Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

domingo, 20 de junho de 2010

O bonde (VII) - Prainha

Bonde em 1920

Depois que comecei a fixar lembranças sobre bondes, observo que ficou na minha retentiva uma sucessão homogênea e quase interminável de uma fisionomia arquitetônica da nossa cidade, onde se vêem comparadas as classes sociais alta, média e pobre numa sensível diferença na forma de habitação. Talvez tenha despertado em mim o desejo de rever outros locais como outras linhas de bondes entre os anos 1940/1950, embora sabendo que os bondes foram retirados de circulação em 1947, na gestão do prefeito Dr. Acrísio Moreira da Rocha, que ainda vivo pode contar a história com detalhes. Pois bem. Mesmo criança sempre tive meu “desconfiômetro” muito aguçado, procurando gravar o que mais poderia prender a atenção, o que pode causar intriga às pessoas dispersivas que não se incomodavam em tomar conhecimento do que se desenrolava ao seu redor. Mesmo porque sinto que não estou entre os que têm o poder de se acomodar só com a contemplação do etéreo.

Mas o agitado barulho dos bondes deixava aos ouvidos a visão tão nítida da trepidação no deslizar das rodas sobre os trilhos, aquele movimento do subir e descer que impulsionado pelo bonde dava a sensação de que estávamos seguindo sempre em linha reta com o olhar na paisagem que corria aos nossos olhos como uma cena cinematográfica.

Bonde na Avenida Pessoa Anta

Desta vez, vamos passear no “Bonde da Prainha”. Êta passeio bom! Vamos subir até a ladeira da rua Almirante Jaceguay em frente à Igreja do Seminário, na Praça Cristo Redentor, defronte hoje ao “Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura” e ver o grande vulto do Cristo Redentor, posicionado nas alturas para o lado sul da cidade, segurando o cetro (bastão) inerte, a olhar o oceano Atlântico e os seus navegantes a bordo trafegando nos navios, botes ou jangadas.

O bonde da Prainha no seu curto itinerário saía da Travessa Morada Nova, detrás da antiga Assembléia Legislativa do Ceará, hoje Museu do Ceará; dobrava à direita na rua Floriano Peixoto, entrando à direita na Travessa Crato e, depois, à esquerda na Av. Alberto Nepomuceno, passando em frente à Igreja da Sé - Catedral; dobrava à direita defronte à Secretaria da Fazenda, passando em frente ao antigo Café Gato Preto e à Companhia de Navegação Booth Line, na rua Pessoa Anta, cujo prédio, mais tarde, transformou-se na boite Tabaris, mais conhecida como lupanar do famoso Zé Tatá - cujo nome verdadeiro era José Vicente de Carvalho -, sobralense que elegeu nossa cidade para suas libações, abrigando em sua pensão odaliscas de diversos lugares do Ceará e também importadas do Maranhão, Pará e Piauí, que por aqui chegavam para iniciar sexualmente a rapaziada que, depois, se constituíam de pacientes dos enfermeiros Mundico - Dr. França - e Almeida; entrava à direita na Av. Jaceguay - ao lado da Capitania dos Portos, Praça Almirante Tamandaré e subia a ladeira até a Igreja do Seminário - Av. Monsenhor Tabosa, ao lado da Praça Cristo Redentor.

Ao lado direito (norte) da Praça Cristo Redentor, esquina com a ladeira da rua Almirante Jaceguay (leste), existia a linda chácara do gerente da Ceará Tramway Light & Power Cia. Ltda. - o engenheiro londrino Francis Reginald Hull - mais conhecido como Mister Hull - onde o bonde estacionava de frente para a Igreja da Prainha - e seminário diocesano de Fortaleza.

Esta foto foi encontrada num encarte contendo diversas fotos, oriundas do Arquivo do Nirez, de igrejas antigas de Fortaleza. Nesta aparece um bonde de uma das linhas da Prainha, que um dos consultados (gente da velha geração) afirmou ser Prainha-Seminário (o que faz sentido, pois o ponto final ficava próximo do Seminário, na Prainha). Dr. Zenilo Almada acha que não houve linha com essa denominação. A rua era a então Coronel Bezerril, hoje General Bezerril. A Praça ao lado chama-se General Tibúrcio, mais conhecida por Praça dos Leões devido a existência de duas belas esculturas encimando a escadaria de acesso da ou para Rua Sena Madureira. A Igreja de Nossa Senhora do Rosário, inaugurada no Século XVIII, é considerada a mais antiga de Fortaleza. A foto data de 1908. A edificação grande, ainda existente, era do então Hotel Brasil. A parede ao lado da palmeira é dos fundos da antiga Assembléia Legislativa. Entre o Hotel e a Assembléia divisa-se a Travessa Morada Nova, onde posteriormente passaram a trafegar bondes de outras linhas. Na época os bondes iam até mais adiante, ingressando na Rua Guilherme Rocha, parando ao lado da “Rotisserie”, acho que se chamava Palácio Brasil, entrando depois na Rua Floriano Peixoto rumo aos seus destinos. (Adolpho Quixadá)

O retorno era quase o mesmo percurso de ida. Ao chegar na Av. Alberto Nepomuceno, fazendo contorno pela Secretaria da Fazenda, passava em frente ao Quartel General da 10a Região Militar, Arquivo Público no mesmo local em que mais tarde foi edificado o Fórum Clóvis Beviláqua, hoje no bairro Edson Queiroz - Praça D. Pedro II; entrava na Travessa Crato, dobrava à direita na rua General Bezerril até alcançar a Travessa Morada Nova.

O nosso ilustre passageiro da linha do bonde - Prainha - não poderia deixar de ser o gerente da própria empresa - Ceará Tramway Light & Power Cia. Ltda., o nosso engenheiro Francis Reginald Hull - “Mister Hul”; - que durante longos anos gerenciou, aqui em nossa terra, os destinos da empresa, permanecendo por entre nós até o término do contrato que mantinha com a Prefeitura Municipal de Fortaleza - 1947, que é o mesmo ilustre Mister Hull que dá nome à grande Avenida Barro Vermelho, depois Antônio Bezerra - e hoje boa parte da avenida que liga a BR 222 à Caucaia.

Mister Hull permaneceu por muito tempo na gerência da Ceará Light, residindo na aprazível vivenda de dois pavimentos, com terreno esconso, cheio de plantações, com direito à passagem do Riacho Pajeú, na Praça Cristo Rei, esquina com Av. Jaceguay, início da rua do Seminário - hoje Av. Monsenhor Tabosa, cuja vivenda cercada por um lindo jardim, feericamente iluminado dando-nos a impressão de um palacete de Londres, com uma torre elevada e vetusta em forma de mirante, que servia como observatório aos estudos do Mister Hull. Segundo se comenta, Mister Hull era profundo conhecedor da meteorologia, da climatografia nas suas variadas manifestações em nosso estado. Hoje, nesse local, após a demolição de vários prédios também suntuosos, veio dar origem ao Pólo de Cultura Dragão do Mar, fazendo-se um retrospecto dos prédios que circundaram a praça fazendo contornos, tinham fachadas e modelagens dos antigos casarões que não mais existem e tornam difícil retroceder ao passado, para se tipificar seus estilos antigos modernizados, atualizando com suas linhas arquitetônicas, distinguindo uma da outra, ou seja, o que era antigo continua antigo com a feição mais cuidada, conservando sua originalidade, enquanto o Pólo de Cultura Dragão do Mar obedece ao estilo moderno e atualizado sem se chocar com o já existente.

A torre da casa de Mister Hull

Nesta despretensiosa crônica à assessoria da Coelce, na pessoa da distinta senhora Ana Lúcia Girão, excelentes subsídios sobre a História da Energia do Ceará, do ilustre autor Ary Bezerra Leite e que nos traz muita elucidação.

