Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



terça-feira, 22 de junho de 2010

O bonde (X) - Joaquim Távora Hoje Av. Visconde do Rio Branco - antiga Estrada de Messejana


Bondes perto do Hotel Excelsior, início dos anos 30

Era a segunda mais extensa linha de bonde a da Avenida do Joaquim Távora, também conhecida como estrada ou calçamento de Messejana, hoje Avenida Visconde do Rio Branco, perdendo apenas para a linha do Alagadiço.
Com rigor ainda se pode observar esse logradouro, apesar de ser quase em linha reta, tem várias denominações as ruas que se sequenciam. Tem início na Av. Alberto Nepomuceno seguindo pela Rua Conde D’Eu, prossegue pela Rua Sena Madureira, atingindo a Avenida Visconde do Rio Branco - (antiga Joaquim Távora, Calçamento ou Estrada de Messejana), numa direção quase reta cuja maior extensão continua pelo Alto da Balança (Ministério da Aeronáutica - Base Aérea de Fortaleza - Av. Aerolândia). Ah! E a Lagoa de Messejana, a admirar a linda estátua de Iracema que será construída a se banhar de cuia naquelas águas lacustres; e sentir de perto a beleza da mansão Castelo, da nossa tão querida D. Lúcia Dummar, a lembrar e recitar os poemas de seu pai, o escritor Demócrito Rocha.
Isso é apenas para avivar a memória dos habitantes desta linda Capital e termos uma ideia deste bairro que se interligava a outros.
Não era todo esse, o trajeto do Joaquim Távora, pois o ponto final da linha era em frente do casarão do Sr. Alberto Costa Sousa, respeitável cidadão de fino trato, muita religiosidade e um dos diretores do antigo Banco Frota Gentil S/A.
Entretanto, desde o Centro da Cidade, a Avenida Joaquim Távora tinha abrangência com os Bairros José Bonifácio, Fátima e adjacências, interligando-se com os bairros de São João de Tauape, Alto da Balança, Aerolândia. E por uma estrada estreita, margeando o rio Cocó com suas águas perenes onde predominava uma vegetação que transpirava o perfume de mata-pasto. de manjerioba, chanana, melão caetano, quebra-pedra, pega-pinto e outros arbustos e ervas que exalavam agradável perfume que envolvia a retentiva dando ao olfato o sabor a contemplar com a visão do lugar vivido na essência do seu puro cheiro - de terra orvalhada; chegava-se a Messejana.

Bonde próximo ao Cine Majestic

Mas deixemos de lado as dilacerantes saudades que, sem avisar nem pedir permissão, invadem ocupando todas as dependências da nossa mente e, de repente, sem agradecer se vão; deixando indelevelmente gravada a figura de um inesquecível panorama a confortar o coração combalido pelo tempo. Mas como as saudades não matam, apenas maltratam, matemo-las.
Ao toque repicado da sineta, o motorneiro dava partida no bonde, assim saía o bonde Joaquim Távora da Praça do Ferreira pela Rua Major Facundo, entrava a esquerda na Rua Pedro I, continuava até ultrapassar as ruas Floriano Peixoto, Assunção, General Bizerril - lado norte, à direita lado sul, rua Solon Pinheiro, contornando o Parque da Cidade da Criança; passava em frente ao Colégio São José do Prof. José Leopoldino da Silva, também professor do Liceu, bem como seu filho José Leopoldino da Silva Filho - Engenheiro Agrônomo e Professor. Depois de alcançar as ruas Pinto Madeira, Pero Coelho e ultrapassar a Av. Duque de Caxias - Heráclito Graça - iniciava a Av. Joaquim Távora - hoje Visconde do Rio Branco - antiga Estrada de Messejana, como era no século passado conhecida - até o número 2.800 - residência do Sr. Alberto Costa Sousa.
Nosso passageiro ilustre do bonde Joaquim Távora, hoje Av. Visconde do Rio Branco e, à sua época Estrada de Messejana, nasceu na aprazível vivenda da família Caracas, de no 736, depois de no 2.008, e é o nosso muito estimado primo, o engenheiro José Euclydes Caracas - filho do professor Francisco Dias da Rocha e D. Leopoldina Caracas. Avós maternos: capitão Pacífico da Costa Caracas, abastado agricultor na serra de Baturité, de grande descortino econômico, fundador da família Caracas, e Ana Felícia de Lima Caracas. Avós paternos: Joaquim Dias da Rocha, negociante português e abolicionista, pertenceu ao partido Libertador - da Sociedade Cearense Libertadora - e entidade Perseverança e Porvir, e D. Francisca de Paula Cavalcanti (solteira), após o casamento Francisca de Paula Dias da Rocha.
Nasceu no dia 22 de maio de 1900 em Fortaleza, na vivenda no 736, do Calçamento Messejana, depois Avenida Joaquim Távora no 2.008 - hoje Avenida Visconde do Rio Branco, vizinho ao Colégio das Dorothéias, local hoje desapropriado pela Prefeitura Municipal para alargamento da Rua Domingos Olímpio.
O ilustre Dr. José Euclydes Caracas, após concluir os preparatórios no Colégio São Vicente de Paula - em Petrópolis, formou-se em engenharia civil pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro em 1925. Trabalhou na construção da Estrada de Ferro Centro-Oeste de Minas, em 1931; passou a integrar o quadro de engenheiros do Departamento de Portos, Rios e Canais, com elevado cargo de chefia; membro do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura - CREA - CE; conselheiro na implantação do Plano Rodoviário do Estado do Ceará; membro da Delegacia do Trabalho Marítimo, credenciado pelo antigo I.A.P.C.. Desempenhou suas funções como engenheiro no acababamento das obras de construção do Edifício São Luís.
Casou com Ana Gouveia Mota, filha de José Porfírio da Mota, Fiscal de Consumo na região Norte do Ceará e de Francisca Barros de Gouveia - todos da cidade de Granja-CE. São seus filhos: Hélio Mota Caracas, engenheiro pela Universidade de Fortaleza, e Heliana Mota Caracas, tendo exercido funções na Companhia Docas do Ceará, ambos com muita projeção na sociedade local.

A foto é de 1936 e pela Rua Major Facundo vemos, por trás do bonde elétrico, a Casa Almeida, o edifício Majestic que tinha um bar, a Farmácia Pasteur, os escritórios de Luiz Severiano Ribeiro, o "Polytheama", o Menescal e na esquina, A Pernambucana. Em frente, o passeio, onde ficavam estacionados os ônibus, os carros de aluguel e onde havia os bancos de duas faces entre árvores e combustores de iluminação a gás.

