Manuel Cavalcanti Rocha, figura da mais ridicularizadas da galeria de tipos populares do Ceará, deu de comparecer as páginas do Correio do Ceará a partir de 1918, através da opção da seção "Ineditoriais", subordinando sempre os seus escritos a legenda V + D (Viva mais Deus), a começar do dia 29 de abril. É o conhecido Manezinho do Bispo, de quem a referir-se ao bispo Dom Joaquim José Vieira, relatou o escritor Gustavo Barroso em seu terceiro livro de memorias, Consulado da China: “Também nos visitava a miúde Manuel Cavalcanti Rocha, o celebre Manezinho do Bispo, débil mental (sic), magro, pálido, anzolado, que publicava uma vez por outra folhetos de pensamentos os mais disparatados do mundo. No meio, alguns deliciosos: “Rapaz moço e sem emprego que se casa com uma moça de dinheiro, da um tiro com a pistola da besteira nos miolos do futuro”.
Segue o autor de Terra de Sol: “Meu pai tratava-o com a maior tolerância, por causa do Bispo, seu amigo e compadre. Meu padrinho troçava dele e provocava-o a asneira. Eu achava-lhe graça. O coitado era inofensivo. Empregado na Cúria, costumava acompanhar o Bispo, envergando uma batina coçada e coberta com um velho chapéu de padre. Na rua,andava a paisana, carregando jornais e um maço de folhetos de pensamentos debaixo do braço”.
No livro Geografia Estética de Fortaleza, Raimundo Girão traça-lhe o
perfil: “Do Manezinho do Bispo e possível extrair matéria para um grosso
livro. Manuel Cavalcanti Rocha ou, literalmente, M. da Rocha (Sic), eis
como se chamava. Do Bispo, dos seus escritos, na imprensa e em libretos,
e o seu estilo tornaram-se prato delicioso dos espíritos galhofeiros. As
suas Máximas e Pensamentos tiveram repetidas edições. Já houve quem
aventurasse a hipótese de que daí nasceu o futurismo. Manezinho, diz Pedro Sampaio, “afamou-se não só por suas lucubrações literárias, expressão de que servia quando falava dos opúsculos literários que publicava, com pensamentos, máximas e mil coisas estapafúrdias e ridículas”.
Aquele seu aludido livro - continua o escritor Raimundo Girão - Máximas e Pensamentos, ele o ofereceu a todos os porteiros e eiras do universo, e traçou, noutro a biografia de sua ex-mãe, pois que ela já havia morrido.
Uns pensam que era espertalhão, haja vista Monsenhor Quinderé, que o conheceu intimamente, e afirma, entre outras coisas, que o Manezinho, “quando servia a mesa, ia jeitosamente afastando dos comensais os pratos que mais apeteciam”. Desnecessário é examinar-lhe a personalidade depois que lhe fizeram este perfil.
“Raquítico, bisonho, enfermiço e amarelo,
Débil corpo atrofiado ao divino cilício;
Amarfanhado rosto imitando um chinelo
Imprestável, caído em já findo exercício...
Alma simples, cristã; coração largo e belo;
Vida pura de santo afeito ao sacrifício
Dos segredos jejuns... Filósofo singelo:
Porteiro e a sua missão: pensar - seu ofício:
Literato de escol, pensador incansável.
Biografou sua mãe, editou "Pensamentos”...
E honra a terra natal com as produções mais ricas...
É um devoto de ideia, um gênio inquebrantável,
O melhor escritor dos hodiernos momentos
E o maior Maricão de todos os Maricas!...”
Manezinho era o homem de confiança do Bispo Dom Joaquim e valia-se da seção “Ineditoriais”, que a imprensa da época reservava às colaborações dos leitores, para publicar seus confusos escritos sem pé nem cabeça. Simplório, divertido e bem intencionado, praticando as letras com ingenuidade e despretensão.
Andava sempre empacotado num desbotado e surrado terno de alpaca, gravata preta e chapéu. Os bolsos do paletó, abarrotado de papeis, seus escritos. Dias e noites, era comum avistá-lo na abençoada portaria do Palácio.
