Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Das antigas - Endividado, matou por um Chevrolet II

      

Dom Juan surtara. Variara. Ninguém tinha outra explicação. Fortaleza dos anos 50 não falava n'outra coisa. Por meses o assunto ia e voltava nas palestras das curriolas. Inesgotável. O sobressalto corria solto nas sedes das agremiações futebolísticas, Praça do Ferreira, cafés, delegacias de polícias, redações de jornal e pensões alegres. Crime bárbaro. Requintes de crueldade e perversão. Logo ele. Ex-jogador de futebol. Fidalgo como alguns poucos. Conversa fácil. Fino trato. Famoso por ter jogado em primeiros quadros de escretes como Tramways Futebol Clube, Light, Ceará Sporting Club, Seleção Cearense e outros grêmios. Atuava na linha. Tempo que na defesa existiam backs. No ataque center forward. Centroavante. Half direito e esquerdo ocupavam as laterais das quatro linhas. Goleiro de verdade se orgulhava quando alguém enchia a boca para chamá-lo de goal keeper. Da época que match era chamada de peleja. 

Pois sim, o mocinho que virou bandido do dia para noite. Era o center half José Ramos de Oliveira, o Idalino. Foi tricampeão cearense em 1940, 1941 e 1942. No primeiro ano pelo Tramways e duas vezes pelo time de Porangabussu. Um craque entranhado na memória do historiador Airton Fontenele, 75. Formou ataques inesquecíveis ao lado de Assis, Zecapinto, César e Djalma. Com a camiseta alvinegra mandava ver com João Brega, França e Mitotônio. Um jogador. Meia direita. Camisa 8. O homem da armação... 

Armou um dia e jogou contra o próprio patrimônio. Pôs tudo a perder. Fama, mulher, amásia e nome na praça. Já estava fora dos gramados. Em 1948, chuteiras aposentadas. No dia 13 de outubro de 1950, voltara às primeiras páginas dos jornais da aldeia. Esporte? Polícia. Tava lá: ''Barbaramente decapitados!'. ''Falando à reportagem, às 13 hs de hoje, Idalino revelou que matara na Pensão da Graça com a cumplicidade da amante''. O ex-craque havia matado dois comerciantes paraibanos para se apossar de um Chevrolet 1950, placa 2127. Rodas embutidas. Top de linha. Tomou pra si o carro. Cobiça. Dívidas. Desespero. 

Chevrolet 1950... Era o tempo também dos caríssimos Cadillacs norte-americanos. Conversíveis. Capota e vidros com acionamento automático. Quatro marchas e motor 8 cilindros. Rabos de peixe. Cara de buldogue. Arredondados. Metálicos e perolados. Dos britânicos e charmosos Triumphs. De encher os olhos e valer muito. Volante à direita, painel de madeira. Esportivo e competição. Do mesmo naipe do Chevrolet 50. Era a chance pra saldar as dívidas. Tirar a corda do pescoço. O pé-de-meia tinha ido ralo a baixo. Farras e pensões alegres. Bem aparentado, tava em todas. Homem pra mais de metro e oitenta. Bigode ralo. Pano passado. Metido a garanhão. Esposo, namorado e gigolô. 

Pensão da Graça. Casa de mulheres de vida fácil. Fácil? Alcinda Leal era a dona e Idalino, amante. Proxeneta. Homem dela. Ia pra lá, mas não pagava. Bebia e comia. Regalias. A pensão ficava ali. Em frente ao portão do antigo Mercado Central. Entre a Praça dos Leões e a Catedral. Foi lá, na alcova real, onde Aloísio Milet Martins Ribeiro e Geraldo Cavalcante de Brito foram abatidos. Literalmente. Barras de ferro. Ocultação de cadáveres. Cumplicidade. 

Depois de ter acertado a compra do Chevrolet, na Paraíba, Idalino convidou os dois para receber o restante do dinheiro em Fortaleza. No dia 1º de setembro executou o que tinha armado. Após serem recepcionados por Alcinda, o gigolô levou Aloísio até o quarto. Morte 1. O corpo foi escondido, primeiro, no depósito de bebidas. Depois guarda-roupa. Em seguida liquidou a fatura. Alcinda viu os corpos ensacados e enrolados em panos. Quis alarmar. Foi ameaçada de morte. Calou-se. Tarde da noite sumiu com os corpos. Idalino alugou um jeep. Foi do Centro de Fortaleza para a Barra do Ceará. Lá sepultou o que restou das vítimas. Na casa da mãe de Alcinda, ateou fogo nas roupas e teréns dos infelizes. 

O carro dos comerciantes foi negociado. Idalino trocou o Chevrolet por um Nash. Recebeu ainda 40 mil cruzeiros. Na delegacia, um mês e pouco após o crime, confessaria o latrocínio. O dinheiro era pra honrar compromissos. Se livrar dos canos. Sair do prego. A amante estaria atolada em dívidas por causa do amante. O POVO do repórter policial Eutímio Moreira estamparia em manchete do dia 16 de outubro: ''Quase todo o dinheiro foi empregado no pagamento das dívidas de Alcinda''. 