Ary Bezerra Leite - em História da Energia no Ceará, no capítulo - Os bondes a burro, diz:

“O sonho dos bondes a serviço da população de Fortaleza parecia quase impossível. E, mais uma vez a concessão é transferida pela Lei no 1.631, de 5 de setembro de 1875, agora favorecendo o comendador Francisco Coelho da Fonseca e Alfredo Henrique Garcia. Finalmente, a 3 de fevereiro de 1877, esses concessionários fundam a Empresa Ferro-Carril do Ceará.
Da instalação da empresa para o aparecimento em operação dos bondes transcorreram três anos. Isto porque somente em 1879 são concretizadas as obras civis de construção da estação e sede da companhia, e, a partir de novembro, cumprida a etapa de assentamento dos trilhos, com bitola de 1,40m, que ainda eram de madeira revestida na parte superior por cantoneiras de ferro.
Na manhã do domingo 25 de abril de 1880, a Ferro-Carril do Ceará inaugura sua primeira linha, com 4.210 metros, da Estação na estrada de Messejana (Boulevard Visconde do Rio Branco) à chave na Rua São Bernardo (atual Pedro Pereira), e, a partir desta, interligando a Praça da Assembléia ao matadouro modelo (bairro do Prado).”

Agora, estimados leitores, estamos chegando ao término dos nossos passeios de bonde por esta Fortaleza de antigamente com tantas recordações que ainda permanecem vivas em nós. Com o próximo capítulo sobre os bondes teremos a linha do Prado, e concluiremos nossas reminiscências por esta cidade que nos viu nascer, crescer e, se me for dado a escolha, espero com a morte deitar meu corpo ao solo, a cabeça, ter como travesseiro a pura argila de minha terra natal, deixando-me transformar em pó “porque tu és pó e em pó te tornarás”, e merecer de Deus o perdão e a Mansão dos Justos.

Bonde na Praça do Ferreira - Anos 30

Zenilo Almada
Advogado



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Crédito: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 20 de julho de 2003 e fotos Fortal

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O bonde (IX) - Alagadiço

Bondes na rua Major Facundo - Anos 30 (Foto: OPovo)

Hoje vamos recordar o bonde que fazia o maior percurso de linha. Vamos nos transportar ao lado oposto da cidade, ou seja, zona Oeste no aprazível bairro do Alagadiço, conhecido por seu mangueiral, cajual, bananeiral e outras fruteiras próprias daquele solo. Como em quase sua totalidade as linhas servidas por bondes elétricos saíam da Praça do Ferreira, com raras exceções, como é o caso da Prainha e da Praia de Iracema. O bonde Alagadiço saía da Praça do Ferreira, seguia pela Rua Major Facundo, até alcançar a Rua Clarindo de Queiroz, percorrendo-a até encontrar a Rua Dona Tereza Cristina, hoje Tereza Cristina; dobrava à esquerda (um quarteirão do Mercado São Sebastião) até chegar na Rua Meton de Alencar, quando em direção à direita contornando o Mercado São Sebastião, tomava a Rua Juvenal Galeno (1a seção); Farias Brito - em frente à Igreja de Nossa Senhora das Dores, Av. Bezerra de Menezes até a Igreja São Gerardo (2a seção); daí em diante ainda pela Av. Bezerra de Menezes até o Colégio Santa Isabel - próximo à Escola de Agronomia era a 3a seção e última. Por ser a linha mais extensa de todas, o bonde estava sempre superlotado. Os bancos quase sempre com excesso de sua capacidade. Muita gente segurando nos balaústres - com os pés nos estribos (plataforma ou degrau), com certo perigo de vida, aguardando a chegada das seções seguintes para conseguir assento nos bancos. Nos idos dos anos 1940, era costumeiro ao cair da tarde, quase todas as pessoas que trabalhavam no Centro e que moravam nos bairros de Farias Brito, Otávio Bonfim, São Gerardo e Alagadiço, adquirirem nas padarias situadas nas diversas ruas centrais, pães, bolachas, biscoitos - ainda quentes do forno com inconfundível, agradável e denunciador aroma, que aguçava logo o apetite de qualquer um! Ah tempo bom! Das inigualáveis bolachinhas “Ceci”, feitas com “leite condensado da Holanda”, vendidas na Padaria Duas Nações - cujo proprietário - o distinto português, pai do nosso amigo - desembargador Raimundo Bastos. Tudo era acessível a todos. Mais fácil. Não pairava a existência de qualquer desigualdade econômica ou hegemonia social. Todos eram iguais, resguardados pelo respeito mútuo próprio da época. Na etapa do ano que se comemorava a Semana Santa, pobres e ricos tinham como comprar o pão de coco, bacalhau, vinho mesmo em pequena quantidade, até o vinho a granel vendido na Padaria Modelo - do português João Martins Canito, na Rua General Sampaio, entre as ruas Senador Alencar e São Paulo, mesmo sendo pobres, também participavam dos atos religiosos celebrados com muito respeito. Recordando ainda as padarias que se localizavam no Centro, vem-nos à mente a Padaria Palmeira - situada na esquina da Rua Guilherme Rocha com Senador Pompeu, onde grande número de fregueses se dirigia a um recanto no qual se encontrava um nicho com vulto de tamanho pequeno de Santo Antônio, conhecido como santo casamenteiro e, abaixo, incrustado na espessa parede um cofre para colocar moedas como esmola, às vezes com pedidos escritos das moças donzelas, que haviam dado os primeiros pulos da “macaca” e, por isso, se valiam com muito fervor nas súplicas ao santo, para não receber, coitadas, a peja de titia, solteirona, coroa, balzaquiana, e o pior de todos esses qualificativos, o de terem ficado na “peça” e receber o apelido de “vitalina” porque ficara no “caritó”. Era na inesquecível Padaria Palmeira que as jovens que se consideravam ultrapassadas pela idade se postavam a pedir a santo antônio recitando além da oração os versos trazidos de Portugal que diziam:

Santo Antônio de Lisboa que em Lisboa foste nado, em Roma coroado, em Pádua visitado, pelo hábito que vestistes, pelo cordão que cingistes, eu vos peço uma graça pelo poder que adquiristes.

Assim, após a oração ficavam mais confortadas e esperançosas de arranjar um “gajão” enviado pelo santo casamenteiro, ou fazendo outras tentativas no dia 13 de junho, por ser-lhe o dia consagrado e, como última esperança o responso, ou ceia de São Pedro no dia 29 de junho.

Além dessas, outras padarias existiam no Centro e ruas contíguas, como a Lisbonense, Aliança, Triunfo, Nordestina, Globo, Santa Teresa, Ideal, Lisboa, Benfica, ou por onde o bonde passava...