“A Segunda Grande Guerra (1930/1945) impedira a importação de novos veículos e de peças de manutenção. Findo o conflito universal, dois anos após, em 1947, os bondes, sem energia suficiente para acioná-los e sem a indispensável manutenção mecânica, saíram de circulação”; E mais adiante conclui:

“E ninguém teve sequer a lembrança de criar um ‘Museu do Bonde’, de modo a registrar no contexto da História de Fortaleza, um dos seus mais interessantes capítulos. Até isso, todavia, o livro de Ary Leite consegue resgatar, em parte, através de preciosos documentos iconográficos obtidos junto a acervos das empresas sucessoras da Ceará Light e nos arquivos particulares dos herdeiros de Mr. Hull (História da Energia do Ceará - Ary Bezerra Leite).

Blanchard Girão - Memórias - escreveu “O Liceu e o Bonde”, excelente trabalho que faz parte indelevelmente do seu álbum de recordações da nossa cidade de Fortaleza nas décadas de 1930 e 1940 no período de sua infância e adolescência. Ele diz:

“O bonde que conheci era o ‘Tramway’, veículo movido a eletricidade, amplo, arejado, porquanto todo aberto, valendo-se de sanefas de listras verdes e brancas como proteção da chuva ou do sol mais intenso. Possuía dois estribos laterais, além de pára-choques na parte posterior - igual de ambos os lados, trocando-se, no final da linha, a lança condutora de energia e o lugar do motorneiro. De cor verde (houve um tempo, antes de mim, que teria sido branco), o bonde, além do nome de indicação do bairro, possuía uma lâmpada colorida que indicava o seu destino. Circulou de 1913, quando substituiu o bonde puxado a burro, até 1947”.

Também, caros leitores de suas memórias, me socorro para lembrar os chistosos “reclames” de remédios que por serem espirituosos provocavam risos, colocados na lateral interna do bonde, onde podia ser lido pelo passageiro.

Era comum ver-se a propaganda de certos vermífugos com a figura do Jeca Tatu, óleo de rícino, óleo de mamona ou carrapateira... Infoscal - iodo para o sangue, fósforo para o cérebro, cálcio para os nervos... O famodo “Óleo de Fígado de Bacalhau”, “Reconstituinte Silva Araújo”, “Pílulas de vida do Dr. Rossi, faz bem ao fígado e a todos nós, pequeninas mas resolvem”, “Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal...”; “Hum! Que calor! Que dia quente! Rim doente? Tome Urodonal e viva contente...”; “Os produtos Bayer - Se é Bayer, é bom”...; Pílulas de Reuther; “Licor de Cacau Xavier”. Cada um aplicado convenientemente na sua correspondente necessidade orgânica.


Se é Bayer, é bom

Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal

Para quem lia a espirituosa propaganda, por vezes, era natural quebrar o silêncio ou a sisudez que o passageiro pudesse ser portador.

Era de fato muito agradável passear nos bondes da nossa querida cidade nos idos anos de 1940, percorrer sem medo de ser importunado por qualquer “malfazejo” que se tivesse notícia, porque além do número resumido, eram todos conhecidos, não tinham ainda o aprimorado conhecimento nem a técnica hoje utilizada pelos malfeitores e estupradores, com requintes de perversidade, os perigosos drogados, que não vale à pena se perder tempo nem se ocupar em denunciar esse tipo de gente que não devia fazer parte da nossa coletividade. Tudo era tão calmo, até o vento “solteiro” e “brecheiro”, só conhecia a “Esquina do Pecado” (Major Facundo com Guilherme Rocha) Broadway, vindo do mar para alegrar as moças que por ali passavam segurando as saias rodadas que, com muito papo, se esvoaçavam com o vento e, subindo até a cabeça, dava por vezes a tão esperada “brecha”, que causava muita aflição às jovens que por ali transitavam. Por isso, as alunas da Escola Normal, Colégio da Imaculada Santa Cecília, Lourenço Filho, Colégio Americano e Liceu tinham a maior precaução e quando por ali volteavam, seguravam a saia com as duas mãos, embora a vaia uníssona dada pelos colegiais servisse para animar aquelas tardes no Centro da cidade, onde os “paqueradores” se postavam para dirigir galanteios dos mais variados gostos, uns mais espirituosos, outros de certo mau-gosto, ou humor negro, que muitas vezes eram por elas repelidos com certa veemência. Ah! Tempo bom, que hoje não trazes mais!

Estacionava nesse local uma figura considerada como “foco de atenção” - que se celebrizou por ser atraente seu escorreito linguajar, invejável semântica e perfeita adjetivação, causando certa dificuldade na compreensão da sinonímia, que a todos agradava por seus gestos e mímicas, dotados de certa puerilidade que algumas expressões pronunciadas de forma enfática, com imagens rebuscadas que se tornaram célebres - como esta, dirigida a um amigo que há muito tempo não o via, saiu-se assim: “Fulano, de onde vens, com essa palidez marmórea, saíste de alguma clausura?” De outra feita se dirigiu à Casa Elefante (loja de louças e utensílios domésticos) na rua Floriano Peixoto, de frente para o Palácio do Comércio, indagando ao vendedor mais antigo da loja, conhecido como “Siridó”: “Quanto custa um aparelho côncavo de ágata branca para micções noturnas?” Aí, Siridó responde: “Temos tamanho grande, médio e pequeno.” E conclui: “Se for para você mesmo é tamanho pequeno, mas se for para senhora sua mãe, talvez o grande ou o confortável ‘capitão’...”. Outra vez, na mercearia da esquina de sua casa, indaga ao bodegueiro: “Aqui tem uma substância cremosa, de cor amarelo ouro, com 50% de proteína, creme de leite, fermento lácteo e sal!, que o populacho chama de manteiga?” De outra feita, sentenciou: “Quando olhar no espelho e vir a minha cabeça fios de cabelos branco darei gritinhos de horror... envelheci, envelheci, envelheci...” E, assim por diante, a sua verbosidade.

Mas, quem melhor conheceu a verve desse ilustre personagem, O. A. D., autor de crônica, cujo título eram as iniciais do seu nome - “O. A. D.” -, cujo dito ao tomar conhecimento da divulgação da crônica chorou “mississipis e mississipis” de lágrimas, é o nosso amigo e memorialista de primeira água - Marciano Lopes, cuja revelação do nome verdadeiro, só ele poderia autorizar, porque essa publicação foi causa do rompimento até a morte do ilustre O. A. D. O mesmo residiu por mais de 40 anos no Rio de Janeiro, exercendo a função de museólogo, e nas horas de lazer desfilava na Av. Atlântica - Copacabana; por aqui esteve lançando livro muito festejado. Mas, tudo isso faz parte da nossa Fortaleza, cujos tipos folclóricos continuam a marcar época e, ao relembrar as pessoas que têm boa memória, por certo esboçarão no seu contentamento, largo sorriso dizendo: “Ah! A lembrança é vigilante e companheira da saudade que com ela vive, adormece, envelhece, mas não morre”...

Zenilo Almada Advogado

Travessa Morada Nova, detrás da antiga Assembléia Legislativa do Ceará - Esse logradouro era também ponto de partida de outras linhas, como a Praia de Iracema (ver em O Bonde - VI) e Aldeota (ver em O Bonde - VIII).

Ninguém teve sequer a lembrança de criar um ‘Museu do Bonde’ - Essa negligência quanto a preservar a memória dos bondes ocorreu não somente em Fortaleza, mas na maioria das cidades brasileiras que tiveram bondes. Uma excessão significativa é justamente o município que por mais tempo manteve o serviço efetivo - Santos -, que guardou seus veículos (ou parte deles) nas antigas instalações da Vila Matias, restaurando-os recentemente e reconstituindo alguns trechos de linha para um percurso turístico hoje em funcionamento (Ler em O Bonde). Reportando, ainda, à questão dos empecilhos e prejuízos em função dos bloqueios causados pelo conflito mundial, não há dúvida quanto à sua veracidade. Mas não há como não levarmos em conta, também, a falta de interesse em reerguer os sistemas de bondes após o fim da guerra, o que, muito provavelmente, poderia ser feito.

trocando-se, no final da linha, a lança condutora de energia - “Trocar a lança” - Entenda-se: virar a lança, ou mesmo: trocar a posição da lança. A lança - que foi o tipo de captador de energia adotado em Fortaleza (e em muitas outras cidades) - era girada ao contrário, de modo a ficar voltada para trás, quando se invertia o sentido de marcha. O motorneiro, este realmente mudava de lugar, pois passava a conduzir no controle da outra extremidade do bonde, que, nesse momento, deixava de ser a retaguarda para tornar-se a dianteira do veículo. Existiram, no entanto, em algumas cidades (ex.: São Paulo), bondes de maior comprimento que possuíam, de fato, duas lanças, dispostas em sentido contrário uma à outra. O. A. D. - Olavo de Alencar Dutra.