Simples e humilde porteiro da Arquidiocese de Fortaleza, de veleidades literárias, pueris, alvo do deboche de seus coevos nada indulgentes, acabaria por conseguir legenda de histórias curiosas, anedotas e peças “literárias” que, deturpadas ou não, mas certamente reconstruídas em alguns casos pela parceria irreverente e ardilosa de terceiros, conseguiram transformar o autor em figura das mais populares, senão na maior delas, da cidade de Fortaleza, há três quartéis de século passados, quando a vida provinciana podia entreter-se melhor com os tipos de sua convivência comunitária, afetiva.
O seu folheto Máximas e Pensamentos, referido por comentadores de sua simplória existência, na versão que conhecemos, intitula-se Novos Pensamentos. Obra rara, publicada em 1903, muito antes da dedicada colaboração do autor no Correio do Ceará, exercida por seis anos seguidos até onze dias antes de morrer, em 1923.
Naquela edição referida, o pensador escreve dedicatória que se tornou famosa: “A segunda edição de meus toscos Novos Pensamentos eu faço em homenagem a todos os porteiros e porteiras de estabelecimentos do mundo inteiro, especialmente os que tem o meu nome de batismo; e um trabalho recreativo e simples, feito só por minha conta, em sinal de amizade aos meus companheiros de literatura que melhor sabem usar da caridade com quem vive da pena em tempos críticos”.
Todos os exemplares de Novos Pensamentos de Manoel Cavalcanti Rocha recebiam sua assinatura precedida deste aviso:
“São considerados falsos os exemplares que não tiverem o emblema e a firma do autor”.
Animado por insofreada ingenuidade, Manezinho do Bispo edificou-se à contemplação da vida religiosa de sua área de trabalho, insistindo sempre em que todos praticassem o bem, e permanentemente submetido a São José, santo de sua especial devoção.
Não são incomuns seus conceitos abrangendo certa reflexão moral. Em 2 de março de 1923, por exemplo, em nota divulgada pelo Correio do Ceará, adverte os leitores:
“A economia e a temperança:São os bens da prosperidade e riqueza”
Por ocasião de seu sepultamento, em 31 de julho de 1923, o Correio do Ceará inseriu com destaque à ilustração fotográfica extenso necrológio entretecido de considerações extremamente simpáticas sobre o extinto, a quem se referiu da maneira que se segue:
“A sua extrema simplicidade, a ingenuidade de sua alma, que foi sempre pura, jamais lhe acarretou um animadversão. Na desconexão de suas 'sentenças' palpitava a virginal candura de um bom. O público, que sempre se deliciou com as 'máximas' do Manezinho, lia, às vezes, incrédulo, os escritos deste e suspeitava que por perversidade atribuíssem ao nosso Colaborador coisas mais ou menos disparatadas”.
Disparate ou não, o que redigia está mais generosamente divulgado pelo jornal de A. C. Mendes, pois a propria nota esclarece que o cronista
pensador dava-se por “cavaquista com os erros de revisão”, acrescentando:
“O fato seguinte revela inocência e a sua real bondade. Sempre foi vezo no nosso jornalismo, em meio ao acesso das polêmicas dizer-se desdenhosamente que Fulano ou Sicrano e um rival de Manezinho do Bispo.
Fê-lo, certa vez, a A Tribuna com relação a alguém. Lendo o paralelo e
compreendendo o motejo da comparação, o Manezinho queixou-se:
"- Eu só admiro o Dr. Távora deixar fazerem isso comigo: ele é meu médico e devia saber que isso me faz mal”.
A pergunta que não quer calar: Teria Manezinho do Bispo nascido em Fortaleza? No interior do Ceará?
Nada do que escreveu, nos leva a imaginá-lo nascido no Ceará, que, em nenhum momento de seu canhestro exercício “literário” está registrado objetivamente o lugar de seu nascimento, a não ser o que se pode ler na crônica do dia 8 de agosto de 1919 (in Correio do Ceará), mencionando a assinatura do Armistício,comemorado efusivamente em todo o Brasil, e, para ele em particular, em Pernambuco:
“... hoje, 25 de julho de 1919, a bela capital do Recife participa destas alegrias e festa; é motivo de felicitar as autoridades eclesiásticas e civis
e nosso amado e querido torrão natal (grifo nosso). É justo quanto louvável assim proceder,dando boas novas de gratidão ao bom Deus, que quer nos fazer sempre o bem a todos...”