Major Facundo, final dos anos 30 início dos anos 40

No caso da linha Alagadiço, por ser muito longo o seu trajeto, algumas pessoas cochilavam com o agradável balanço do vaivém que o bonde fazia. Tinham os passageiros, por sua vez, o cuidado de descer nos pontos certos que serviam de orientação. no caso da 1a seção - a Fábrica Siqueira Gurgel, após a Praça Otávio Bonfim e o Grupo Escolar Presidente Roosevelt; o Instituto dos Cegos e a Igreja de São Gerardo - 2a seção; e, Secretaria de Agricultura do Ceará, próximo à 3a seção, quando chegava na grande propriedade do Dr. Rocha Lima.

O nosso passageiro ilustre da linha do Alagadiço é o falecido humanitário médico - Dr. Abnegado da Rocha Lima, nascido em Fortaleza aos 17 de fevereiro de 1887. Residia numa casa de sua propriedade quase no final da linha do bonde da Av. Bezerra de Menezes, cujo sobrado ocupava mais de uma quadra com fundos pertencentes. Ao lado, uma capela da família onde todos assistiam às missas aos domingos.

Em 1913, contraiu matrimônio com Maria Braga da Rocha Lima, conhecida como D. Filhinha, nascida em 12 de outubro de 1892. Do enlace, o casal teve os seguintes filhos: Paulo, Afonsina, Hélio e Alberto. Dentre seus filhos, destacou-se o general Paulo Braga da Rocha Lima, um dos componentes da Força Expedicionária Brasileira que, em Monte Castelo, na península itálica, soube elevar com brilho e galhardia o nome de nossa pátria.

Foi o percursor da implantação da manutenção de orfanatos no Ceará. Sempre mantinha de 80 a 100 crianças internadas sob suas expensas. Fundou, dirigiu e era o principal mantenedor, durante muitos anos, do Instituto de Proteção e Assistência à Infância.

Para doutorar-se em medicina, a 28 de dezembro de 1911, defendeu tese perante a Faculdade Médica do Rio de Janeiro, atual Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, versando a dissertação sobre Rachistovanização e suas vantagens.

Foi inspetor de higiene do estado do Ceará. Organizou e publicou o Boletim Trimestral de Estatística Demográfico-Sanitário da Cidade de Fortaleza, no ano de 1912, primeiro ano de sua publicação.

Antes de sua morte, fez um levantamento em seu fichário de atendimento gratuito de nada menos que 75 mil crianças, conforme dados estatísticos constantes do arquivo do Instituto de Proteção à Infância. Faleceu em Fortaleza aos 24 de outubro de 1954. (Dicionário Bibliográfico Cearense - Pág 39/40 - Barão de Studart - 2a edição - Organizado por Newton Jacques Studart - Vol. I).

Na administração do general Murillo Borges, a Avenida Bezerra de Menezes passou por grande modificação, dando maior amplidão à visão, com a retirada de todos os pés de “ficus-benjamins” - árvores de porte robusto, de copa densa e com muitas raízes aéreas e aventícias, que ali cresceram ao longo de toda a avenida formando canteiros e alamedas, no centro, dividiam a avenida, fazendo separação de toda sua extensão.

Assim, os antigos pés de “ficus-benjamins”, que na sua vetustez sombreavam a avenida em quase todo comprimento, onde famílias inteiras ali residentes se abrigavam como passatempo debaixo das copiosas árvores, que ia além do apreciar o constante descer e subir dos passageiros, se refrescavam do calor do nosso verão abrasador e, para deleite de todos, uma imensa visão da avenida junto ao canteiro central servia de divisória ornamentada pelas árvores altaneiras.

Realmente, deve ter sido a Av. Bezerra de Menezes, uma das principais obras da administração Murillo Borges (1963 a 1967), porque modernizou e mudou o antigo aspecto de uma avenida extensa, sombria, com árvores envelhecidas ao longo do tempo, testemunha de variados episódios onde a lembrança e a saudade são companheiras inseparáveis.

Como dizia, a Av. Bezerra de Menezes teve na gestão Murillo Borges o seu ponto alto, quando mudou para camada asfáltica toda a malha que compõe a avenida.

Assim, a inauguração teve a singularidade de congraçamento dos moradores e de todos que percorriam aquela avenida, unindo-se a um só, numa quilométrica mesa posta pelos moradores da avenida que promoveram um grande banquete, em que cada um expunha suas iguarias, guloseimas e acepipes dos mais variados tipos. Com o corte da fita simbólica pelo general Murillo Borges, teve início a grande festa de inauguração da Avenida Bezerra de Menezes, que daí em diante trouxe outra imagem que a modernidade transformou no apreciável centro de comércio.

Ah! se o tempo retrocedesse ou não deixasse apagar da nossa imaginação as coisas boas que a vida nos dá. Seria o céu na Terra com tudo que tem direito um pecador temente a Deus e que Dele recebe sublime inspiração para divulgar o estado de espírito...

O bonde na rua Major Facundo

Mas, fora da caçoada! - Quem teve a oportunidade de se transportar nos bondes pela Avenida do Alagadiço nas manhãs de inverno, com céu pardacento carregado de nuvens plúmbeas embruscando o tempo, contemplando aquela imensa paisagem, acolhe no peito as saudades, nos olhos marejam as lágrimas, a lembrar do que se foi na poeira do tempo a que tudo se reduz, só sente o pulsar do velho coração que continua fiel e resistindo aos percalços do cotidiano.

Zenilo Almada Advogado


quase sua totalidade as linhas servidas por bondes elétricos saíam da Praça do Ferreira - Era freqüente em algumas cidades brasileiras esse sistema de todas (ou quase todas) as linhas convergirem a um ponto determinado, geralmente uma praça. Por exemplo, em Niterói (RJ) o ponto geral de partida era a Estação das Barcas. No Rio de Janeiro, como sugere o porte da cidade, os pontos de convergência eram diversos, localizados de acordo com as seções (o termo seção pode significar tanto a subdivisão da linha, que define a variação dos preços de passagem, quanto a seção administrativa do sistema, que abrange determinado número de linhas que atendem especificamente um espaço ou região da cidade), definidas nos centros dos bairros ou num ponto de saída específico para determinada região, como no caso dos bondes da Zona Sul, que se dirigiam aos bairros do Catete, Humaitá, Praia Vermelha, Copacabana, etc., partindo todos do célebre “Tabuleiro da Bahiana”, uma estação localizada numa extremidade do Largo da Carioca (onde hoje passa a Avenida Chile, próximo ao atual ponto de partida dos bondes de Santa Teresa), cuja cobertura deve ter-lhe gerado o apelido, devido ao formato.