Veja também:


Crédito: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 23 de fevereiro de 2003


sábado, 19 de junho de 2010

O bonde (VI) - Praia de Iracema

A fotografia dos anos 30 nos mostra um bonde elétrico da Ceará Tramways, Light & Power em Fortaleza. Está perto da Praça do Ferreira, na rua Pedro Borges esquina com Floriano Peixoto, em Frente à Mercearia Leão do Sul

“Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia nas frontes da carnaúba! Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros! ... Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo do jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.” José de Alencar - Iracema.

Com certeza foi Iracema, a Jandira do Jaguaré - Ubirajara, do romance de Alencar, a musa inspiradora da antiga Praia do Peixe, que veio dar nome à Praia de Iracema, tão decantada por poetas, artistas, músicos e compositores que tantas evocações fizeram e deram “adeus Praia de Iracema”.

A terra dos amores que o mar carregou, como bem sintetizou - o maestro e compositor Luís Assunção - Ah! Quantas ruas foram tragadas pelas impetuosas ondas do mar, que se enfureciam com embates como se a natureza estivesse a se degladiar no resgate do território que propunha a recuperar com as suas próprias forças. E assim ruas e mais ruas, casas e mais casas, foram de repente se transformando nesse mar imenso, belo e traiçoeiro... Como o tempo passa rápido hein! E inexorável com a nossa lembrança, fazendo nessa azáfama do cotidiano procura apagar em nós os momentos bem vividos na claridade das noites de luar, o passeio que se fazia à Praia de Iracema, para ver e ouvir as juras de amor ao luar, tendo o céu por testemunha e depois se dirigir ao restaurante do português Ramon - para saborear a deliciosa sopa de cabeça de peixe, de “cangulo”, que somente ele sabia preparar tão afamada sopa, sem se falar na “peixada do Ramon”. Ah! Tempo bom que não volta mais...

A bem da verdade, a extensão da linha do bonde da Praia de Iracema, era relativamente pequena e foi inaugurada no dia 12 de janeiro de 1914, denominada linha da Praia; mas era muito movimentada como meio de transporte por atender a diversas classes sociais, desde os comerciários que trabalhavam nos armazéns da praia e outros estabelecimentos, comerciantes, funcionários públicos da Secretaria da Fazenda, estudantes e famílias que ali residiam até os que moravam nas pequenas casinhas à beira-mar. Apesar de curta extensão, o bonde “Praia de Iracema” fazia o seguinte trajeto: saía da Travessa Morada Nova detrás da antiga Assembléia Legislativa e dobrava à direita na Rua Floriano Peixoto até atingir a esquina da Travessa Crato; entrando à esquerda em frente à Catedral (Sé) seguindo pela Av. Alberto Nepomuceno até alcançar a esquina da Av. Pessoa Anta, onde funcionou por longos anos o “Café Gato Preto”, que depois dos anos 50 passou a pertencer aos “Irmãos Abiatá”.

Bonde da Praia na Avenida Pessoa Anta

O bonde seguia pela Av. Pessoa Anta até chegar ao majestoso prédio de alvenaria de pedra lapidada, onde funcionou por longos anos a Alfândega do Ceará e hoje Caixa Econômica do Ceará, esquina com a Rua Almirante Tamandaré, onde entrava à esquerda até alcançar a Rua dos Tabajaras, quando dobrava à direita, chegando ao ponto final na Igreja de São Pedro (lado direito). Ali, estacionava fazendo a última parada.

Na esquina da Rua dos Tabajaras, lado direito, havia o Departamento de Portos, Rios e Canais, que mais tarde mudou para Departamento do Porto e Vias Navegáveis, chefiado pelo nosso muito querido e estimado primo Dr. José Euclydes Caracas, pai do Dr. Hélio e Heliana Mota Caracas e, do lado esquerdo de quem entra na Rua dos Tabajaras - o Departamento de Obras Contra Secas, chefiado pelo ilustre e respeitado Dr. Antero, pai do ilustre Presidente (atual) do Tribunal do Trabalho, Dr. Antônio Carlos Chaves Antero. Havia uma singularidade no terreno onde existiam as casas de dois chefes e, eram inusitadas edificações constantes de vários depósitos de alvenaria em forma de tubo (cone) que serviam para armazenar cimento que vinha do exterior e àquela época ninguém sabia qual a sua serventia.

No início da Rua dos Tabajaras, existiam as melhores casas, das famílias que costumavam veranear na Praia de Iracema ou, às vezes, alugavam-nas para “passar tempo” como se costumava dizer.

De volta, o percurso do bonde era quase o mesmo. Somente à altura da Secretaria da Fazenda fazia uma ligeira curva e seguia pela alameda em frente ao Quartel da 10a Região Militar e entrando à direita na Rua Crato e logo em seguida dobrava à esquerda na Rua General Bezerril defronte ao Departamento de Correios e Telégrafos, seguindo pela mesma rua até chegar na Travessa Morada Nova.

Merece ressaltar que no seu ponto inicial, ou seja, na mencionada Travessa Morada Nova, os passageiros do bonde “Praia de Iracema”, por muitas vezes, ouviam os acalorados discursos dos senhores deputados no plenário, no horário das sessões da Assembléia Legislativa, diferente das discussões que se desenrolavam no Instituto Histórico e Antropológico do Ceará, o qual ocupava a parte térrea (lado oeste) do mesmo prédio, cujos sócios apresentavam suas teses e trabalhos de cunho científico nas diferentes áreas de abrangência do saber humano.

Lá estiveram e ainda estão os expoentes máximos das letras e das ciências, que tão bem sabem representar a nossa cultura, projetando o Ceará no mais alto patamar do cenário cultural do País, como têm dado inequívoca prova de sapiência que dignifica nossa terra, tão bem representada por seus sócios.

O nosso passageiro ilustre do bonde que fazia a linha Praia de Iracema é o insigne desembargador Lauro Nogueira, professor catedrático de Direito Constitucional da Faculdade de Direito do Ceará, autor de excelente trabalho jurídico acerca do “O Parlamentarismo e o Presidencialismo”.

Era casado em segundas núpcias com a Dra. Maria (Menininha) Cavalcante, uma das primeiras médicas do Ceará, especialista em obstetrícia, mãe da Srta. Glorinha Maria Cavalcante Nogueira, residente num lindo “bangalô” de dois pavimentos na Rua dos Tabajaras, 460 que se constituía numa das mais bonitas casas daquele logradouro.

Bonde perto da Antiga Catedral da Sé, anos 30 - Foto restaurada por Adolpho Quixadá, outrora pertencente ao acervo de Nirez (Miguel Angelo de Azevedo), encontrada por Adolpho Quixadá na propriedade do engenheiro agrônomo Dr. José Vieira de Moura, também residente em Fortaleza. Antiga Sé (Catedral) de Fortaleza. Segundo Nirez, "no dia 11/09/1938 foi rezada a última missa na velha Catedral e em seguida ela foi demolida juntamente com seu cruzeiro cujos santos que o enfeitavam estão hoje no Museu São José do Ribamar, no Aquiraz." Agradecimentos a Nirez, Adolpho Quixadá e ao Dr. Moura.
Segundo Nirez, "existiam na época vários estabelecimentos fotográficos", sendo os de maior porte o Foto Salles e o Aba Film, "que vendiam postais, e este é um deles", mas "não é do Foto Sales porque os de lá trazem letras em branco com o nome do logradouro (geralmente com os 'enes' e 'esses' invertidos) e o nome 'Foto Salles'; os da Aba Film também traziam o nome; deve ser de um foto menor, como Foto Novo (do Josias Benício), Foto Nelson (do Nelson Moura), etc."
Época - Nirez esclarece que "a Sé foi demolida em 1938, logo a foto é anterior; a iluminação pública elétrica é a partir de 1935, logo a foto é anterior, pois vemos vários combustores de gás hydrogeno-carbonado" Prosseguindo, Nirez explica que, embora não possa garantir, "pelo tamanho das palmeiras, a foto deve datar de 1932 ou 1933."
Ponto de focalização - Ainda respondendo a Quixadá - "É prevesível que tenha sido tirada da Pensão Bitu?" - diz Nirez: "Tenho quase certeza de que a foto foi colhida da janela do andar superior da Pensão Bitu depois Hotel Bitu, de Bartolomeu de Oliveira."
Dados históricos da paisagem: Respondendo à pergunta de Adolpho Quixadá - "No pitoresco jardim foi onde existiu o Forum recentemente demolido?" -, Nirez explica: "O local onde foi demolido o Forum Clóvis Bevilaqua tinha antes um prédio térreo construído para a Secretaria da Fazenda e que com a construção em 1927 do novo prédio da Fazenda, passou a ser ocupado pelo Museu Antropológico e Instituto do Ceará. Foi demolido para construção do Forum que foi implodido."