Empenhada. Doze mil cruzeiros foram parar as mãos de um agiota conhecido por Tobias. Resgate de jóias da amante. Em seguida fez um pagamento de 3 mil na Caixa Econômica. Penhor também. Disse ter pago ainda uma hipoteca de 7 mil cruzeiros que tinha feito com uma casa de Alcinda. Comprou, finalmente, um revólver por 3 mil e doou outros 3 mil para a dona da pensão. O restante foi empregado no conserto carro que recebeu e 700 estavam no bolso. 

Condenado, Idalino puxou xadrez na Cadeia Pública de Fortaleza. Prédio onde funcionou a Emcetur. Em 1968, a desembargadora Auri Mora Costa concedeu a liberdade condicional ao ladrão do Chevrolet 1950. Foi a deixa para seu desaparecimento. Correu para as bandas do Rio de Janeiro. Família. Amigos de futebol. Velhas histórias. Dia daqueles acharam um corpo em Belfort Roxo. Boataria. Traços do center half. Era conhecido por onde passou e jogou bola. Suspeita desfeita por repórter de O POVO que viajou ao Rio. Não era o homem. Chá de sumiço. 



Fonte - Jornal O Povo (Demetrio Túlio)

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Idalino foi assassinado


Fim do mistério. Depois de desenterrar dois defuntos de 52 anos, acabei descobrindo partes do corpo de quem os matou. Não esperava, mas cheguei ao cadáver de José Ramos de Oliveira, o Idalino, ex-jogador de futebol, ídolo das torcidas do Ceará e Fortaleza nos anos quarenta. Vingança. O destino do meia, que também jogou em outros clubes brasileiros, terminou de maneira semelhante ao de suas vítimas. Um desfecho tão macabro quanto ao que ele confessou às polícias cearense e pernambucana. Para o leitor que chegou agora, Idalino é aquele que premeditou, matou, decapitou e enterrou, na Barra do Ceará, dois comerciantes paraibanos, em 1950: Aluísio Milet Martins e Geraldo Cavalcante Castro. Assassinou-os para roubar um Chevrolet 50. Carro do ano. Surto de personalidade e cobiça. 

A quarta parte dessa investigação começa com um inesperado e-mail enviado por dois parentes do finado Geraldo Cavalcante Castro e da sobrevivente Luíza Cavalcante, há pouco mais de um mês. Luizinha era irmã de Geraldo e noiva de Aloísio. 

"Sr. Demitri Túlio, 
Através da sua coluna ''Das Antigas'' dos dias 20.04; 27.04 e 04.05.2002 a qual recebemos através do senhor Lavaneri, da Apiguana, relembramos um trágico fato que marcou nossas vidas. Somos sobrinhos de Geraldo Cavalcante e Luizinha, sendo que Renato é filho de Luizinha. Em breve estaremos lhe informando maiores detalhes de como foi descoberto este bárbaro assassinato e o paradeiro do monstro Idalino. Nossos telefones são... 
Marcelo Renato Arruda e Renato Castro Lago 

Em breve lhe enviaremos o novo e-mail. "


Pois bem, a ânsia por mais notícias sobre o caso fez-me ligar para Paraíba. Curiosidade, inquietação, comichões no cérebro. Era a chance de colher mais detalhes sobre o caso e finalmente ter pista para seguir o rastro do sumido Idalino. Conversei com Renato Castro Lago, 48 anos, filho de Luizinha. Nasceu três anos depois da tragédia em Fortaleza. Luíza que havia perdido o noivo, Aluísio Milet, casou três anos depois do acontecido. Na fala dele, a mãe teria escapado das mãos de Idalino, mas do destino não. Estava escrito que morreria nova. Flor da idade. Após parir Renato, faleceu. Foi-se. Outro estrondo na família de José de Brito Lira, tio de Geraldo e Luíza. O homem era comerciante, dono de fazendas de algodão e negócios na Inglaterra. Coronel do mato e chefe político lá pelas bandas da Paraíba. 

Idalino, segundo Renato Castro, havia planejado matar apenas Aluísio Milet. Legítimo proprietário do Chevrolet 50. Geraldo não tinha nada a ver com o peixe. Acontece que Aluísio acertou viajar com o ex-jogador para receber, em Fortaleza, a paga pelo automóvel. Noivo de Luiza, casamento marcado, Milet convidou a companheira para comprar, no Ceará, renda para completar o enxoval do casal. Aceitou. Porém não caia bem para uma moça donzela, em 1950, fazer viagens com o pretendente. Sabia-se lá. A tentação e a língua do povo poderiam arruinar o nome da família. Jogar na lama a honra dela. Foi aí que a morte refez seus planos. Alterou sua lista e incluiu Geraldo. Azar. 

Geraldo Cavalcante foi segurar vela. Ironia. Ia para impedir qualquer avanço de sinal do noivo ou fraqueza da virgem. Nada de coisas antes do casório. Lua-de-mel, só depois do ''sim''. Enquanto isso, podiam aquietar o facho. Nada de fornicação ou pouca vergonha. Além da missão, Geraldo também ia descansar da rotina estafante da política. Era coordenador da campanha de Argemiro de Figueiras, candidato ao governo paraibano e adversário de José Américo de Almeida, o escritor de A Bagaceira. Dias antes de sua última viagem, havia escapado de uma saraivada de balas durante um comício na Praça da Bandeira, centro de Campina Grande. Três mortos e mais de cinqüenta feridos. Sobreviveu lá para morrer aqui. 