Todos eram iguais, resguardados pelo respeito mútuo próprio da época - É interessante notar que este fenômeno social ocorria - e talvez ainda ocorra - com freqüência em ambientes provincianos ou semi-provincianos, nos quais, paradoxalmente, costuma existir uma certa valorização das hierarquias. Acontece que, apesar disso, o espírito ameno desses ambientes gera uma atmosfera de amizade e consideração geral e mútua entre as pessoas, ocorrendo, de forma espontânea, uma condição na qual as desagradáveis “barreiras sociais” tornam-se flexíveis e às vezes abertas. Em ambientes ferroviários do interior, por exemplo, pelo menos até a década de 1960, eram comuns (e talvez ainda o sejam) as visitas mútuas entre operários e diretores de oficina e todos eram mutuamente convidados (e compareciam) às festas familiares.

o agradável balanço do vaivém que o bonde fazia - O balanço característico dos bondes, como de qualquer veículo ferroviário, tem um efeito de “berço”, que provoca uma agradável sensação de repouso, às vezes de letargia. Principalmente nos trens dormitório é comum sentirmos esse efeito e chegarmos ao destino após uma ótima noite de sono.





Crédito: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 08 de junho de 2003


domingo, 20 de junho de 2010

O bonde (VIII) - Linha Outeiro/ Aldeota - Santos Dumont


Fotografia antiga do bonde Outeiro

O jornalista de primeira água, poeta, escritor, romancista e sociólogo Jader de Carvalho, desassombradamente escreveu o romance - Aldeota, na década de 1960. Na sua obra magistral - (13o capítulo, pág. 286) com muita propriedade proclama: “Não dizem que o tempo tem asas? Pois tem mesmo. Na Aldeota levantaram-se riquíssimos bangalôs, agora chamadas ‘casas funcionais’. Quase todos brancos, bela estupidamente brancos numa terra de sol. Doem na vista? Mas ficam bem na paisagem entre o verde do mar e o azul do céu, num suave lombo de terra, que se abaixa cautelosamente em busca da praia.”

Mais adiante exclama: “Numa topografia diferente, microgeográfica, Aldeota se personaliza, assume limites certos, cria a sua própria alma, amadurece enfim ‘Aldeota’”.

As evidências provam que muitas das famílias antigas que moravam noutros bairros, ou mesmo no Centro da cidade, passaram a residir no aristocrático bairro da Aldeota, embora outros continuassem fiéis, e não se deixaram atrair pela zona Leste da cidade até por questão de bairrismo, ou saudosismo.

Mudavam de status, mas o bonde, impassível ao tempo, continuou a transportar seus passageiros indiferente a tudo. Percorria na sua trajetória conduzindo passageiros de todos os recantos da cidade e de todos os matizes, credo, profissão, cor, pobres e ricos enfim, indistintamente. Até porque havia entre todos humildade, condescendência e mútuo respeito acima de tudo. Quando por ventura algum passageiro se exagerava no beber, e, se ousasse tratar mal ao cobrador e mesmo passageiro, - o fiscal conduzia um apito, e logo - parava o bonde, pedia para o molestador descer e se não atendesse - apitava novamente e todos os passageiros - gritavam - “Chama o guarda” era na realidade “o passe mágico” para que o guarda da Polícia Estadual, encarregado na manutenção da ordem pública, colocado entre vários quarteirões da cidade, e, que se comunicavam e atendiam rapidamente com o chamado do guarda pelo apito para de repente restabelecer a paz, o silêncio e a proteção no coletivo.

Postal antigo da Rua Floriano Peixoto

Embora muito se tenha comentado, propalado, comensurando valor, divulgando a celeridade do crescimento populacional, em espiral no que se refere ao progresso dos valores imobiliários, comparado a outros bairros - e até com certa irinia, se dizia: “Que o bairro Aldeota, cheira a dólar”, em confronto com outros bairros que não tiveram ascensão rápida, mesmo porque àquela época a extensão territorial não ia além da Av. Desembargador Moreira à altura do Hospital Militar do Exército.
Na sua exuberância o bonde Outeiro - Aldeota, fazia aprazível percurso: saía da Travessa Morada Nova, por trás do prédio da antiga Assembléia, dobrava à direita na Rua Floriano Peixoto até chegar à Travessa Crato, quando entrava à direita, seguia até a Rua São José (antigo Beco das Almas) e entrava na Rua Visconde de Sabóia ao lado do Colégio da Imaculada Conceição, entrando à esquerda na Av. Santos Dumont, e, seguindo em linha reta até a Rua Silva Paulet.
O nosso ilustre passageiro escolhido da linha Aldeota - Outeiro, é o médico, ex-professor e foi diretor da Escola Normal Justiniano de Serpa - por mais de 50 anos, cujos dados biográficos abaixo, em notas de registro - Barão de Studart no volume primeiro do seu Dicionário Bio-Bibliográfico Cearense (Ed. de 1910 - fl.491).

João Hippolyto de Azevedo e Sá - nasceu em Fortaleza a 13 de agosto de 1881,” - se vivo fosse iria completar 122 anos - “filho de Jeronymo Vieira de Azevedo e Sá, e neto paterno de João Batista de Azevedo e Sá e Anna Vieira de Azevedo e Sá e materno de Domingos Pereira Façanha e Ana Bayma Façanha".

Fez o curso de preparatórios no Ginásio Nacional, atual Colégio Pedro II, e matriculando-se a princípio na Faculdade da Bahia, em que fez o primeiro ano, e depois na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, defendeu tese em 22 de janeiro de 1904.

Sua tese foi aprovada com distinção, versou sobre segredo médico. A 1o de março de 1904, foi nomeado professor interino de Física e Química na Escola Normal do Estado e efetivo a 30 de fevereiro de 1908.

Bonde na Rua Floriano Peixoto

À 7 de dezembro de 1905, foi nomeado para a Secção de operações e partos no Hospital de Misericórdia de Fortaleza.
Permaneceu várias décadas como diretor da Escola Normal Justiniano de Serpa, cujo cargo se aposentou. Após sua aposentadoria, foi convidado a exercer em comissão o cargo de diretor do Instituto de Educação no qual ficou por alguns anos, era avô do meu amigo Márcio de Azevedo e Sá Livinio de Carvalho, já falecido.
Dr. Hipólito, como era conhecido, residiu por muitos anos na Av. Santos Dumont No 2110, esquina com a Rua Silva Paulet, ponto final do bonde Aldeota. Nesse local, se acha instalado o Banco Mercantil de São Paulo.”
A Avenida Santos Dumont, antes fora denominada - Av. Nogueira Acióli - 1933, de No 9 - 1890, “Do Colégio” 1888 - Registra João Nogueira - Fortaleza Velha, pág. 43.