A Praia de Iracema era o aprazível bairro preferido por famílias de várias camadas sociais, que alugavam casas para veranear; outras fixavam suas residências como o ilustre e festejado escritor de imorredouras saudades, Moreira Campos, e distinta família, pai da querida e imortal escritora Natércia Campos Sabóia, minha amiga que fez parte da Diretoria do Ideal Clube onde exerceu a diretoria de cultura e arte com muito brilhantismo. Outras famílias que ali residiam como a do dr. Híder Correia Lima, pai de Emília Vorreia Lima - Miss Brasil, Dr. Hugo Rocha, Dr. Abner Brígido (Bié); a família do Sr. Tancredo de Castro Bezerra, casado com C. Maria Júlia, amiga da minha avó Victória Dias da Rocha Silva, por quem tínhamos grande afeição, bem como a sua filha Ivonise e família; Antônio Figueiredo - Figueiredão - do famoso Tony’s Bar que funcionou ao lado do Ed. Praia Hotel Iracema; e o prédio na rua Tabajara que serviu de início como sede do Ideal Clube, o Praia Clube, hoje vizinhança, o Bar Mincharia, Vivenda Morena da família Porto, depois recanto dos boêmios, poetas e cantores - o tradicional “Estoril”, cuja estrutura, boa parte era de taipa. O mais requintado do bairro era o Hotel Pacajus, de frente para o mar, sem esquecer o restaurante do português Ramon, mais tarde surgiram novos restaurantes como Estoril e Lido, todos em suas épocas e muito afreguesados. Durante as décadas de 1950 até aproximadamente a de 1980, o restaurante Lido predominou na preferência da freguesia. O proprietário um casal francês - Charles, ganhou a predileção do grande público, que lotava aquela casa de pastos diariamente com pratos dos mais variados tipos de refeições, lagosta e camarão em todas as suas nuances atraindo turistas, e nós os donos da terra, os estrangeiros que por aqui passavam e vinham passear ou residir. O restaurante era um grande “galpão” cuja coberta no seu início era de palha de carnaúba que mais tarde foi substituída por grandes tesouras de madeira com cobertura de “telha-vã”, que dava excepcional aparência àquela construção, com meias-paredes, onde sobrepunham-se tapumes com vidraças colocadas que fechavam as três faces do galpão para dar a mais bela visão do mar. Quando enfurecido nos meses de janeiro e fevereiro, causava o mais belo espetáculo das ondas que se debatiam contra o arrimo de volumosas pedras que serviam de amparo e resguardo da estrutura do inesquecível local de tanta simpatia dos fortalezenses que para lá se dirigiam também, para apreciar os embates das ondas e sentir de perto o aroma da maresia que se espalhava por todo o recinto.
Os jovens se sentiam atraídos pelas marés, por ser o casamento de lua e sol, ao contemplar, dava mais disposição ao amor, no crepúsculo vespertino ou matutino quando o amor fala sempre mais alto...
Mas tudo isso é quando se é jovem... Oh juventude!
Jovem há mais tempo que é a forma mais suave de não se dizer que atingiu a terceira idade ou velhice. É como um filme que já foi visto e deixou “suplício de saudade”, reprisado volta à lembrança do amor, igual ao sabor do queijo ralado... Ah juventude ingrata! que rouba tudo de nós, deixando somente as marcas no rosto, riscado pelo cinzel do tempo, rugas que só servem para amparar as lágrimas do desgosto, embora outras “rolam no coração” como diz o poeta.
Mas deixemos de filosofar para chegar à realidade e dizer que nesse local hoje se ergue um belo “arranha-céu”, que a modernidade tudo move em nome do progresso, foi outrora território marítimo para banhistas.
Entretanto, perderam os moradores daquele paraíso terrestre, o privilégio de banhar os pés com as brancas espumas das ondas do mar, porque essas se tornaram artigo de raridade para quem está nas alturas, já nem se lembra mais que ali existiu o velho restaurante Lido, com afinado conjunto musical a entoar lindas canções na época em voga. Ali residiam as famílias Gentil, Rola, Paulo Egídio de Menezes, Maurício Sucupira com sua bela voz e seu vizinho Roderico Braga, ponto de encontro dos bons amigos, Albano Amora, Mamede e Dra Menininha Cavalcante. Ainda o sobrado existente do Sr. João Leopércio Soares, pai de numerosa família, dentre os filhos a ilustre educadora Wilma Maria de Vasconcelos Leopércio, proprietária do primeiro colégio da Praia de Iracema, o Colégio São Pedro, que durante muitos anos dedicou-se ao ensino das crianças que residiam na Praia de Iracema e adjacências, dando inequívoca prova de sua bondade e desprendimento das coisas materiais.

“Os bondes, que foram consagrados na música popular brasileira, também foram excepcional veículo de mensagens comerciais, com cartazes que se imortalizaram na história da propaganda. No Ceará, um contrato de 30 de dezembro de 1926, assegurava ao Dr. Victor Pacheco Leão, diretor da ‘Empreza Cearense de Annuncios’, a exclusividade para a colocação de ‘reclames’ nesses veículos, que poderiam ser afixados em partes internas predeterminadas e nas pranchas laterais externas. O contrato assegurava os direitos, anteriormente cedidos a Luís Severiano Ribeiro, de colocação de anúncios de filmes. A Ceará Tramway ressaltava seu direito de não afixar em carros os anúncios que, no seu entendimento, atentassem, por qualquer forma, contra a moralidade pública, como sejam os reclames de remédios para moléstias venéreas e outros”. - Ary Bezerra Leite - História da Energia no Ceará.

Podiam ser apreciados nos bondes os mais chistosos “reclames” de remédios que, à época, eram tidos como os mais eficazes e causavam verdadeiro prodígio; assim observemos:

“Veja ilustre passageiro O belo tipo faceiro Que o senhor tem a seu lado E, no entanto, acredite Quase morreu de bronquite Salvou-o o Rum Creosotado”
“Que calor, que dia quente! Rim doente? Tome Urodonal E viva contente! Rá, rá, rá, rá!...”
“Pílulas de vida do doutor Rossi Faz bem ao fígado de todos nós! Rá, rá, rá, rá!...”
“Eu vou formar, eu vou formar Um batalhão de garotas bonitas Sempre sorrindo, sempre cantando P-A-L-M-O-L-I-V-E!”

