espetáculo que descortinava a exuberância do requintado ambiente, deixando invejosos os passageiros do bonde que não podiam daquele agradável momento participar. Mas! Não fique triste porque tudo já passou e novos ambientes mais sofisticados e, inusitados, surgiram nessa nossa querida Fortaleza que hoje nem vale a pena lembrar porque “Nada disso nos faz companhia e ainda nos rouba a solidão” como se apregoa!!!

Zenilo Almada Advogado


"vibrava no deslizar dos trilhos" - É mesmo um efeito muito peculiar, obtido principalmente ao viajar-se em carro aberto - como eram os bondes de Fortaleza -, sentindo-se, além dos efeitos vibratórios comentados pelo articulista, a aragem do vento e um “astral” de liberdade muito característico.
"listras negras" - Os trilhos eram, na verdade, da mesma cor dos trilhos de trem, ou seja, da cor do aço polido, ou prateados, mas, devido ao fato de os trilhos de bonde terem fendas, formava-se, às vezes o efeito fotocromático a que alude o articulista.




Veja também:


O bonde - Parte IV (Bonde Soares Moreno)
O bonde - Parte V (Bonde Benfica)
O bonde - Parte VI (Bonde Praia de Iracema)
O bonde - Parte VII (Bonde Prainha) 
O bonde - Parte VIII (Bonde Outeiro)
O bonde - Parte IX (Bonde Alagadiço)
O bonde - Parte X (Bonde Joaquim Távora)
O bonde - Parte XI (Bonde Prado)
O bonde - Parte XII (Bonde José Bonifácio)


Fonte: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 17 de novembro de 2002 e fotos Fortal


O bonde II - Bonde Jacarecanga

Enfim, como tudo na vida tem seu tempo certo, até para se amar e porque não dizer também para desamar, quando o espírito perde a força de voar e fica desasado, desolado . . . ou desazado no conceito do outro pelo descuido do amor. E, daí, só o tempo se encarrega de dar soluções para cada caso. Mas, voltemos ao Bonde e sua significação.
Do inglês BOND . . . Sin. bras. Veículo elétrico de transporte urbano, para passageiros ou carga, que se move sobre trilhos e pode ser fechado ou aberto, com estribo corrido e bem particular a este; elétrico. Bra. Gíria. Mau negócio; logro; mulher feia, sem atrativo; bofe, bagulho. Bras. Futebol. - Jogador ruim. - Comprar bonde. Bras. Gíria. - “Cair em conto do vigário”. Fazer mau negócio. - “Tomar o bonde errado”. Bras. Gíria. - Enganar-se quanto ao resultado de negócio ou aventura em cujo bom êxito se confiava muito; malograr-se, frustrar-se; errar de porta. E, por aí vai o anedotizar que para muitos casos tem sua aplicação adequada. Andar no bonde era acima de tudo uma forma de se distrair até alcançar o lugar desejado num transporte muito agradável em que quase todos se conheciam por serem residentes do mesmo bairro ou adjacências. Cumprimentavam-se, faziam trocas de gentilezas, “pagando a passagem um do outro” e, em alegre tom, dizia - “fulano a passagem está paga”. . . Já se sabia que o cobrador viria entregar o “cupom” que garantia o pagamento da passagem e era uma cortesia que se fazia ao amigo. Mas, ainda no bonde Jacarecanga, os liceistas (que tinham fama de insubordinados) que por vezes estavam sem o dinheiro para pagar a passagem e para lograr o condutor do bonde, entre si se combinava; um sentava-se mais atrás e o “sem dinheiro”, geralmente tipo loquaz, o segundo sentava mais à frente. - Quando o que sentava à frente pagava, e com a saída do cobrador dizia: “fulano já paguei”. Naturalmente, todos viam o gracejo e quando o cobrador se aproximava - o segundo dizia: “já foi paga”. Vinha em seguida a cobrança com a indagação: - “Quem pagou?” Até que o cobrador desconfiado chegasse ao local do pagador o bonde tinha percorrido boa parte do percurso, ou o itinerário chegado ao seu ponto final.
Foto do bonde elétrico da linha Joaquim Távora cheio de funcionários da Tramway. O trajeto desse bonde era: Major Facundo /Liberato Barroso/Floriano Peixoto/Pedro I (Igreja coração de Jesus)/Visconde Rio Branco onde ficava a garagem, almoxarifado e mecânica da empresa.  O bonde está passando em frente ao Foto Ribeiro, na Rua Major Facundo  (Pça. do Ferreira), em 1931. Cartão Postal distribuído pela Casa Crysanthemo.