No dia 14 de fevereiro de 1914, começou a funcionar a linha do Outeiro (Santos Dumont/Aldeota). “Nesse ano, chegavam ao nosso porto, dentre outros navios estrangeiros, 34 ingleses, comprovando a contínua hegemonia britânica em nosso porto, seguido em número por 14 vapores alemães, e que seriam os últimos, em razão do início da Primeira Guerra Mundial, a visitarem nosso porto até 1923 - Ary Bezerra Leite - História da Energia no Ceará, pág. 70.”


A linha do bonde Outeiro tinha início no Colégio da Imaculada Conceição e numa reta rumo ao Leste, passava em frente ao Colégio Militar, e para quem sobe a Avenida Santos Dumont vê-se à direita, dentre outros, o bangalô do Dr. Edmilson Barros de Oliveira, local hoje da clínica que leva o seu nome, dirigida por seus ilustres filhos - Francisco José Motta Barros de Oliveira e Edmilson Motta Barros de Oliveira, ao lado esquerdo bonito sobrado de Gutemberg Teles, proprietário das lojas de tecidos “Casas Novas”, instaladas também em boa parte no interior do Ceará; o casarão de Manuel Cavalcante, a casa da família do Gal. Eudoro Correia, Demóstenes Brígido, Abel Ribeiro, seu filho Humberto Ribeiro, Dr. Paulo Torcápio Ferreira, Mystil Meyer, o inolvidável e majestoso Palácio de Carvalho, cercado por inúmeros bangalôs, cada qual no seu estilo próprio, construídos por seu arquiteto Emílio Hinko, que após sua morte convolou núpcias com a viúva D. Pierina. Hoje no local ergue-se o Centro de Artesanato D. Luíza Távora, seguindo ainda as elegantes casas e sobrados dos milionários da época; das famílias Joaquim Eduardo de Alencar, Sr. Vicente de Castro Filho - Sr. Bené; Inácio Capelo, da Sapataria Belém, casa que servia de residência do Gal. da 10a Região Militar, palacete do Dr. João Hippolyto de Azevedo e Sá, depois mais modernamente dos irmãos Salomão de São Domingos Pinheiro Maia e Vesúvio de São Domingos Pinheiro Maia, Sr. Célio Fontenele Filho, Thomas Pompeu de Souza Brasil, Paschoal de Castro Alves etc.

Rememorando o início dos bondes elétricos, que substituíram os bondes puxados a burro na nossa Cidade, tivemos como conseqüência no salto do progresso da nossa civização urbana. - Mozart Soriano Aderaldo - no seu livro História Abreviada de Fortaleza - às pág. 41 - assevera com percuciência:

“Em 1914, teve início a era dos bondes elétricos. Havia bondes de ‘tostão’ e de ‘dois tostões’ isto é, de cem e de duzentos réis, que eram identificados pela cor de suas testadas: - O de segunda classe era prateado e o de primeira classe era pintado de verde. Os cupões das passagens, destacados pelos cobradores (condutores, como eram chamados) à vista dos passageiros, eram a estes entregues porque valiam a centésima parte de seu preço, desde que resgatados em favor de associações de caridade, como a Santa Casa, o Asilo de Alienados, o Leprosário etc. Dessa forma, a empresa concorria para aquelas filantrópicas entidades e, ao tempo, controlava o movimento de passageiros, para efeito de tomada de contas”.

O grande historiador e engenheiro João Franklin de Alencar Nogueira - João Nogueira - no seu livro Fortaleza Velha - destaca capítulo sobre “O bonde Velho” - pág.165 e no “Carro de borracha” - Era o famoso bonde puxado a burro, que antecederam os bondes elétricos. Esse transporte eminentemente rudimentar, movido por asinino.

A inauguração do bonde velho marcou época na vida de Fortaleza

"Os que ainda restam daquele tempo se recordarão, talvez, da admiração e dos aplausos com que foi recebido, nesta cidade, tão grande progresso. No domingo, 25 de abril de 1880, a Companhia Ferro Carril do Ceará inaugurou as linhas de Estação e do Matadouro Público. Às 7 horas da manhã, quatro bondes embandeirados partiram da frente do Mercado Público, à Praça da Assembléia, e foram até Matadouro; e, de volta, chegaram à Estação do Depósito, na estrada de Messejana.

No primeiro iam o presidente da Província, Sr. José Júlio, e convidados; nos dois seguintes, acionistas da Ferro Carril; e no último a música da Polícia. Ao chegarem àquela estação, ali tocava a banda do 15o e subiram ao ar inúmeras girândolas.

Houve sessão solene da diretoria, da qual era presidente o engenheiro José Pompeu de Albuquerque Cavalcante, diretor secretário o Dr. Rufino Antunes de Alencar e tesoureiro, o negociante João Cordeiro”.

Lavraram uma ata especial consignando o memorável acontecimento, assinado, que foi, pelo presidente da Província, pelos diretores e acionistas da companhia e por quantas pessoas gradas ali se achavam.

O engenheiro José Pompeu declarou, então, abertas ao tráfego as duas linhas inauguradas e agradeceu, ao presidente José Júlio, os favores dispensados à empresa.

As linhas inauguradas eram, como ficou dito, as da Estação e do Matadouro.

A primeira, partindo da frente do Mercado, seguia pela Praça da Assembléia (lado L), passava em frente à Assembléia, ganhava a Rua da Boa Vista, dobrava na de S. Bernardo e, entrando por um beco, hoje fechado, cortava a Rua da Alegria; passava ao lado N. e em frente aos Artigos Bélicos e pela Rua do Conde d’Eu entrava ao Largo do Garrote, donde pela estrada da Messejana ia em linha reta à Estação, construída em 1879.

O ramal do Matadouro começava no cruzamento da Rua da Boa Vista com a de São Bernardo. Seguia por esta até a Rua Amélia, pela qual subia até a Praça de Pelotas.

Dobrando na esquina do Formiga, seguia pela Rua do Livramento, atravessava em diagonal a Praça S. Sebastião e entrando pela entrada do Soure chegava ao Matadouro.

O bonde de Pelotas seguia este mesmo itinerário, partindo, porém, do Mercado a fazer ponto naquela praça, junto à Rua General Sampaio. A extensão total dessas duas linhas era avaliada em 7.500 metros.

Um anúncio avisava o público de que os carros partiriam do Mercado, de meia em meia hora, e enquanto houvesse passageiros.

As passagens eram de cem réis, a bitola a mesma de hoje, 1,40m e tração animal. Os carros eram desiguais: havia os de 4, de 5 e de 7 assentos, com as lotações correspondentes de 16, 20 e 28 passageiros.

Os trilhos constavam de longarinas de madeira, pregadas nos dormentes, forradas por cima de cantoneiras de ferro sobre cuja face superior corriam as rodas. Foram depois substituídas por trilhos de ferro tipo Vignole.