Ainda as procissões de São Pedro - protetor dos navegantes - carregando em vulto no andor para junto dos pescadores percorrer de jangada, comemorando o dia que lhe é consagrado - 29 de junho - fazendo a travessia pelo oceano Atlântico, cujas águas se multicoloriam de verde, azul e cinza porque já são lustrais, era um belo espetáculo digno de ser visto.
Assim a Praia de Iracema das encantadoras noites de luar, em que as famílias apanhavam o bonde e para lá se dirigiam para apreciar o luar que à luz da lua e, somente ela, era testemunha das confidências amorosas dos casais inspirados no luar deixavam entoar aos ouvidos da amada, como forma de oração, transbordando do peito numa exaltação ao amor que comprimido até aquele momento, deixava transpirar numa prova de eterna confissão à deusa perfeita, que, quando levado a sério, transformava-se em feliz enlace matrimonial.
Para muitos passantes, simples galanteios propiciados e emanados pelo entusiasmo da beleza da lua que lá do alto, se pudesse falar, talvez dissesse: - O mar bramia contemplando a prateada lua que, melancólica, esperava as carícias das borbulhantes e agitadas ondas, que cresciam para o alto e se esparramavam na areia branca da Praia do Peixe, formando saliência e reentrância na areia, tornando festiva a noite prateada pela luz da lua.
Até o aljôfar que saltava das ondas do mar, beijava em gotas a face dos pares que passeando na praia se recreavam dos festivos momentos como se estivesse a galantear os passeadores daquelas noites que testemunhavam o luar de agosto...
O céu, essa abóboda celeste de um azul turquesino, incrustado de estrelas, que lá de cima cintilavam num acender e faiscar de luzes, na plenitude da fosforescência espraiava luminosidade nas águas do mar, beijando com branca espuma a areia por onde pisava Iracema; cruzando com os casais de namorados que só se apercebiam de sua presença quando confundiam-na com os delírios de amor e seus lábios de mel. Volta! Vem novamente festejar novos luares! Ou, matar quem vive de saudades, oh! filha de Araquém!

Zenilo Almada Advogado 



  Crédito: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza. Ceará - Domingo, 19 de janeiro de 2003


sexta-feira, 18 de junho de 2010

O bonde (V) Benfica - Igreja dos Remédios



Bonde elétrico da Light - Benfica -Arquivo Assis Lima

O bonde tinha seus apetrechos necessários, utilizados para o desenvolvimento de seu maquinismo. A começar pela “lança”, colocada na parte superior do bonde que por sua vez se ligava ao cabo que fornecia a eletricidade para mover o bonde, afora as demais peças e instrumento capaz de impulsionar, baixar e aumentar a velocidade, que quando atingia o máximo dizia na compreensão vulgarizada - o “bonde ia a oito pontos” o que significava ter atingido a velocidade máxima. Além disso tinha dois motores - um em cada extremidade do vagão (do bonde), porque quando chegava no término da linha, o motorneiro virava todos os bancos e a “lança” - uma haste com grosso cabo colocada por um carretel no fio para receber eletricidade e correr sobre o mesmo; após a chegada ao término do percurso faziam pequena parada enquanto subiam e desciam os passageiros. Iniciava o itinerário com o outro motor onde estavam acoplados manivelas e relógios registradores e demais peças impulsoras e geradoras do movimento sobre os trilhos. Além do relógio que registrava o número de passageiros em cada seção, era munido de sineta, que quando acionada anunciava a descida do passageiro, cujo cordão percorria os dois lados e se situava na parte superior de entrada do elétrico (teto).


Uma das ruas do bairro Benfica, vendo-se o trilho do bonde em 1937

Havia algumas linhas - bondes que utilizavam os mesmos trilhos até certa distância do percurso e, por isso os desvios das linhas eram feitos por duas linhas paralelas ao lado, para dar ultrapassagem ao outro bonde; como era o caso do bonde da linha Jacarecanga e Soares Moreno. Um seguia reto pela Guilherme Rocha, o Soares Moreno entrava à direita na Rua Teresa Cristina. E, para que não utilizasse a mesma linha, ao mesmo tempo, interrompendo a ultrapassagem, faziam desvio na própria linha, passando um pelo outro sem nenhum impasse. Em certos desvios havia uma espécie de agulha que virava a posição do trilho. Os bondes eram invariavelmente pintados de cor verde escuro, quase verde garrafa, cujo centro de cada fachada, se encravava um holofote com avantajado diâmetro que projetava a luz à grande distância.
Os estribos ou plataformas serviam de degrau para passageiros que se apegavam como arrimo aos pés. Os balaústres, hastes de madeira afixadas às cantoneiras dos bondes, serviam para auxiliar o passageiro no embarque e desembarque do bonde.

Linha do bonde do Benfica na Av. Visconde de Cauipe, 1943 - Arquivo Nirez

Diz Ary Bezerra Leite - História da Energia no Ceará, Pág. 66/67: “A empresa inglesa constituída com o exclusivo objetivo de operar no Ceará tinha sede em Londres, na New Broad Street No 42. Nos contratos, a empresa indicava como seu escritório, em Londres, o No 4, no London Wall Buildings. O capital inicial era de 400 mil libras e sua diretoria composta por C. Hunt, A. A. Campbell Swinton, E. B. Forbes e Sir Howland Roberts. Para administrar a empresa, em Fortaleza, é contratado Hugh Mackeen, nascido no Ceilão, filho de banqueiro, cedido ao Ceará pela Santos Improvements Co., de São Paulo. Ele seria o primeiro gerente local e teve papel decisivo na realização das obras iniciadas a 9 de maio de 1912.”

No primeiro momento, há preocupação de entender claramente os riscos que estavam assumindo em terra brasileira. Nos arquivos da Light, encontramos um expressivo documento, que não traz identificação do autor ou a quem é dirigido, com o seguinte teor:

“Pela lei estadual no 1008 de 19 de agosto de 1910 foi a Câmara Municipal de Fortaleza autorizada a prorrogar por trinta e cinco annos o prazo do privilégio concedido à então Empresa Ferro-Carril do Ceará, devendo esta, para gozar da prorrogação, substituir a tracção animal pela electrica, regulamentando no seu novo serviço segundo as práticas consagradas nas principais cidades do País.
Usando da autorização da lei citada, votou a Câmara Municipal a lei de 5 de maio de 1911, prorrogando por trinta e cinco annos o privilégio da Empresa Ferro-Carril do Ceará, sob a condição de substituir a tracção animal pela electrica. Dita lei (Art. 2) autorizou ainda o Intendente Municipal a mandar lavrar o contracto de prorrogação e expedir o regulamento necessário ao novo serviço.
Em data de 12 de maio de 1911 foi lavrado o contracto e a 8 de junho do mesmo anno expedido o regulamento, approvado ulteriormente por uma lei municipal.
Este, indo além do contracto, criou obrigações novas para a Empresa, não constantes deste; entre outras enumeramos: Art. 9, submeter annualmente à approvação da Intendência o horário das tranvias, salvo quando o intervallo no trajecto dos carros for menor de 15 minutos; Art. 10, fazer circular os carros de passageiros de primeira classe até onze horas da noite, excepto na linha do Alagadiço, cujo último carro a sair da cidade será às 10 horas da noite; Art 11, fazer circular além de carros de primeira classe, carros de segunda classe ou mistos, com horário approvado pela Intendência, rebocados pelos de primeira classe.
Em 6 de junho de 1912, foi o contracto transferido do primitivo concessionário, Sr. Thomé A. da Motta, para a Ceará Tramway Light & Power Co. Ltd.
Essa transferência foi approvada pela Intendência Municipal, mediante termo, no qual a concessionária se obrigou a cumprir os compromissos constantes do contracto de 12 de maio de 1911, sem se fazer allusão ao Regulamento de 08 de junho do mesmo anno”.


Bonde Benfica, raro registro do início séc. XX - Acervo de Fidelino Leitão de Menezes

Dessa vez vamos pegar (apanhar) o Bonde BENFICA - Igreja dos Remédios, que fazia a linha sul da Cidade - no bairro Benfica. Saía da Praça do Ferreira em frente a Rotisserie - hoje Caixa Econômica Federal - Rua Floriano Peixoto, Guilherme Rocha, General Sampaio, Avenida da Universidade, antiga Visconde de Cauipe, até a esquina da Rua Adolfo Herbster, esquina da Universidade com término em frente à Igreja de Nossa Senhora dos Remédios quando inicia a Av. João Pessoa.
O trajeto era feito desde a Praça do Ferreira, lado oeste, da Rua Floriano Peixoto - passava em frente ao Bar Jangadeiro - casa de lanches e sorvete do comerciante Luís Frota Passos, casado com a professora de dança clássica, balet, Regina MacDowel. Nesse local funcionou tembém a Farmácia Faladroga, muito conceituada no seu tempo, hoje vários armazéns de tecidos. Nos altos do prédio funcionou por longos anos a muito afamada alfaiataria e camisaria - do estimado italiano Salvador Cunto. No mesmo quarteirão, antes de chegar à Rotisserie, se instalava a grande sorveteria - “Eldorado” - hoje dependência da Caixa Econômica Federal. Dobrava à esquerda na Rua Guilherme Rocha, local onde existiam várias casas comerciais e depois foram demolidas para dar lugar ao Abrigo Central, fato ocorrido na segunda administração do Dr. Acrísio Moreira da Rocha, quando também se registrou a retirada dos bondes (1947). A demolição do Abrigo Central pelo prefeito José Walter Cavalcante iniciou nova Praça do Ferreira, a qual foi demolida para fazer um retrospecto da antiga Praça do Ferreira e voltar ao status de antes, com o arquiteto Delberg Ponce de Leon e Fausto Nilo (também compositor).