Ao tempo em que viveu Manuel Cavalcanti Rocha (nascido em 12 de maio de 1866, e criado sem se saber como, saindo da capital pernambucana, veio parar no então Palácio do Bispo), não se pode dizer que ingênuo e medíocre, em sua maneira de pensar e escrever, fosse ele só.
Outros, não fazendo exceção, compareciam aos jornais da época (principalmente os editados de 1902 a 1923), acolhidos pela seção Ineditoriais bastante frequentada ao tempo, onde se viam acusações grosseiras, versos de louvação, ou insultosos, elegias e ridículas notas de falecimento ou de aniversário como esta:
”ANIVERSÁRIO NATALÍCIO:
Desabrochou mais uma pétala o botão de rosa, Julieta Carneiro Monteiro, desprendendo impetuosamente, hoje, que decorre mais um ano de sua preciosa e encantadora existência.” (In Correio do Ceará, 27-10-23.)
Em 12 de maio de 1923, o jornal Correio do Ceará, dirigido pelo jornalista A. C. Mendes, em duas colunas, com foto conferindo destaque à notícia, registrava o aniversario de Manuel C. Rocha (e não M. C. Rocha):
“Completa hoje 57 anos de uma existência toda consagrada a literatura astronômica e as funções árduas, porém honrosas, de porteiro do Palácio Arquiepiscopal, o popularíssimo pensador cearense Manuel C. da
Rocha, autor de vários apreciados opúsculos de Máximas e Pensamentos,
um dos quais dedicado “a todos os porteiros e eiras do Universo” (seus
colegas) e outro “a minha ex-mãe (porque já era falecida)”.
Pela manhã de hoje, documentando mais uma vez a sua originalidade,
o aniversariante veio à nossa redação deixar-nos uma caixa de fósforos cheia
de coupons da Ceará Tramways para os pobres de S. Vicente de Paulo.
Duvidamos que haja com quem com mais efusão de alma felicite hoje o Manezinho, agradecido que lhe somos pela preferência que ele dá ao Correio para a divulgação de suas muito sérias cogitações literárias.
Antes de ir residir no Palácio do Bispo, onde exerceria as funções de porteiro, Manuel Cavalcanti Rocha morou em modesta casa, de sua propriedade, na Estrada do Gado, depois ocupada por compadre seu,José Rodrigues Cordeiro, casado com D. Maria Rodrigues d'Andrade. Nesse local, às 10 horas do dia 16 de junho de 1916, segundo relato divulgado no dia 23 de janeiro de 1919, Manezinho do Bispo procedeu a entronização da imagem do Sagrado Coração de Jesus, benta por D. Manoel. Na ocasião explicava para os leitores: “O espírito de rebelião matou grande parte de anjos e homens. Humildade no caso.”
Festejado com recepção no jornal Correio do Ceará pelos seus trinta e cinco anos de trabalho exercidos na portaria do Palácio do Bispo,Manezinho se dirigiu a tipógrafos que o homenageavam:
LEMBRANÇA DO DIA 1° DE MARÇO DE 1919
VIVA SÃO JOSÉ
Os bondosos artistas tipógrafos do Correio do Ceará pedem para aceitar o insignificante presente, em sinal de muita consideração, não reparando o conteúdo.
Dá uma pessoa que ajusta hoje trinta e cinco anos de morada num
estabelecimento. Já é um caso bem raro no Brasil, abracemos a perseverança, e saibamos cumprir os nossos deveres, sobretudo para com o bom Deus, e também para com o próximo. Estes são os meus desejos, ficando às ordens dos amigos, que saberão desculpar a tosca linguagem. Seguindo-se a assinatura: Note bem! O presente e uma dúzia de ótimos pães, Manuel C. Rocha”.
Fonte: O Ideário de Manezinho do Bispo (1992) de Eduardo Campos.