A planta de Fortaleza de 1888 consigna as alterações feitas nas linhas inauguradas em 1880 e os ramais então existentes.”

Tivemos também as linhas do Outeiro e da Porangaba, das quais detalhes e datas se encontram no Almanaque do Ceará para o ano 1906.

Antes da inauguração do bonde, a carne verde vinha, pela tarde, do matadouro para a feira em costas de burros tangidas pelos carniceiros (magarefes) que vestiam longas blusas de baeta encarnada e traziam barretes da mesma fazenda e cor.

À boca da noite, voltando do Mercado, montados em disparada, que fazia tinirem os ganchos de ferro em que haviam trazido a carne, aqueles homens, vestidos de encarnado metiam medo aos meninos, que neles viam demônios, matadores ou lobisomens.

A Ferro Carril acabou com este transporte anti-higiênico da carne verde, construindo bondes fechados especiais, destinados ao mesmo fim.

Já muito depois de inaugurada a nossa viação urbana, apareceram os bondes chamados João-cotoco. Eram carros sem coberta, com uma lanterna multicor em cada frente, que só trafegavam à noite, especialmente nas de luar.

Era nesses bondes que os fiotas e notívagos do tempo andavam acima e abaixo contando anedotas e desfrutando a fresca da noite, até ficarem de nariz entupido, tal como acontecia aos prosistas, que demoravam, até tarde, nas nossas antigas rodas de calçadas.

Outeiro, mais precisamente Aldeota, é na realidade de hoje o bairro mais contemplado pelo progresso da nossa cidade, porque seu aspecto arquitetônico diferencia dos demais bairros da nossa Fortaleza; se sobressaindo com as modernas edificações tornando-o independente do resto da metrópole por ter vida própria.

Bonde elétrico 1930 - A imagem mostra o bonde elétrico, na Floriano Peixoto, aberto, prefixo 76, na linha do Outeiro, passando ao lado de uma bomba de gasolina. Reparem na arquitetura dos prédios... Banco do Brasil, na época... (por volta dos primeiros cinco anos da década de 1930)

A Avenida Santos Dumont vai do Centro da cidade à Praia do Futuro. Começando na altura da Rua Cel. Ferraz, terminando na Av. Dioguinho, se interligando desde o Centro, Aldeota, aos bairros Varjota, Papicu, Praia do Futuro. Outrora, somente uma ampla dimensão de terra virgem e inóspita formava a paisagem do Outeiro - hoje Aldeota - com alguns sítios, matagal espesso, cuja copagem, com predominância de arbustos, carrapicho-da-praia, servia de moradia das diversas espécies de pássaros - como os bem-te-vis-de-gamela, galos de campina, graúnas, sabiás, canários, da terra, dessa imensa fauna que os repetidos estribilhos despertavam novos moradores, tornando Aldeota essa “selva de pedra” que se ergue em desafio ao céu, mas, tudo isso tem clássico nome de modernidade.

Sabemos que muitas ruas e lugares mudaram a fisionomia da Aldeota. Mas se os tempos mudaram e tomaram rota diferente, sob certos aspectos, tornando desiguais as pessoas na concepção dos seus entendimentos, destinos e caminhos, somente Deus na Sua onipotência pode mudar o curso de todas as coisas ou perpetuar segundo Sua vontade, porque pode dispor e transpor -

Amém.

Zenilo Almada
Advogado






Crédito: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 23 de fevereiro de 2003


O bonde (VII) - Prainha

Bonde em 1920

Depois que comecei a fixar lembranças sobre bondes, observo que ficou na minha retentiva uma sucessão homogênea e quase interminável de uma fisionomia arquitetônica da nossa cidade, onde se vêem comparadas as classes sociais alta, média e pobre numa sensível diferença na forma de habitação. Talvez tenha despertado em mim o desejo de rever outros locais como outras linhas de bondes entre os anos 1940/1950, embora sabendo que os bondes foram retirados de circulação em 1947, na gestão do prefeito Dr. Acrísio Moreira da Rocha, que ainda vivo pode contar a história com detalhes. Pois bem. Mesmo criança sempre tive meu “desconfiômetro” muito aguçado, procurando gravar o que mais poderia prender a atenção, o que pode causar intriga às pessoas dispersivas que não se incomodavam em tomar conhecimento do que se desenrolava ao seu redor. Mesmo porque sinto que não estou entre os que têm o poder de se acomodar só com a contemplação do etéreo.

Mas o agitado barulho dos bondes deixava aos ouvidos a visão tão nítida da trepidação no deslizar das rodas sobre os trilhos, aquele movimento do subir e descer que impulsionado pelo bonde dava a sensação de que estávamos seguindo sempre em linha reta com o olhar na paisagem que corria aos nossos olhos como uma cena cinematográfica.

Bonde na Avenida Pessoa Anta

Desta vez, vamos passear no “Bonde da Prainha”. Êta passeio bom! Vamos subir até a ladeira da rua Almirante Jaceguay em frente à Igreja do Seminário, na Praça Cristo Redentor, defronte hoje ao “Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura” e ver o grande vulto do Cristo Redentor, posicionado nas alturas para o lado sul da cidade, segurando o cetro (bastão) inerte, a olhar o oceano Atlântico e os seus navegantes a bordo trafegando nos navios, botes ou jangadas.

O bonde da Prainha no seu curto itinerário saía da Travessa Morada Nova, detrás da antiga Assembléia Legislativa do Ceará, hoje Museu do Ceará; dobrava à direita na rua Floriano Peixoto, entrando à direita na Travessa Crato e, depois, à esquerda na Av. Alberto Nepomuceno, passando em frente à Igreja da Sé - Catedral; dobrava à direita defronte à Secretaria da Fazenda, passando em frente ao antigo Café Gato Preto e à Companhia de Navegação Booth Line, na rua Pessoa Anta, cujo prédio, mais tarde, transformou-se na boite Tabaris, mais conhecida como lupanar do famoso Zé Tatá - cujo nome verdadeiro era José Vicente de Carvalho -, sobralense que elegeu nossa cidade para suas libações, abrigando em sua pensão odaliscas de diversos lugares do Ceará e também importadas do Maranhão, Pará e Piauí, que por aqui chegavam para iniciar sexualmente a rapaziada que, depois, se constituíam de pacientes dos enfermeiros Mundico - Dr. França - e Almeida; entrava à direita na Av. Jaceguay - ao lado da Capitania dos Portos, Praça Almirante Tamandaré e subia a ladeira até a Igreja do Seminário - Av. Monsenhor Tabosa, ao lado da Praça Cristo Redentor.