Bonde na Av. Visconde de Cauhype (atual Av. da Universidade). 
Arquivo Luis Alencar

O bonde do Benfica seguia numa reta pela Rua Guilherme Rocha até chegar na Rua General Sampaio, em cuja esquina permaneceu por longos anos o famoso Bar Americano, iniciado por Benício Sampaio e substituído por seu irmão Salomão Benício Sampaio, conhecido pela venda da apreciada bebida de origem indígena - por nome aluá - bebida fermentada, feita de arroz, milho, pão, abacaxi em infusão na água adoçada com rapadura ou açucar ou, ainda, açucar mascavo e condimentada com gengibre e erva doce. A particularidade da preferência por essa bebida por muita gente, e até pelos alunos do Liceu, é que quando ingerida com pão, logofermenta enchendo o estômago para substituir uma refeição, para os menos favorecidos da sorte. Tem como originário da língua bunda, ou língua dos bundos, africano ou tupi, que durante o ano inteiro era vendida e consumida em grande quantidade, por ser apreciada pelo agradável sabor aromático. Na época do inverno e na safra do milho o Bar Americano vendia também a canjica e a pamonha (guloseima de milho envolvida na palha do mesmo, cozida na água fervente e servida com café).
O Bar Americano era ponto de convergência para os apreciadores das músicas nacionais, porque lá existia uma eletrola americana tamanho grande de marca “AMY” que pegava 20 discos de cera e acionada por um dispositivo que fazia girar o disco da preferência do freguês, cujo pedido musical era feito automaticamente e podiam ser ouvidos os ritmos samba, xaxado, xote, baião, e do cancioneiro romântico, desde Vicente Celestino, Ataulfo Alves, Chico Alves, Noel Rosa, Luís Gonzaga, Lauro Maia (cearense), Erivelto Martins, Dircinha e Linda Batista, a Sapoti - Ângela Maria -, Nora Nei e tantos outros cantores da época de 40, 50 e 60. Iguais a essa eletrola - havia em Fortaleza apenas mais 4 (quatro), uma no Passeio Público, outra no Bar do Ferreira - na Rua Dr. João Moreira, detrás da Cadeia Pública, outra no Curral das Éguas - no Bar Expedito Brás e a última no Bar do Afonso - na Praça de Parangaba, segundo me contou Monsueto Benício Sampaio, filho do dono do Bar Americano, que por certo saberá de boas histórias para contar do Bar das multidões que marcou época. Era também ponto de parada obrigatória para os que iam ao Bar Americano bebericar e eram moradores do Bairro Benfica, que ali apanhavam o bonde para se dirigir às suas moradias. Mas tudo acabou quando o famoso bar cerrou suas portas em 1965, deixando órfãos os amantes dos variados ritmos, desde os sambas de breques de Jorge Veiga, o mais plangente do cancioneiro Augusto Calheiros, e Araci de Almeida, para os que se sentiam momentaneamente “guampudos”.
Quando o bonde dobrava à esquerda na Rua General Sampaio, seguia em linha reta, até ultrapassar a Praça Clóvis Beviláqua, antiga Praça da Bandeira, onde se encontra o prédio da Faculdade de Direito do Ceará, "de onde fui aluno e concluí meu curso de Direito".
Ainda permanece ao lado direito da Rua General Sampaio (lado da sombra) e da Faculdade de Direito, a mais luxuosa mansão - do Barão de Camocim - Geminiano Leite Barbosa, suntuosa por suas linhas arquitetônicas - considerado o mais rico solar da época, por ser o único a ostentar, para atender a comodidade da família, um elevador para o único pavimento superior, o que lhe dava mais conotação à sobriedade e à aristocracia da época. Havia, como natural, outras casas de razoável conforto nas ruas General Sampaio e Visconde de Cauipe - hoje, Av. da Universidade, a começar pelo solar da família do Dr. Rufino de Alencar - o primeiro sobrado do lado direito (sombra) de quem percorre a Av. da Universidade - antiga Visconde de Cauipe - que tem no 1806, onde se acha instalado o Palácio Maçônico Dr. Luís Moraes Correia - Fortaleza 3, esquina da rua Meton de Alencar, e tantas outras como o palacete do Dr. Roberto Nepomuceno, Dr. Edmar da Costa Barroso, etc. O Colégio Fortaleza, Colégio Santa Maria, Santa Cecília, Colégio Americano, Solar Frota Gentil, hoje Reitoria, e Clube dos Sargentos, hoje desativado.
O passageiro ilustre do bonde da linha do Benfica é o Dr. Rufino Antunes de Alencar Junior - nascido em Fortaleza no dia 26 de julho de 1879, filho do Dr. Rufino Antunes de Alencar, pernambucano, e de D. Quitéria Dulcinéia Gurgel de Alencar.
Formou-se em medicina na Faculdade do Rio de Janeiro. Defendeu tese sobre “Hérnias inguinais e seu tratamento”. Fez parte do Corpo de Saúde da Armada Nacional, com assistência no Ceará, médico do Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia. - Dicionário Biográfico - Barão de Studart, pág. 132 (3o Vol.).
Residia no palacete da Av. Visconde de Cauipe no 1806, esquina com a rua Antônio Pompeu, onde hoje se acha instalado o Palácio Maçônico - Dr. Luís Moraes Correia Loja 3, primeiro imóvel da avenida acima mencionada. Ao chegar ao fim da linha - Igreja Nossa Senhora dos Remédios com Adolfo Herbster, o bonde virava a lança e bancos para fazer o itinerário de volta à cidade. Fazia o mesmo trajeto pela Av. da Universidade e na Rua General Sampaio entrava à direita na Rua Clarindo de Queiroz, seguindo por detrás da Igreja do Carmo - antiga do Livramento, para entrar à esquerda na rua Floriano Peixoto até chegar na Praça do Ferreira - cuja parada inicial se dava na Rotisserie para iniciar a Rua Guilherme Rocha.
Assim, caros amigos, mais um passeio agradável no bonde Benfica, para ver a gruta de Lourdes da Igreja Nossa Senhora dos Remédios, ou deixar uma colaboração no Dispensário dos Pobres, que servia de abrigo para os velhinhos pobres desabrigados.
O bairro do Benfica era considerado um dos mais elegantes bairros da cidade, porque servia de residência das mais importantes famílias - daí seguia para o vizinho bairro das Damas - antigo Barreiros, com residências de importantes famílias como a do Dr. Álvaro do Couto Fernandes, Gustavo da Frota Braga, Agapito Sátiro, Prof. Otávio Farias Sabóia, Lauro de Oliveira Cabral, José Abreu Pita Pinheiro, Tenente Joaquim Olimpio Bezerra de Menezes, Dr. Antônio Bonifácio, Edgar Leite Ferreira e família Nepomuceno, e assim tantas famílias que perlustram na nossa memória e permanecem para guardar as imorredouras saudades do tempo que não volta mais porque tudo virou cinzas, menos nós, eternos amantes desta cidade, que despertamos com o Astro Rei e adormecemos embalados pela prateada Lua.

Abalroamento do bonde Benfica com camioneta
 Cronologia Ilustrada de Fortaleza de Nirez

Zenilo Almada

Advogado

lança - A lança, conforme é explicado no decorrer do texto, é um tipo de captador de energia, dentre os três gêneros mais utilizados em bondes, lança, arco e pantógrafo.

instrumento capaz de impulsionar, baixar e aumentar a velocidade - Trata-se do acelerador, conhecido no Brasil pelo nome de manivela.