Foi aí que Idalino se lascou. Do primeiro ao quinto. Chegou a pensar que não descobririam o crime. Desfilou, lépido e fagueiro, a bordo do Chevrolet pelas ruas de Fortaleza... Até o dia da chegada de João Arruda, irmão de Geraldo, e de um policial da confiança da família: Jovino do Ó. Cabra bom pra mãe e os pariceiros dele! Chegaram para desvendar o crime. Custasse o que custasse. 

Primeira proposta. Depois que engaiolaram Idalino, insistiram com o então secretário da Segurança do Ceará para ter um particular com o acusado. Sozinhos. Sala reservada. Conversa de pé-de-orelha. Mesa, luz e um pedaço de jucá. Desejavam torturá-lo. A afirmação é de Marcelo Renato Arruda e Renato Castro Lago. Só assim, na cabeça dos parentes das vítimas, conseguiriam arrancar a confissão. Até ali, o ex-jogador negava. Jurava inocência. Como era benquisto entre o high-society da Aldeia grande de Fortaleza, era considerado anjo. 

Encheram o saco até conseguir o aval do secretário. Conseguiram. Permitiu a prosa sem exageros. Inocência. Vistas grossas. Segundo Renato Castro, Idalino não aguentou ''muitas bordoadas''. O suficiente para confessar o crime e apontar o local onde estavam enterrados os corpos. A história tinha terminado. Bem, não para a família. Nem quando a Justiça o condenou a pena máxima. Pro's parentes só valeria a vingança. A morte de Geraldo e Aluísio só estaria quite quando Idalino morresse. O Talião nordestino. 

O ''monstro Idalino'', foi vítima de crime por encomenda em 1968 quando ganhou liberdade condicional. 




Leia também:


Fonte - Jornal O Povo (Demitri Túlio)

domingo, 17 de julho de 2011

Das antigas - Endividado, matou por um Chevrolet




Frieza. Dias depois de decapitar e enterrar os comerciantes na Barra do Ceará saiu no Chevrolet das vítimas. Por aí. Desfilando. Ruas de Fortaleza. 1950. Sem remorso. O automóvel chamava atenção. Bacana. Fez parada na casa da ex-mulher. Rua Assunção, 516. O queixo foi ao chão. ''Agora concretizei meu ideal''. Babava. Dona Olga de Paula Oliveira estranhou. Franziu a testa. Idalino falara em herança. Mãe morta. Pensou em golpe nos irmãos. Ele rechaçou e foi embora. Depois daquele dia nunca mais se falaram. Mas sempre passava em frente a casa dela. Ele e o Chevrolet. Caminho. Aldeia miúda. 

O queixo foi mais uma vez a pique. Alcovitagem. Telefonema. Uma pessoa mandou que corresse ao rádio. Ficava na sala. Televisores? Nem no Rio de Janeiro. Imagine aqui. Corresse. Um escândalo. Pior que a ressaca da II Guerra. Tava avisando porque era amiga. Preocupava-se. Precisou antes tomar água com açúcar. No Philips, ondas curtas e largas, o locutor bradava. Idalino, tricampeão cearense de futebol matou. Barbaramente. Ex-marido. Ex-jogador. Center half de prestígio. Havia assassinado Aloísio Milet Martins Ribeiro e Geraldo Cavalcante de Brito para roubar um Chevrolet 1950. Do ano. Variou perto do rádioeletrola. Não acreditava no que estava ouvindo. Apesar da separação considerava Idalino um amor de homem. Um doce, apesar de homenzarrão. Incapaz de pisar numa joaninha. 

Mas não deu outra. A história tinha fundamento. O locutor chamou o reclame. E ela ficou ali. Desfalecida na poltrona. Ferros de engomar ''sans''. Sete furos a carvão. Preferido pelas engomadeiras. Leve. Prático. Grande rendimento econômico. Aquecimento rápido e permanente. Não solta cinzas no engomar ou passar. À venda nas boas casas do ramo. BORGES & Cia. Rua Sena Madureira, 743... CORRIJA os seios caídos e flácidos dando-lhe aquele encanto e firmeza da adolescência... 

Só acordou quando uma equipe do jornal bateu palmas no portão. Repórter e fotógrafo. Paletó e gravata. Caderneta na mão. Chapéu de massa. Flash aloprado. Se apresentaram como sendo de O POVO. Nesse tempo a redação ficava na Senador Pompeu. Onde até bem pouco tempo funcionou a Mesbla. Ligação com a General Sampaio. Mãos trêmulas, falou sobre o relacionamento e a personalidade do ex-marido. Só. Não tinha nada a ver com o crime. Separada há um mês não botava sequer o pé na soleira da porta. Raramente. Fofocas. Olhares de Candinha. Cochichados. Casamento desastroso. Tava pensando em arrodear a casa com pés de peões roxo. Banho de arruda. Reza forte. 