Ao lado direito (norte) da Praça Cristo Redentor, esquina com a ladeira da rua Almirante Jaceguay (leste), existia a linda chácara do gerente da Ceará Tramway Light & Power Cia. Ltda. - o engenheiro londrino Francis Reginald Hull - mais conhecido como Mister Hull - onde o bonde estacionava de frente para a Igreja da Prainha - e seminário diocesano de Fortaleza.

Esta foto foi encontrada num encarte contendo diversas fotos, oriundas do Arquivo do Nirez, de igrejas antigas de Fortaleza. Nesta aparece um bonde de uma das linhas da Prainha, que um dos consultados (gente da velha geração) afirmou ser Prainha-Seminário (o que faz sentido, pois o ponto final ficava próximo do Seminário, na Prainha). Dr. Zenilo Almada acha que não houve linha com essa denominação. A rua era a então Coronel Bezerril, hoje General Bezerril. A Praça ao lado chama-se General Tibúrcio, mais conhecida por Praça dos Leões devido a existência de duas belas esculturas encimando a escadaria de acesso da ou para Rua Sena Madureira. A Igreja de Nossa Senhora do Rosário, inaugurada no Século XVIII, é considerada a mais antiga de Fortaleza. A foto data de 1908. A edificação grande, ainda existente, era do então Hotel Brasil. A parede ao lado da palmeira é dos fundos da antiga Assembléia Legislativa. Entre o Hotel e a Assembléia divisa-se a Travessa Morada Nova, onde posteriormente passaram a trafegar bondes de outras linhas. Na época os bondes iam até mais adiante, ingressando na Rua Guilherme Rocha, parando ao lado da “Rotisserie”, acho que se chamava Palácio Brasil, entrando depois na Rua Floriano Peixoto rumo aos seus destinos. (Adolpho Quixadá)

O retorno era quase o mesmo percurso de ida. Ao chegar na Av. Alberto Nepomuceno, fazendo contorno pela Secretaria da Fazenda, passava em frente ao Quartel General da 10a Região Militar, Arquivo Público no mesmo local em que mais tarde foi edificado o Fórum Clóvis Beviláqua, hoje no bairro Edson Queiroz - Praça D. Pedro II; entrava na Travessa Crato, dobrava à direita na rua General Bezerril até alcançar a Travessa Morada Nova.

O nosso ilustre passageiro da linha do bonde - Prainha - não poderia deixar de ser o gerente da própria empresa - Ceará Tramway Light & Power Cia. Ltda., o nosso engenheiro Francis Reginald Hull - “Mister Hul”; - que durante longos anos gerenciou, aqui em nossa terra, os destinos da empresa, permanecendo por entre nós até o término do contrato que mantinha com a Prefeitura Municipal de Fortaleza - 1947, que é o mesmo ilustre Mister Hull que dá nome à grande Avenida Barro Vermelho, depois Antônio Bezerra - e hoje boa parte da avenida que liga a BR 222 à Caucaia.

Mister Hull permaneceu por muito tempo na gerência da Ceará Light, residindo na aprazível vivenda de dois pavimentos, com terreno esconso, cheio de plantações, com direito à passagem do Riacho Pajeú, na Praça Cristo Rei, esquina com Av. Jaceguay, início da rua do Seminário - hoje Av. Monsenhor Tabosa, cuja vivenda cercada por um lindo jardim, feericamente iluminado dando-nos a impressão de um palacete de Londres, com uma torre elevada e vetusta em forma de mirante, que servia como observatório aos estudos do Mister Hull. Segundo se comenta, Mister Hull era profundo conhecedor da meteorologia, da climatografia nas suas variadas manifestações em nosso estado. Hoje, nesse local, após a demolição de vários prédios também suntuosos, veio dar origem ao Pólo de Cultura Dragão do Mar, fazendo-se um retrospecto dos prédios que circundaram a praça fazendo contornos, tinham fachadas e modelagens dos antigos casarões que não mais existem e tornam difícil retroceder ao passado, para se tipificar seus estilos antigos modernizados, atualizando com suas linhas arquitetônicas, distinguindo uma da outra, ou seja, o que era antigo continua antigo com a feição mais cuidada, conservando sua originalidade, enquanto o Pólo de Cultura Dragão do Mar obedece ao estilo moderno e atualizado sem se chocar com o já existente.

A torre da casa de Mister Hull

Nesta despretensiosa crônica à assessoria da Coelce, na pessoa da distinta senhora Ana Lúcia Girão, excelentes subsídios sobre a História da Energia do Ceará, do ilustre autor Ary Bezerra Leite e que nos traz muita elucidação.

“A Segunda Grande Guerra (1930/1945) impedira a importação de novos veículos e de peças de manutenção. Findo o conflito universal, dois anos após, em 1947, os bondes, sem energia suficiente para acioná-los e sem a indispensável manutenção mecânica, saíram de circulação”; E mais adiante conclui:

“E ninguém teve sequer a lembrança de criar um ‘Museu do Bonde’, de modo a registrar no contexto da História de Fortaleza, um dos seus mais interessantes capítulos. Até isso, todavia, o livro de Ary Leite consegue resgatar, em parte, através de preciosos documentos iconográficos obtidos junto a acervos das empresas sucessoras da Ceará Light e nos arquivos particulares dos herdeiros de Mr. Hull (História da Energia do Ceará - Ary Bezerra Leite).

Blanchard Girão - Memórias - escreveu “O Liceu e o Bonde”, excelente trabalho que faz parte indelevelmente do seu álbum de recordações da nossa cidade de Fortaleza nas décadas de 1930 e 1940 no período de sua infância e adolescência. Ele diz:

“O bonde que conheci era o ‘Tramway’, veículo movido a eletricidade, amplo, arejado, porquanto todo aberto, valendo-se de sanefas de listras verdes e brancas como proteção da chuva ou do sol mais intenso. Possuía dois estribos laterais, além de pára-choques na parte posterior - igual de ambos os lados, trocando-se, no final da linha, a lança condutora de energia e o lugar do motorneiro. De cor verde (houve um tempo, antes de mim, que teria sido branco), o bonde, além do nome de indicação do bairro, possuía uma lâmpada colorida que indicava o seu destino. Circulou de 1913, quando substituiu o bonde puxado a burro, até 1947”.

Também, caros leitores de suas memórias, me socorro para lembrar os chistosos “reclames” de remédios que por serem espirituosos provocavam risos, colocados na lateral interna do bonde, onde podia ser lido pelo passageiro.

Era comum ver-se a propaganda de certos vermífugos com a figura do Jeca Tatu, óleo de rícino, óleo de mamona ou carrapateira... Infoscal - iodo para o sangue, fósforo para o cérebro, cálcio para os nervos... O famodo “Óleo de Fígado de Bacalhau”, “Reconstituinte Silva Araújo”, “Pílulas de vida do Dr. Rossi, faz bem ao fígado e a todos nós, pequeninas mas resolvem”, “Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal...”; “Hum! Que calor! Que dia quente! Rim doente? Tome Urodonal e viva contente...”; “Os produtos Bayer - Se é Bayer, é bom”...; Pílulas de Reuther; “Licor de Cacau Xavier”. Cada um aplicado convenientemente na sua correspondente necessidade orgânica.