“... a oito pontos” - Ou “no ponto oito”. Esta expressão deve-se ao fato de que o movimento da manivela aceleradora, acionada pelo motorneiro, era dividido em oito posições sincopadas, sendo o ponto 8 o de maior velocidade.

o motorneiro virava todos os bancos e a “lança” - O procedimento de virar a lança e os bancos ao contrário é aplicado quando o ponto final se dá numa extremidade de linha sem continuação, e o bonde retorna sem dar meia volta. Os bondes, geralmente, tinham “duas frentes” (ou duas “cabeças”), ou seja, as duas extremidades providas de controles, de modo que uma “frente” passava a ser a “trás”, e vice-versa, de acordo com o sentido em que o veículo se deslocasse. Não sei se em Fortaleza os pontos terminais eram todos assim, mas há casos, também, em que o bonde, ao chegar ao ponto final, faz a “circular”, isto é, a linha faz a volta. Em linguagem ferroviária geral, esse tipo de retorno é chamado de “pera”, talvez por lembrar a forma do contorno da fruta do mesmo nome. Outra alternativa, menos comum que o retorno pela mesma linha e a “circular” ou “pera”, é o triângulo de manobra, uma disposição de linhas composta de três desvios (dispostos como vértices de um triângulo), de modo que o bonde pode manobrar, entrando por uma curva, a seguir recuando e, por fim, entrando pela outra curva em sentido contrário, de frente, para a mesma linha de onde viera. Há também - mais raro ainda que o triângulo - o “girador” (usado com certa freqüência em ferrovias de trens, para girar locomotivas), que consiste num dispositivo giratório com um segmento de linha na parte superior, na qual o veículo entra, é girado e, em seguida, volta à linha, voltado em sentido contrário.
sobre o mesmo - Pode-se dizer sobre o fio, dando-se a entender que o carretel (ou “carretilha”, ou “trolley”) corria encostado ao fio; mas fazia-o por debaixo, ou sob o mesmo.
outro motor - Cumpre aqui esclarecer sobre algumas questões de nomenclatura: a) Motores: Na verdade, o articulista está-se referindo, neste caso, aos controles e não aos motores. O controle é que pode ser usado ora de uma, ora de outra extremidade do bonde, de acordo com o sentido de marcha. Os motores, propriamente ditos, são os motores elétricos de tração, instalados junto aos rodeiros (eixos com as rodas) - aos quais transmitem o movimento, por meio de engrenagem - e à estrutura à qual são acoplados os mesmos. Realmente podem ser dois, ou quatro, embora os bondes de truque único (quatro rodas) nunca tenham mais de dois, um em cada rodeiro (eixo com rodas). Bondes de dois truques (oito rodas) podem ter dois ou quatro motores. Embora seja possível rodar com parte dos motores, os bondes trafegam, normalmente, com todos os motores - sejam dois ou quatro - ligados, independente do sentido de marcha, sendo que cada controle não é conectado apenas ao(s) motor(es) próximos à extremidade que lhe cabe, mas a todos. b) Relógio registrador: Conforme o próprio texto explica em seqüência, trata-se do dispositivo que, acionado pelo condutor (cobrador das passagens), marcava o número de passageiros cobrados, por intermédio de um cordão (disposto ao longo, geralmente acima, de outro cordão, o da sineta - ou campainha - de solicitar parada do veículo, mencionada adiante, no texto). Não era, portanto, um dispositivo de acionamento eletro-mecânico. A manivela - já comentada -, esta sim, atua no acionamento da propulsão.
Em certos desvios havia uma espécie de agulha - Agulhas: Na verdade, os desvios sempre têm agulhas; os cruzamentos simples é que não precisam delas.
horário das tranvias - “Tranvia” é o mesmo que bonde.


Veja também:

Crédito: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 29 de dezembro de 2002
Fotos: Todos os créditos dados

O bonde (IV) - Soares Moreno


Bonde elétrico Soares Moreno nº 73. Arquivo Luis Antonio Alencar

Assim, a cidade de Fortaleza, por estar dividida em quadrantes, a zona oeste era servida por três linhas de bonde - Jacareacang
a, Via Férrea, por assim dizer, e a linha Soares Moreno, da qual nos ocuparemos agora.

Na retangularidade de um quadrilátero a linha do bonde Soares Moreno - saía da Praça do Ferreira, ponto de convergência de quase todas as linhas, e tomava rumo pela Guilherme Rocha até a rua Tereza Cristina, dobrando à direita e, nesse percurso atingia a esquina da Rua Senador Castro e Silva, onde dobrava à esquerda para estacionar de frente ao Cemitério São João Batista - também conhecido como aprazível “chácara do Sr. Cândido Maia” - decantado nos versos da poetisa Letícia Câmara - tia de D. Hélder Câmara, irmã do dramaturgo teatrólogo Dr. Carlos Câmara. Mas voltando à vaca fria, para ligeira e jocosa explicação sobre a denominação dada ao cemitério. Prendia-se ao fato do Sr. Cândido Maia ser à época o administrador do Cemitério São João Batista, após a mudança do local que deu origem ao segundo. Pois o Cemitério São Casimiro, como anteriormente era conhecido, situava-se ao lado da Estação Central onde hoje se localizam várias dependências da RFFSA (antiga R.V.C.).

Com valiosa informação de um dos maiores conhecedores da história do Ceará, pela vivência no tempo e possuidor de prodigiosa memória - dizia meu inesquecível avô, padrinho e benfeitor - Prof. Dias da Rocha... que na década de 1870 a epidemia que assolou nossa cidade tomou proporções tão agigantadas, que o Cemitério São Casimiro ficou impossibilitado de proceder como fazia antes o sepultamento, diante do grande número de pessoas estrangeiras que aqui chegavam e eram acometidas da peste, razão pela qual abriu-se vala comum para sepultar os vitimados pela peste bubônica.

Dessa forma deu-se início ao Cemitério São João Batista - 1880, sob administração do Sr. Cândido Maia, que durou por muitos anos, passando mais tarde a administração ao construtor licenciado - Marcelo Galvão, o qual permaneceu por longos anos administrando o “Campo-Santo”, como era também conhecido. E como estamos a alguns passos das covas de entes queridos, vale agora lembrar o escrito na lápide do grande poeta Quintino Cunha, onde se lê:

“Diz a Sagrada Escritura,
Que Deus tirou o mundo do nada
E eu nada levei do mundo”

Dizem ainda que os boêmios prosistas aproveitavam o prateado “luar de agosto” e, com seus violões, prostrados à frente da “última morada” entoavam canções, evocando o passado e a lembrança dos entes queridos que dormiam o sono eterno no campo-santo. Também não poderia faltar quem na incredulidade cantarolava:

“incarquei, incarquei a cova dela
uma voz, uma voz lá do alto arrespondeu
Arritira arritira o pé de riba
Deixe o amor, deixe o amor que já foi teu”.

E por aí vão os cantores e trovadores que exprimem seu bem-querer e sua amizade por diversas formas - assim as louvações se repetiam na campa dos que se foram chamados pela morte (parca).
O nosso passageiro ilustre do bonde Soares Moreno é o abolicionista e intérprete comercial Alfredo da Rocha Salgado, morador da grande vivenda “Itapuca Vila”, cujo imóvel num estilo primoroso da arquitetura se sobressaía das demais casas e bangalôs da época. Ocupava quase uma quadra das ruas Guilherme Rocha - frente, Princesa Isabel - lado nascente, Tereza Cristina - lado poente e a poucos metros da rua Liberato Barroso.

Um pouco de sua biografia diz-nos que:

Alfredo da Rocha Salgado nasceu no dia 01.09.1855 e faleceu em 13.04.1947. Intérprete comercial nas línguas inglesa, francesa e alemã; funcionário da Casa Inglesa constituída por sociedade anônima sob o título - Casa Salgado S.A., de grande atuação na economia cearense, sendo a primeira a montar prensa hidráulica para o enfardamento do algodão no nosso Estado.