Encerrou a entrevista chorando. Convulsivo pranto, segundo a reportagem. Pediu encarecidamente, pelas chagas de Cristo e Francisco, para não ser fotografada. Queria distância da tragédia. Nada de relações. Fizeram o contrário. Dia seguinte, a primeira página a estampava em duas colunas. Foto alta. Vertical. Pior. Na legenda ao invés de dona Olga de Paula Oliveira cravaram o nome da amante de Idalino. Da rival. ''A mulher Alcinda Leal...Vemo-la no momento em que era fotografada, procurando esconder o rosto com as mãos...'' Erro. Tome constrangimento. 

Passou a noite mal dormida. Pesadelos. piloras. Suadeiras. Ânsia de vômitos. Arrepios. Dor-de-barriga e coração a galope. Tava com medo de ter quer ir à presença do delegado. Ser envolvida sem ter a ver com o peixe. E agora? Se gaguejasse, o que iriam pensar? E se não conseguisse dizer uma sílaba sequer? Tinha que arranjar um advogado. 

Cedinho procurou o rádio. Dispensou o café. Evitou se olhar no espelho. O dial corria quase mediunicamente. Zumbido. Zumbido. Pufo! A trama tava descoberta. O vozeirão detalhava. Como na Paixão e Morte de Cristo em tempos de março. Estação por estação. Idalino havia atraído os dois paraibanos à Fortaleza. Aqui pagaria o que faltava de 130 mil cruzeiros para finalizar a compra do carro. Já havia dado um sinal de 6 mil. Além deles, Luizinha, noiva de Aloísio e irmã de Geraldo, veio na bagagem. Pra que a moça? Mulher não combina com negócios. A conversa é entre homens. Ela é arreia na certa. Idalino estava inconformado. Mas não adiantou. Veio. 31 de agosto de 1950. Insistente, tanto fez que conseguiu deixá-la de hóspede na pensão Internacional. De molho, enquanto os três acertavam os ponteiros e aproveitavam para visitar algumas pensões alegres. 

1º de setembro. Última vez que Luizinha viria Aloísio, futuro marido, e Geraldo. Largada pela manhã na hospedaria, recebeu um recado ao meio dia. Os dois não iriam ter com ela no almoço. O porteiro foi o portador. Em nome do irmão. Telefonema. Aguardasse-os para o jantar. Assim o fez. Horas a correr. Nada. Por volta das 17 h 30 min, um repentino telegrama. Subscrito por Geraldo. Procedência de Russas. Êpa!? Resumidamente explicava que estavam no Interior à caça de um gatuno. Haviam sido roubados. Cem mil cruzeiros. Transação de um automóvel. Estranhou. Pensou. Nada. Ficou quieta. 

Dia seguinte sinal algum. No final da tarde Idalino visitou a moça. Disse-se também preocupado. Mas nada de grave. Negócios. Acalmou-a. Passou a cortejá-la. Cumulou-a de gentilezas. Convidou para passeio. Recusa. Foi-se. Dia 7, outro telegrama. Desta vez de Feira de Santana, Bahia. Estavam lá, segunda a correspondência. Quiprocós resolvidos. Desencanasse e regressasse a Campina Grande. Idalino ainda pagou a conta da pensão e se ofereceu para levar a senhorita ao Cocorote. Nova recusa. Premonição. 

Vinte e poucos dias depois caiu a ficha. Nenhum dos dois voltou ou deu notícias. Nunca mais. Acionaram a polícia. Troca de informações. Ceará, Bahia, Paraíba e Pernambuco. Vai-e-vem de polícia e familiares. Dia 14 tava descoberto. Tudo. Idalino confessou. Era o autor dos homicídios e os telegramas foram passados de Fortaleza. Por ele. A moça da pensão Internacional escapara por um triz. Destino. 

O homem do rádio queria contar mais. Mais. Dona Olga desistiu de sofrer. Caiu em si. Não tinha nada a ver com a cachorrada. Ia ficar mais velha. Rugas precoces. Outro reclame. ''Aproveite a experiência de milhões de mulheres que em todo o Brasil só usam o remédio consagrado: REGULADOR XAVIER. Número 1: excesso. Número 2: falta ou escassez. Regulador Xavier, o remédio de confiança da mulher..." Desligou o rádio. Tava explicada metade da agonia. Correu à cozinha. Tomou uma colher de sopa. Tomou outra. Cafajeste. Crápula. Uma desqualificada daquela... Apodreçam. Pegou um jornal velho. De um dia. Página de Cinema. Resolveu ver um filme. DIOGO. Merle Oberon, Cornel Wilde e Paul Muni em ''A noite sonhamos''. Não. MODERNO. Gaill Russell e Thurhan Bey em ''Canção da Índia''. Não. MAJESTIC. Johnny Weissmuller em ''Jim das Selvas''. Com Virgínia Grey
. Era este. Foi. Apesar de ser ainda manhã e estar em início de regra.   