O cobrador quando desabusado, tocava a sineta e parava o bonde. O liceista espreitando o condutor e galhofando exclamava: - “Vou descer, mas também fique certo, vou ‘enredar’ de sua conduta ao Mister Hull, para lhe botar para fora da empresa”, no que era seguido por fortes galhofadas e, para que reinasse a alegria, um generoso passageiro pagava a passagem . . . Isso é de estudante mesmo. . . outros trocavam de lugar no bonde até chegar ao Liceu, se vangloriando nas famosas bochechas no bonde, sempre pendurados nos estribos segurando nos balaústres, expostos ao perigo, mas se divertiam a valer, contando façanha. Como toda empresa estrangeira a Ceará Tramway Light & Power C. o LTD. que aqui obteve concessão para explorar as linhas, por aproximados 34 (trinta e quatro) anos não era diferente das demais empresas estrangeiras. Levava muito a sério suas obrigações, respeito aos direitos e deveres. Em tudo se podia observar o fiel cumprimento, a começar pelo horário de trabalho e exercício das suas atividades, pagamento dos salários e encargos aos funcionários. Quando se aproximava o tempo de finalizar o horário, 11 horas, colocava no frontispício do bonde - local indicativo do nome da linha - lia-se a palavra “recolher”. . . a não ser em dias especiais, fim de ano, carnaval, etc., se prolongava por mais tempo os horários. Assim, se tinha conhecimento do horário, já não pegava passageiro e nem parava nos pontos que costumeiramente desciam ou subiam passageiros. Sua retirada até a “Estação do Bonde”, ponto de recolhimento, era com rigor obedecida dentro do horário estabelecido. Se durante o trajeto apresentasse algum defeito era de imediato colocada placa indicativa - “Estação” - e substituído por outro elétrico. Dessa forma a cidade e os passageiros tomavam conhecimento das ocorrências com os bondes elétricos, porque os redobrados cuidados da empresa, credenciavam-na entre as mais sérias e tradicionais que explorava o ramo de transporte e fornecimento de energia elétrica. Nos anos 40 - tempo de guerra - houve em Fortaleza a hora do apagão - o blecaute, e todos sabiam o horário, tempo de duração para que pudessem se precaver da ausência de iluminação, e era observado com pontual critério. Talvez esse comportamento cuidadoso da Light com as coisas, negócios e obrigações, inspiraram a nossa admiração maior, deixando com a liquidação de suas atividades aqui na nossa Capital, lembrança que ainda machuca com a tristeza de ter deixado partir o bonde - condutor de singularidades hilariantes; portador das saudades que embeveceram um passado ainda não tão distante, mas constrange a lembrança por lamentar a perda de tão útil transporte - o bonde, transportador de alegrias. - No Rio de Janeiro - existiu, dentre outras linhas, a do “Bonde da Alegria”, que deu origem à marchinha carnavalesca que dizia: “A mulher do padeiro, trabalhava todo dia, só viajava no bonde da alegria. . . O padeiro coitado, deixou de fazer pão, não atendeu mais a sua freguesia. . .” (sem nenhuma alusão). Aqui o bonde atendeu com imponência a nossa população, transportando crianças, moços e velhos durante tanto tempo para os diversos bairros da Cidade. Hoje, num retrospecto dos fatos, rebuscando saudades que se misturam com as alegrias vividas, simbolizam verdadeira harmonia de contraste, porque tudo passou com o tempo deixando viva a lembrança a quem Deus concede o prêmio de não perder o juízo para caducar. . . virando criança de novo!!! 


Zenilo Almada Advogado


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O bonde - Parte IX (Bonde Alagadiço)
O bonde - Parte X (Bonde Joaquim Távora)
O bonde - Parte XI (Bonde Prado)
O bonde - Parte XII (Bonde José Bonifácio)



Crédito: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 27 de outubro de 2002


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