Entusiasta das causas nobres, foi abolicionista de primeira linha, dos de frente sem receio. Um dos fundadores da afamada sociedade mercantil “Perseverança e Porvir”, em 1879, sob cuja inspiração veio a formar-se a “Cearense Libertadora”, que agitaria e levaria até o final a luta vitoriosa da emancipação dos escravos na Terra da Luz. (Famílias de Fortaleza - Dr. Raimundo Girão, 373/375).

Apesar de ser bom cavaleiro e do animal muito se utilizar como transporte, entretanto na frente de sua chácara, os bondes obrigatoriamente faziam parada, que mais por privilégio atendia quem morava na Vila Ipu e adjacências.
O bonde Soares Moreno era utilizado essencialmente por pessoas que moravam nas ruas centrais até as ruas Pe. Mororó e Agapito dos Santos, bem como os assíduos frequentadores do Cemitério São João Batista, que diariamente visitavam os seus entes queridos como se cumprissem uma verdadeira obrigação de comparecer ao local do sepultamento como se vivo estivesse, ou não tivesse se conformado com a partida do ente querido para o mundo maior.

Assim, o dia de Finados, dia de prestar homenagem aos mortos, levando coroas, flores e velas, tornava grande o movimento na linha de bonde que se encarregava de transportar pessoas de outros pontos da cidade, à Cidade dos pés juntos”, como diz a gíria cearense.

Afinal, em 09 de novembro de 1913, com a presença do intendente municipal Guilherme César da Rocha, marcada pela alegria do povo, ocorre a festividade inaugural do tráfego de bondes elétricos na linha da Estação (Joaquim Távora), no dia 12 de janeiro de 1914, é inaugurada a linha entre a travessa Morada Nova e a Praia de Iracema, denominada Linha da Praia. No mês seguinte, a 14 de fevereiro de 1914, começava a funcionar a linha do Outeiro (Santos Dumont/Aldeota).

Cada passagem custava $100,00 (cem réis).

No livro “História da Energia no Ceará”, de Ary Bezerra Leite, afirma que “Promoção em favor dos estudantes, lançada em 1917, assegurava aos alunos menores de 14 anos das escolas ‘bem conhecidas’, abatimento de 50% das passagens mediante solicitação mensal da direção dessas escolas, constante de emissão de cadernetas de 52 bilhetes nominais e intransferíveis para uso durante o mês especificado e no período entre 6 (seis) horas da manhã e 6h30min (seis horas e trinta minutos) da tarde.” Existiam também “passes” que asseguravam gratuidade a seus titulares nas viagens de bondes, concedida aos empregados da empresa e a outras pessoas, por livre determinação da gerência.
Outro aspecto merecedor de realce refere-se ao fato de a Ceará Tramway Light procurar “desfazer-se do patrimônio insersível da antiga Ferro-Carril”. Por contrato de 31 de janeiro, assumiu a responsabilidade pela conservação e trato de 200 (duzentos) muares o Sr. Francisco Correia, a quem se conferia o direito de “preferencial de compra”.
Mais adiante acrescenta o professor Ary Bezerra Leite em “Os Bondes Elétricos The Ceará Tramway Light and Power Company LTDA”. - Os bondes a burro foram vendidos para empresa Teixeira Mendes, de São Luís, Maranhão, contando que, na chegada, alguns veículos foram jogados ao mar pelos catreiros que protestavam indignados pela compra de verdadeira sucata.
A Ceará Light - pelo que se sabe, fazia algumas concessões aos passageiros concedendo “passes” e outras benesses aos estudantes nos seus bondes; entretanto, tinha uma passageira honorária que nunca pagou passagem nem tão pouco lhe cobravam. Era por assim considerar “a passageira liberada de ônus” - “remida ex-causa” (liberada de ônus) ou “auctoritate propria” (por autoridade própria). Subia no bonde - de repente todos cediam lugar para sentar, não agradecia nem pedia lugar, tudo lhe era ofertado com o máximo respeito e maior cautela para não suscetibilizá-la no menor gesto.

Impassível, quase inerte, enquanto não lhe magoassem os calos, não incomodava ao vizinho nem com esse queria “papo”. Alguma vez se esse estivesse fumando pedia um cigarro... Enfim uma passageira “HONORÁRIA” que durante o período de aula do Liceu dificilmente subia no bonde Jacarecanga. Preferia pegar o Soares Moreno e a pé se deslocar para as casas de pessoas generosas que moravam na Jacarecanga e todos os dias lhe ofereciam almoço e jantar. Desnecessário citar as bondosas famílias.
Essa tão respeitada senhora, literalmente falando, não era senão - a famosa, temida e achincalhada - “Ferruge”. Por ser um tipo exótico e demais conhecida em toda essa nossa Fortaleza, marcou época nos anos 40 e 60 perambulando, percorrendo as ruas centrais, tomando assento nos bares, restaurantes, sem pedir nada. Não ingeria bebida alcoólica. Os esmoleres mais compadecidos ofertavam-lhe dinheiro, cigarros, lanches, etc. Cortavam-lhe os cabelos à moda masculina, ou seja, corte a máquina quase zero - hoje esse corte é bastante usado por atrizes e artistas de televisão - de tal forma o corte do cabelo que quando começava a crescer ela própria se encarregava de puxar os fios arrancando-os, fazendo uma “cara feia” de meter medo. Conduzia como parte de sua indumentária um lençol que a envolvia desde os ombros guarnecendo os braços, para se abrigar do frio das noites, nos locais onde pernoitasse.
Mas esse mutismo era quebrado quando algum aluno do Liceu, - mais freqüente - ou outro gaiato se escondia por detrás do poste de iluminação e gritava: “A Ferrugem é homem” - aí acabava o tempo bom. De repente ela se arvorava, abria o dicionário de pornografia e terminava por exibir as partes pudendas e, batendo com a mão na genitália, dizia: - “Taqui não sou homem não!... seu f.d.p!...”.
Por conseguinte, da “Ferruge” nada se sabia em relação à sua origem. Parecia não ter família aqui e nem se podia atribuir a sua naturalidade diante do seu estado patológico. Insana, não sabia se comunicar. Era de baixa estatura, traços fisinômicos corretos, olhar denunciador da entidade nosológica de que era portadora. De certa forma compensada na sua infeliz sina, porque todos dela se compadeciam e na sua desdita não faltava quem dela se condoesse, ofertando-lhe um prato de comida. Após a refeição se prostrava debaixo do ficus-benjamin, geralmente o da casa do Dr. Pedro Sampaio, esquina da rua Guilherme Rocha com Av. Cel Filomeno Gomes; tirava suas sestas sem nenhuma preocupação, nem de saber se era tempo de plantar ou colher, e, nem de escolher os governantes - porque não sabia o que era eleição, eleitor, e muito menos o que significava o dever de votar, porque disso ela nada atinava e nem desconfiava por ser abúlica. Assim, alheia a tudo que a seu redor se descortinava, sem obrigações ou deveres, a vida não passava do simples amanhecer e anoitecer. Tinha como companheiro da noite, um céu azul anilado escuro, com estrelas cintilantes que vigiavam-na através das réstias que se infiltravam por entre as folhas das árvores a alcatifar o seu manto que servia de proteção ao frio. Ah! Quanta ironia do destino. Pobre “Ferruge” que da sorte foi enteada e como madrasta teve a vida como errante, deve hoje estar no céu. Da vida não tinha consciência por ser tudo sem importância, nem responsabilidade com o viver, por não ter conhecimento da própria existência. Talvez mais feliz do que os que na sua perfeita sanidade mental são verdadeiros desvairados... A “Ferruge” foi feliz porque na sua irresponsabilidade nunca teve o propósito do mal, não soube avaliar o bem, não pecou por pensamentos, palavras ou omissões, mas cumpria sem saber os Dez Mandamentos. Será que foi somente infeliz? Só Freud explica...

Zenilo Almada
Advogado


Gíria cearense - Naturalmente, com o afluxo de grande parte do povo cearense - e nordestino em geral - para outras regiões do Brasil, essa gíria se difundiu e hoje é usada largamente em nosso País.


Linha do Outeiro - (Santos Dumont/Aldeota)


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Veja também:



Crédito: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 8 de dezembro de 2002
e Fotos Arquivo Fortal


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