Cine Moderno

Cenas do Filme Jim das selvas:


Fatos Históricos:

  • 01 de setembro de 1950 - À noite, o conhecido jogador de futebol José Ramos de Oliveira (Idalino), que tinha adquirido um automóvel Chevrolet 1950, placas 21-27, aos comerciantes paraibanos Aloísio Millet Martins Ribeiro e Geraldo Cavalcante de Brito se desentende com os mesmos por causa do pagamento e, achando-se desmoralizado, mata-os com uma barra de ferro em um quarto da Pensão Leal, na Rua Conde D`Eu, de Graça Serrano, irmã de sua amante Alcina Leal de Andrade e esconde os corpos em um guarda-roupa levando-os depois para terreno na Barra do Ceará, próximo aos transmissores da Rádio Iracema de Fortaleza e os enterra. Foi envolvido também o funcionário do Departamento de Correios e Telégrafos José Ribamar de Morais que levianamente passou telegramas falsos para as famílias das vítimas, induzido por Idalino, que disse ser uma brincadeira. Somente em 13/10/1950 foi descoberto o crime.

  • 13 de outubro de 1950 - Descoberto o crime cometido pelo ex-jogador de futebol José Ramos de Oliveira (Idalino), no dia 01/09/1950, que preso, confessa tudo.

  •  08 de outubro de 1951 - O Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal, Manuel Joaquim de Santana, prolata a sua sentença final, nos autos do processo que a Justiça moveu contra o acusado José Ramos de Oliveira, vulgo (Idalino), e sua amásia Alcinda Leal de Andrade, por autoria e co-autoria de crime de latrocínio contra comerciantes paraibanos em 31/07/1950. Examinando detidamente o processo, as provas apuradas e as razões finais oferecidas pela promotoria, a assistência da acusação, os defensores de Idalino e Alcinda Leal, o juiz condenou o primeiro à pena de trinta anos de reclusão e multa, e Alcinda à pena de seis meses de detenção e multa. Esta, foi posta em liberdade por haver cumprido mais que a pena.




Créditos: Jornal O Povo (Demitri Túlio) e Portal da História do Ceará

sábado, 16 de julho de 2011

Das antigas - Notícias de Fortaleza (Anos 50)




Oficinas da Rede Viação Cearense (RVC), no Urubu, Barra do Ceará. Conde D'Eu, corredor da Catedral e pensões alegres do raparigal. Abrigo Central e Café Globo, no Centro da cidade. Roteiro da primeira versão de um crime. 1950. Fortaleza era uma aldeia. Apavorada com a notícia de alguém que matou dois comerciantes paraibanos para se apossar de um Chevrolet do ano. Valor: 130 mil cruzeiros. Importado. Como todos os outros que rodavam pela cidade. Cobiça, dívida e vaidade se misturavam. Idalino, ex-jogador de futebol, de vários escretes do Brasil e Ceará era o carcará.

Na Rua Major Facundo até alcançar a Rua Floriano Peixoto tinham vários comércios entre eles o 'Café Globo' defronte o 'Café Hawaí'. Logo chegava-se ao Abrigo Central - Acervo Marciano Lopes

O POVO, de oito páginas, oitenta centavos, deu nada menos que seis manchetes de capa do jornal. Cinco principais e uma secundária. Mais duas manchetes na página 8. Letras garrafais e dizeres rodrigueanos. ''Barbaramente decapitados'', dia 13 de outubro de 1950. ''Fala a esposa de Idalino'', 14 do 12. ''Juro que não sabia de nada''. ''Fala a amante de Idalino''. ''Pelo amor de Deus, deixe-me em paz''. ''Idalino vai negar o crime''. Teve igual destaque no Correio do Ceará Gazeta. Concorrentes. Era tempo que tinha matéria escrita na primeira página. 


Rua Major Facundo em direção a Praça do Ferreira

Era Fortaleza, que só virava notícia nacional quando a desgraça ou a politicagem fazia até Tinhoso debulhar um terço. Barbosa Lima Sobrinho, então governador da Paraíba, mandou carta para Faustino de Albuquerque. Pedia ao chefe de estado do Ceará empenho na apuração do desaparecimento de conterrâneos. Os comerciantes Aloísio Milet e Geraldo Cavalcante haviam tomado um chá de sumiço na capital cearense. Acharam. Estavam há quarenta e cinco dias enterrado nas proximidades das oficinas da Rede Ferroviária, na Barra. Local que hoje conhecemos por museu da RFFESA, no Carlito Pamplona. 

A cidade estava apavorada com a tragédia. Mas, comemorava a inauguração do Cine Jangada. Em seu diário, ''Memória de um Jornal'', seu Costa - jornalista José Raimundo Costa - contava que o monopólio da Empresa Ribeiro em Fortaleza chegava ao fim. Tava sendo inaugurado no dia 15 de fevereiro. Com ele chegava a Fortaleza o ''excelente'' cinema francês ''Monsieur Vicent, capelão das galeras''. Amadeu Barros Leal, diretor do empreendimento, prometia inaugurar outras casas do gênero. Todas com nome de utensílios da jangada. Valeu a intenção. 

Fortaleza se admirava com tudo. Deslumbrava-se. Um anúncio dava ares de cidade que estava evoluindo. Progresso. A Coca-Cola, que chegara com a tomada do Pici pelo americano durante a II Guerra, seria finalmente produzida aqui. Até ali era importada. Seu Costa conta. Tá registrado. ''Agora, Coca-Cola é fabricada em Fortaleza. Por Refrigerantes S.A., à rua Monsenhor Tabosa, 1.054''. 