Se é Bayer, é bom

Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal

Para quem lia a espirituosa propaganda, por vezes, era natural quebrar o silêncio ou a sisudez que o passageiro pudesse ser portador.

Era de fato muito agradável passear nos bondes da nossa querida cidade nos idos anos de 1940, percorrer sem medo de ser importunado por qualquer “malfazejo” que se tivesse notícia, porque além do número resumido, eram todos conhecidos, não tinham ainda o aprimorado conhecimento nem a técnica hoje utilizada pelos malfeitores e estupradores, com requintes de perversidade, os perigosos drogados, que não vale à pena se perder tempo nem se ocupar em denunciar esse tipo de gente que não devia fazer parte da nossa coletividade. Tudo era tão calmo, até o vento “solteiro” e “brecheiro”, só conhecia a “Esquina do Pecado” (Major Facundo com Guilherme Rocha) Broadway, vindo do mar para alegrar as moças que por ali passavam segurando as saias rodadas que, com muito papo, se esvoaçavam com o vento e, subindo até a cabeça, dava por vezes a tão esperada “brecha”, que causava muita aflição às jovens que por ali transitavam. Por isso, as alunas da Escola Normal, Colégio da Imaculada Santa Cecília, Lourenço Filho, Colégio Americano e Liceu tinham a maior precaução e quando por ali volteavam, seguravam a saia com as duas mãos, embora a vaia uníssona dada pelos colegiais servisse para animar aquelas tardes no Centro da cidade, onde os “paqueradores” se postavam para dirigir galanteios dos mais variados gostos, uns mais espirituosos, outros de certo mau-gosto, ou humor negro, que muitas vezes eram por elas repelidos com certa veemência. Ah! Tempo bom, que hoje não trazes mais!

Estacionava nesse local uma figura considerada como “foco de atenção” - que se celebrizou por ser atraente seu escorreito linguajar, invejável semântica e perfeita adjetivação, causando certa dificuldade na compreensão da sinonímia, que a todos agradava por seus gestos e mímicas, dotados de certa puerilidade que algumas expressões pronunciadas de forma enfática, com imagens rebuscadas que se tornaram célebres - como esta, dirigida a um amigo que há muito tempo não o via, saiu-se assim: “Fulano, de onde vens, com essa palidez marmórea, saíste de alguma clausura?” De outra feita se dirigiu à Casa Elefante (loja de louças e utensílios domésticos) na rua Floriano Peixoto, de frente para o Palácio do Comércio, indagando ao vendedor mais antigo da loja, conhecido como “Siridó”: “Quanto custa um aparelho côncavo de ágata branca para micções noturnas?” Aí, Siridó responde: “Temos tamanho grande, médio e pequeno.” E conclui: “Se for para você mesmo é tamanho pequeno, mas se for para senhora sua mãe, talvez o grande ou o confortável ‘capitão’...”. Outra vez, na mercearia da esquina de sua casa, indaga ao bodegueiro: “Aqui tem uma substância cremosa, de cor amarelo ouro, com 50% de proteína, creme de leite, fermento lácteo e sal!, que o populacho chama de manteiga?” De outra feita, sentenciou: “Quando olhar no espelho e vir a minha cabeça fios de cabelos branco darei gritinhos de horror... envelheci, envelheci, envelheci...” E, assim por diante, a sua verbosidade.

Mas, quem melhor conheceu a verve desse ilustre personagem, O. A. D., autor de crônica, cujo título eram as iniciais do seu nome - “O. A. D.” -, cujo dito ao tomar conhecimento da divulgação da crônica chorou “mississipis e mississipis” de lágrimas, é o nosso amigo e memorialista de primeira água - Marciano Lopes, cuja revelação do nome verdadeiro, só ele poderia autorizar, porque essa publicação foi causa do rompimento até a morte do ilustre O. A. D. O mesmo residiu por mais de 40 anos no Rio de Janeiro, exercendo a função de museólogo, e nas horas de lazer desfilava na Av. Atlântica - Copacabana; por aqui esteve lançando livro muito festejado. Mas, tudo isso faz parte da nossa Fortaleza, cujos tipos folclóricos continuam a marcar época e, ao relembrar as pessoas que têm boa memória, por certo esboçarão no seu contentamento, largo sorriso dizendo: “Ah! A lembrança é vigilante e companheira da saudade que com ela vive, adormece, envelhece, mas não morre”...

Zenilo Almada Advogado

Travessa Morada Nova, detrás da antiga Assembléia Legislativa do Ceará - Esse logradouro era também ponto de partida de outras linhas, como a Praia de Iracema (ver em O Bonde - VI) e Aldeota (ver em O Bonde - VIII).

Ninguém teve sequer a lembrança de criar um ‘Museu do Bonde’ - Essa negligência quanto a preservar a memória dos bondes ocorreu não somente em Fortaleza, mas na maioria das cidades brasileiras que tiveram bondes. Uma excessão significativa é justamente o município que por mais tempo manteve o serviço efetivo - Santos -, que guardou seus veículos (ou parte deles) nas antigas instalações da Vila Matias, restaurando-os recentemente e reconstituindo alguns trechos de linha para um percurso turístico hoje em funcionamento (Ler em O Bonde). Reportando, ainda, à questão dos empecilhos e prejuízos em função dos bloqueios causados pelo conflito mundial, não há dúvida quanto à sua veracidade. Mas não há como não levarmos em conta, também, a falta de interesse em reerguer os sistemas de bondes após o fim da guerra, o que, muito provavelmente, poderia ser feito.

trocando-se, no final da linha, a lança condutora de energia - “Trocar a lança” - Entenda-se: virar a lança, ou mesmo: trocar a posição da lança. A lança - que foi o tipo de captador de energia adotado em Fortaleza (e em muitas outras cidades) - era girada ao contrário, de modo a ficar voltada para trás, quando se invertia o sentido de marcha. O motorneiro, este realmente mudava de lugar, pois passava a conduzir no controle da outra extremidade do bonde, que, nesse momento, deixava de ser a retaguarda para tornar-se a dianteira do veículo. Existiram, no entanto, em algumas cidades (ex.: São Paulo), bondes de maior comprimento que possuíam, de fato, duas lanças, dispostas em sentido contrário uma à outra. O. A. D. - Olavo de Alencar Dutra.


Veja também:


Crédito: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 23 de fevereiro de 2003


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