Foto de 1950 - Fábrica da Coca-Cola na Monsenhor Tabosa - Aba Film

A polícia, coitada, essa andava mais a pé do que motorizada. Tempo do Cosme e Damião. Policiamento feito com uma dupla de homens. Presença em algumas esquinas. Talvez por isso não tenha reparado que um Jeep havia saído da Pensão da Graça, no Centro, para o Urubu na Barra do Ceará. Lá despejaria as vítimas de Idalino em uma vala comum. Também pudera. Era setembro e o serviço de rádio patrulha em Fortaleza só começaria a funcionar em 16 de novembro. Desta vez com rádio e tudo. Num só dia foram feitas 37 prisões. Teve preso que adorou a novidade. Diz o folclore que a negada agradecia o passeio. Bebim. 

Os homens da lei também eram alvos de suspeita. Já naquela época. Mudou pouco de lá pra cá. No caso Idalino foram acusados de espancamento, maus tratos e extorsão. O acusado mandou petição ao juiz exigindo interferência para que policiais da Delegacia de Capturas dessem conta de 7 mil cruzeiros e um punhado de jóias. No momento da prisão de Idalino, o pessoal teria feito uma rapa geral. O velho bacorejo. Idalino tava com as burras cheias. Desapareceu tudo. Inconformado com a acusação, o comissário Clóvis Holanda disse que tudo estava na Justiça. Havia sido feito uma auto de apreensão. Nada tinha sido surrupiado. Bem. Houve o julgamento e nunca mais se falou sobre o que foi apreendido. 

Outra reclamação do preso dizia respeito a banho. Recolhido a um dos xadrezes do Casarão do Diabo, atual prédio da Superintendência da Polícia Civil, o homem reclamava que não o deixavam tomar banho. Passou semanas trancafiado e não sentiu o cheiro da água. Logo ele. Metido a Dom Juan. Meio Alberto Roberto. Quando foi transferido de lá para a Cadeia Pública, antiga Emcetur, pediu para dar uma passadinha em casa. Queria trocar as roupas, aparar o bigode e lavar as partes. Ficou só na vontade. Os homens negaram de imediato. Idalino ficou fulo da vida mas não adiantou. Teve que sair à gambá. Ele e a amante. Uma multidão os esperava fora da delegacia.
 

Cadeia pública na Rua Dr. João Moreira

As reclamações de Idalino não surtiram efeito algum. Direitos humanos não existiam. Ponto para a polícia que pintava e bordava. Sobrou pra ele novas acusações. Suspeita de envolvimento em outros crimes. A polícia deu um jeitinho de desvendar casos insolúveis nas costas do ex-jogador. No dia 31 de outubro, O POVO manchetou. ''Nada tenho a ver com o caso da rendeira, nem tão pouco roubei os 60 mil cruzeiros de Aloísio''. A velha tática policial. Científica. Pasmem. Até o secretário da Segurança de Recife queria que Idalino respondesse por um homicídio lá. No final das contas, o ex-craque do Ceará respondeu apenas pela morte dos paraibanos. Que polícia, hein! Mudou pouco. 

No dia 8 de outubro de 1951, José Ramos de Oliveira, o Idalino era condenado a 30 anos de reclusão. A amante, Alcinda Leal, cúmplice, pegaria seis anos de cadeia. Dizem que Idalino voltou à cidade. Década de 90. Havia sumido depois que recebeu a liberdade condicional em 1968. Não deve mais nada. Teria sido visto por um de seus companheiros de time. Velho e sem o mesmo ar de galã que arrastava mulheres à porta da Cadeia Pública. Queriam vê-lo de perto. 



Idalino teria refeito alguns roteiros antes de desaparecer novamente. Cinquenta e dois anos mais velho, ganhou o gramial. Outra vez. Por esses tempos, também pode ter morrido. Ou talvez não! Quem garante que não é um vizinho aqui em Fortaleza. Velhinho e simpático. Ou calado e rabugento. Noventa e poucos anos... E dona Alcinda Leal, que fim terá encontrado?



Continua... 

Leia também:

Parte II (Endividado matou por um Chevrolet)
Parte III (Idalino foi assassinado)
Parte IV (Endividado matou por um Chevrolet II)


Crédito - Demitri Túlio - Jornal O Povo

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Comendo lagartas e defecando borboletas


Em plena Praça do Ferreira, o cronista Raymundo Netto assiste uma cena que lhe causa indignação poética: a polícia prende o poeta Mário Gomes*. Tem início o resgate desta figura que é patrimônio afetivo da cidade.

Tumulto na rua. O camburão da polícia chegava em frente ao Palacete Ceará à praça do Ferreira. Assalto? sequestro? Não, prenderam “O” poeta. Quem? Ora, quem... o Mário Gomes, sabe, não?

Era isso mesmo. Mário Gomes, aquele que conseguiu se estabelecer como poeta, mesmo por quem não conhece ou lembra um único verso seu — ao contrário de outros que lançam livros e livros, recebem títulos e medalhas, cobertura da alta imprensa e ninguém admite a honraria —, o tipo popular-mor da nossa blond cidade, estava sendo preso. Motivo? Baixara as calças para alguém que caçoara de seus trejeitos, de suas vestes, de sua existência. Ele reagiu, a polícia chegou para pôr ordem e recolheu o “poeta das sarjetas” no parachoque do camburão. Uma multidão de populares o acompanhou. Alguém se dirigiu ao oficial e, como se existisse tal licença (imunidade?) poética, perguntou: “Ele é o Mário Gomes, o poeta, o senhor não o conhece?” Uma senhora chora, outra resmunga: “Deviam prender é bandido!” O povo se revolta, discute, os policiais pareciam nervosos. O Mário, coitado, vestido como um Judas em Sábado de Aleluia, bodejava alguma coisa incompreensível, sei lá o quê, balançava as mãos e fazia caretas, tal qual um menino malino, “um enigma das letras, um amante das estrelas”. A barba malfeita perseguia os cabelos ralos, o nariz torto separava indiferentes olhos verdes a balançar os inchados tornozelos.

Aproximei-me e perguntei o que acontecera. “Eu só queria lançar o meu livro (refere-se à biografia) de novo”, retirou do bolso Mário Gomes: poeta, santo e bandido do Márcio Catunda, abriu e leu:

— O meu legado, deixo ao querido povo cearense! — daí, treme, lacrimejam os olhos, não gosta que o vejam assim, dá-me as costas, passa um lenço na vista, volta-se quase que esfregando o livro nas minhas ventas e repete: — O meu legado deixo à porra do povo cearense! — assisto à indignação, melancólico. Compreendo perfeitamente.

— Pagamento de poeta, Raymundo, é tapa e pontapés! Só isso, fazer poesia aqui é isso...

Um rapaz ao lado me disse que ele comprara quase todos os exemplares de Sábado: estação de viver do Juarez Leitão apenas para mostrar a sua foto aos passantes da praça e provar a todos que ele não era qualquer um, não. 

Tupy, um cachorro velho, chegou apreensivo. Mário sorriu:
— Dentre amigos encontrei cachorros; dentre cachorros encontrei amigos. Desculpe, amiguinho, aderi à Fome Zero, tenho nada. — lamentou, retirando dos bolsos do paletó pedaços de guardanapos, retalhos de versos.

Recordei que há poucas semanas havia encontrado o poeta na praça. Estava mais mungangoso que o normal. Paguei-lhe um pacote de biscoitos. Perguntou-me se eu tinha mesmo 40 anos, pois lera o meu livro — em certa ocasião o presenteei com um exemplar — e estava certo de que, apesar da aparência, eu tinha pelo menos uns 80.

— Raymundo, você escreveu um livro muito bom... é um grande literato que fala das calçadas velhas... das calças das velhas... Ah, as calças das velhas estão cheias de moscas! — riu.
— “Cadeiras na calçada”, Mário. Deixe de invenção!
— Já tem uns quinze anos que a gente não se vê, não é?
— Que é isso, Mário, a gente se viu no ano passado, aniversário da Padaria Espiritual, aqui mesmo na praça, lembra?
— Padaria Espiritual? Padaria Espiritual? Não, acho que não... Eu nunca fiz parte da Padaria, eu sou do Clube dos Poetas Cearenses.
Perguntei pela “Turma do Escritório” e ele lamentou o abandono de alguns:
— Tem um poetinha de araque, um retardado, que vez ou outra vem falar comigo. Diz que é meu discípulo. O carinha quer ser eu, sem ter a coragem de ser eu. Queria ver se ele aguentava viver na minha pele um dia. Aguenta não, é frouxo! Aguentar as pauladas que eu aguento, só sendo Mário Gomes. “Subi num pé de cana pra colher uvas. Chegou o homem das laranjas e disse, solta as goiabas, rapaz!” 
Súbito, sua face se transformou, correu e jogou o pacote de biscoitos num moleque que lascara uma salva de palavrórios inapropriados:
— Se manque, eu sou Mário Gomes, você é um otário! — voltando, anunciou:
— Depois eu morro, viro nome de praça ou de rua e o povo vai falar de mim, sem lembrar que eu vivia assim, que nem as calçadas velhas do seu livro...
Despertei da lembrança quando o policial disse para não se preocupar. Iriam soltá-lo na esquina do próximo quarteirão.

Olhei para ele. Apesar do estado debilitado, ainda discursa com o vigor de um anarquista. O povo cearense, naquele momento, o reconhecia e sabia que muitos de nós passaremos, mas ele deverá ser lembrado por mais cinquenta ou cem anos. Mesmo ali, com toda desenvoltura, gritava em seu “trono” improvisado: “A maioria esmagadora da cidade me conhece... sabe quem é Mario Gomes! (...) muitos dos que se dizem artistas, antes me procuravam e hoje fingem que não me veem... A verdade da vida é compreender a loucura do outro!” 

Olhei mais de perto e percebi que havia outros presos no camburão: Tostão, Chagas dos Carneiros, Casaca de Urubu, José Levi, Tertuliano, Canoa Doida, Pilombeta, De Rancho, Manezinho do Bispo, Burra Preta e tantos outros. Então, tive a certeza de que o Mário não tinha sido preso, e sim, escolhido para viver a imortalidade que só os doidos alcançam. 

Chagas dos Carneiros

Manezinho do Bispo

O relógio da Coluna da Hora gemeu a breve passagem de seu tempo. 285 anos de Fortaleza e eles ainda estão no meio de nós...  

Raymundo Netto

(Raymundo Netto, um sujeito provavelmente inculto que acha muito difícil fazer poesia e insiste em afirmar que conta nos dedos da mão os poetas cearenses que podem se chamar poetas e que reconhece o Mário Gomes como patrimônio imaterial da cidade de Fortaleza.)

*Mário Ferreira Gomes nasceu em Fortaleza em julho de 1947. Antes de assumir-se poeta e boêmio convicto, foi professor do antigo curso de Admissão ao Ginásio, na Escola Albanisa Sarasate. Iniciou, sem concluir, o curso de Arte Dramática na Universidade Federal do Ceará. No final da década de 1960 fez parte do Clube dos Poetas Cearenses, agremiação dirigida pelo Carneiro Portela que se reunia na Casa de Juvenal Galeno

Foi internado diversas vezes e conta suas mirabolantes fugas dos tratamentos com choque elétrico. Tem diversos livros publicados, dentre eles: Lamentos do Ego, Emoção Poética, Terno de Poesia (com Alcides Pinto e Márcio Catunda) e Uma Violenta Orgia Universal (antologia). 



Leia mais sobre o poeta AQUI



Fonte - Jornal O Povo

sábado, 9 de julho de 2011

Das antigas - São João Sebastião da cobra



A cor cinza e algumas rachaduras nos túmulos não impediam o esconde-esconde, a soltação de raias e o pula-pula.



Os meninos da Padre Mororó brincavam entre as covas do São João Batista. As meninas, nunquinha. Um quintal enorme de cruzes, velas choramingadas, coroas murchas, corredor de benjamins e gatos que nasciam na mesma proporção dos hóspedes que iam chegando pra ficar.


A cor cinza e algumas rachaduras nos túmulos não impediam o esconde-esconde, a soltação de raias e o pula-pula (gela) de uma sepultura a outra... Aparava-se pião e se bebia na risca pra ver quem ia ser o fona ou pato-paturi na bila... Brincava-se de troca-troca e até de ferrim no olho do peixe de areia.


E nunca houve um caso de reclamação de alguém que voltou para botar pra correrem os moleques. Nem ninguém para cortar de peixeira a bola embarcada que, muitas vezes, espatifou o retrato ou jarrinho de rosa recente. Nenhum bodejou pra acabar com a risadaria sem fim por causa de um pum sinfônico.

Resmungo, mesmo, só de seu Caronte. Um coveiro que recebia moedas das famílias endinheiradas. Vigia do fuxico em cima dos jazigos dos que se foram ricos. O povo das pirâmides de mármore inglês e donos dos anjos submissos de olhar sempre para o chão. Capitalistas que haviam comprado todos lotes que davam para o portão da Rua das Flores. Uma reta até a Sé das famílias.

Nem no São João Batista, os empalitozados se misturavam com os zés-mortalhas amontoados lá atrás... Caixa Beneficente da antiga Guarda Civil, Polícia, Sargentos e Suboficiais da Aeronáutica, Círculo Operário São José, Indigentes da Santa Casa de Misericórdia...

No front, à coté um do outro os Távora, Gentil, Gurgel, Albano, Dummar, Boris, Câmara, Alencar, Borges, Philomeno...

Túmulo de Virgílio Távora

E, de certo, pra aqueles lados os meninos foram obrigados a se medrar. Iam mais por desafio de uns aos outros. Mas nem todos. Ali, entre os que tiveram a Cidade aos pés, existia um túmulo que se comunicava com o mar da Leste Oeste através de um corredor subterrâneo.

Lá se esparramava uma serpente indesenhável que transformava menino, com o cão nos couros, em anjo de lápide. Deduziam arregalados. Por isso existir, naqueles lados, tantos querubins de pedra com cara de choro e susto! Teimaram, invadiram para a parte proibida... Danaram-se onde Caronte desaconselhava a anarquia.

Na frente, onde não se admitia atazanar, havia um túmulo com rachaduras nunca saradas. Cimentavam, mas no dia seguinte um buraco roliço rebentava. Lugar de passar um tronco de benjamim se mexendo. Arrombado por onde a cobra costurada, aborrecida com a juventude, se apresentava. Um túmulo miserável entre as pirâmides inglesas.

Contavam ser de uma narcisa que usou toda a prata que possuía para não desmoçar. Para não perder o viço, esticou e remendou o que deu. Viu-se em mais de uma face em retratos rasgados e sem tolerar ser chamada de avó. Daí a ira com quem novilhava.

Não engolia os meninos. Atravessava o olhar e caiam anjos de pedra. Até seu Caronte recolher e fixá-los no São João Batista.

Crédito - Demitri Túlio
demitri@opovo.com.br

NOTÍCIAS DA FORTALEZA ANTIGA: