Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
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quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

A conturbada construção do Porto do Mucuripe

O debate sobre a construção do Porto de Fortaleza é bem primevo, datando ainda do Período Imperial¹. Mas ele ganha um contorno mais amplo na década de 1930, quando a cidade começava a se industrializar, necessitando expandir o seu espaço e seu capital. Nada melhor, numa capital litorânea, do que um porto para escoar as suas mercadorias. Por isso, todos os jornais da época clamavam para a construção do Porto do Mucuripe.


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Ontem às 13 horas, estiveram com o Dr. Edgard Chermont, chefe das obras do porto deste Estado. [...] Disse-nos, que no dia 7 esteve com o ministro José Américo, que abriu uma verba de 250 contos afim de satisfazer parte do débito em que se acha o nosso departamento de Obras do Porto para com seus empregados extranumerários que alguns, há 6 meses, outros há 3, não recebem vencimentos. Acrescentou-nos que no Rio, esteve com o capitão Carneiro de Mendonça, tendo-lhe este assegurado estar trabalhando fortemente para a continuação do serviço. (O NORDESTE, 19/07/1933, p. 01).


Observamos nesta matéria, que existia uma articulação do Departamento de Obras do Porto, com a interventoria para a realização das obras, pois o porto não seria uma melhoria para atender apenas o município de Fortaleza e o Estado do Ceará, mas o crescimento econômico do país como um todo. 


Há três anos começaram os estudos do porto. Entretanto, não se sabe ainda onde o mesmo ficará localizado. Se na enseada do Mucuripe, se em continuação da ponte de cimento armado, conforme a opinião de um dos especialistas...[...] Há oito meses que os operários do porto não recebem seus minguados salários.[...] O governo revolucionário deveria abolir a prática do fornecimentos, pagando em dias os seus empregados, diaristas ou não, e resolver o problema portuário do Ceará, com a maior brevidade, porque o povo, vendo em tudo isso uma cópia grosseira do passado, e enfarado que se acha de promessas falazes, não acredita mais nas excelências reformistas, preconizadas e enaltecidas pelos apóstolos da Nova República”. (A RUA, 09/09/1933 p 03).



De acordo com o periódico, localizamos três problemas referentes às obras do porto: a) sua posição geográfica, se seria localizado no Mucuripe; b) os pagamentos dos operários que estavam atrasados; c) e a própria materialização do porto, que já vinha de anos de estudos, estudos e nada. Esses foram os problemas mais frequentes no debate sobre a construção do porto. Por exemplo, a falta de pagamento dos operários causava enorme transtorno na época, pois um dos objetivos da obra era absorver o excesso de força de trabalho, ocasionado em parte pela seca de 1932, ao transferir levas de retirantes em busca de emprego na capital, e que viam nas obras do porto, a saída de suas mazelas. Porém, não era de grande serventia trabalhar sem remuneração. De acordo com os discursos hegemônicos na época, se os retirantes estivessem ocupados trabalhando, não se envolveriam em saques, furtos ou motins. Portanto, as obras públicas de maneira geral também exerciam a função de controle social. Daí a necessidade dos governos pagarem em dia os operários, sendo estigmatizados de “apóstolos da Nova República”, por atrasarem os vencimentos e a realização da obra, mantendo o mesmo sistema administrativo oneroso e burocrático, criticado pelo “governo revolucionário”², antes de se estabelecer no poder.


Acervo Carlos Juaçaba
São decorridos 9 meses que aquela desprotegida gente não sabe o que é dinheiro. Avalie V.S. as dificuldades por que estão passando centenas de empregados, na sua maioria, chefe de famílias, sem receberem seus vencimentos. [...] Que desculpa dará o pobre funcionário atrasado aos seus inúmeros credores, como: ao proprietário da casa que habita, ao seu fornecedor de leite, etc.? Como adquirir roupas, sapatos, para si e sua família? É doloroso!...É uma lástima. Termino fazendo um apelo ao Sr. Carneiro de Mendonça, no sentido que esse valoroso revolucionário interceda junto ao Sr. Ministro da Fazenda para que seja enviado o quanto antes o numerário necessário ao pagamento daquela sofredora gente, prestes a agonizar.(IDEM, 27/09/1933 p 03).


O não pagamento dos operários era apenas “a ponta do iceberg” em relação à dinâmica total da obra. Havia também a problemática da licitação, pois foi aberta uma concorrência para saber qual seria a empresa responsável pela construção. Concorreram para tal as firmas Cristiani Nielsen e Geobra Civis e Hydraulicas. "As propostas foram abertas por uma comissão presidida pelo engenheiro Oscar Weischenck*, que designou um engenheiro para dar parecer a respeito. Ao que consta, esse parecer já está lavrado e é favorável à firma Cristiani Nielsen. No departamento, consta, entretanto, que já foi apresentado um protesto contra esse parecer”.(CORREIO DO CEARÁ, 22/10/1934, p. 01), com a alegação de que venceu a proposta menos econômica. Além da possibilidade de fraude na licitação, o governo ainda tinha que responder aos fornecedores dos materiais, pois o pagamento também se encontrava em atraso.
*Diretor do Departamento de Portos


A situação dos proprietários de fornecimentos às obras sob a superintendência da fiscalização do porto é das mais prementes, das mais vexatórias. Invertendo naqueles negócios os seus capitais, e forçados a manter as secções respectivas, desde janeiro não recebem pagamento. [...] Além disto, tem lucros insignificantes. Lucros por hipóteses, que, realmente, prejuízos é que vem sofrendo, com o emprego do capital e o serviço de juros, a que quase todos estão sujeitos. [...] E tudo isso seria sanado com 600:000$000- uma insignificância, que ainda sim o governo demora a resgatar, sacrificando profundamente os interesses dos que lhe deram o necessário crédito. (O NORDESTE, 04/09/1933, p. 03).

Esta matéria dO Nordeste nos revela o corolário de interesses em jogo na construção do porto. Mesmo o leitor mais obtuso em matéria de economia política, não pode deixar de notar a pressão que os capitalistas exerciam no governo, no sentido de retorno dos seus investimentos e gerenciamento dos seus lucros. Os investimentos nas obras do porto absolveriam capitais de ambos os circuitos, primários e secundários. Haveria um fluxo de capitais, com o objetivo de anular o espaço pelo tempo.


O porto de Fortaleza iria acumular capitais de vários setores, além do papel que cumpriria na circulação de mercadorias. Um latifundiário da capital ou do interior do Estado poderia exportar mercadoria com um menor custo. O desenvolvimento do porto, convergia para o desenvolvimento econômico da cidade, e dos setores capitalistas que dela faziam parte.

A grande e velha esperança do Ceará vai, desta feita, felizmente, tomando as cores de uma consoladora realidade. Fruto é verdade, de uma terrível seca, de que os nossos sertões, largo tempo guardarão ominosa lembrança. Pode-se dizer assim, que os eternos estudos de outrora, lograram o seu fim. Já está marcado de vez o local e os técnicos se lançam afanosos, aos trabalhos das plantas definitivas. (IDEM, 11/11/1933, p. 03).


Os discursos sobre o Porto de Fortaleza expressavam, em sua grande maioria, os anseios das frações capitalistas de desenvolvimento econômico da cidade. O porto fulgurava como uma panaceia, trazendo a “redenção” dos flagelos da seca. Mais, no interior dos enunciados, cintilavam seus interesses primordiais, ampliação de novos canais de importação e exportação de mercadorias, novas oportunidades de angariar recursos e de desenvolver o comércio local. Percebemos a confluência visceral dessas falas, quando o decreto sobre a construção é, enfim assinado.

O presidente Getúlio Vargas assinou, ontem, o decreto fazendo a entrega, ao governo do Ceará, da importância correspondente a dois 2% ouro, para a construção do porto de Fortaleza, subindo essa importância a quinze mil contos de réis. Foi Também assinado o decreto que transfere para o governo do Ceará a construção do porto. (IBIDEM, 22/12/1933, p. 01).


O porto seria construído com uma boa parte dos recursos oriundo do Governo Federal, mas com a centralização administrativa do governo estadual. Diferentemente de outras melhorias urbanas, o porto conseguia agradar gregos e troianos. Não se levantava uma voz dissonante para negar os benefícios de tal obra, no máximo se ouvia ruídos para criticar a demora de execução das obras, atrasos salariais, ou discordância da localização geográfica.

Em relação à localização geográfica, uma das teses que eram defendidas por um largo setor da imprensa, baseada nos estudos do engenheiro Augusto Hor Meyll, situava a enseada do Mocuripe, como local privilegiado para construção da obra. A construção da cidade, não obstante, deveria convergir para tal, pois na época se construía uma estrada de ferro que ligava o centro de Fortaleza ao Mocuripe.


A linha férrea pode-se dizer que vai até o farol do Mocuripe, encontrando-se os trabalhos a uma distância de apenas cerca de 300 metros da ponta, distância essa que será coberta de trilhos destes para o mês seguinte. Os trilhos acompanham a praia, separando-se do mar, em certos trechos, por 5 ou 6 metros apenas. O leito da estrada de ferro será alargado, de 6 m.50, que tem agora, para 16 m.50, á direita de Fortaleza, afim de dar margem ampla para uma estrada de rodagem onde os dois automóveis possam simultaneamente trafegar na enseada que deve ser aterrada, em grande parte, para construção do cais, encontram-se 13 mil toneladas de pedra para a consolidação das grandes dunas locais. Esse enrocamento que é definitivo, com as outras obras atuais, tem ocupados uma turma de 120 operários, sob a chefia do Sr. Gastão Aranha. (IBIDEM, 25/08/1933 p. 01).


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Parte da obra, no que se refere à ampliação da largura da estrada, quantidade de pedras que se teria a movimentar etc, a matéria supracitada é mais elucidativa do ponto de vista do interesse econômico, construir uma estrada de ferro ligando ao porto. Com isso melhoraria, substancialmente, o fluxo de mercadorias. A circulação de capital revelava a sua importância para uma cidade que estava se modernizando, pois o investimento no porto era seguido de investimento no alargamento das vias férreas, pensando na conexão de ambos os setores. Mais uma vez, confirma a tese que neste período houve um aumento no circuito secundário, como tentativa de desenvolver a cidade, numa época de crise econômica mundial. O discurso da seca era lucrativo e atraía recursos para serem utilizados no desenvolvimento material da cidade.

¹Relação de engenheiros que foram enviados para estudar a realização do porto de fortaleza, ainda no império: 1854, Dr. H.A.Millet; 1858, o Dr. R.J.G Jardim e o Dr. Pierre Berthot; em 1860, o capitão-tenente Raja Gabaglia; em 1864, o Dr. Zozimo Barroso; em 1874, Sr. John Hawkshaw; e em 1881, o Dr. Milner Roberts
Almanach administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1932 confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 230.

² As aspas em governo revolucionário, é por se tratar de um golpe de Estado e não de uma revolução social. Porém, foi mantido o termo, devido ao uso dele pelos partidários de Getúlio Vargas. Para uma análise que desconstrói o movimento de 1930 como uma revolução, ver: ( Dedeca, 1994).


Leia também:
Coluna da Hora - A polêmica em torno da construção do monumento

As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital

Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932'http://www.fortalezanobre.com.br/2015/01/a-origem-da-praia-de-iracema-de-1920.html de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: http://memoria.bn.br/

sábado, 9 de dezembro de 2017

Remodelagem da Praça do Ferreira na década de 30


A praça antes da remodelagem. Foto de 1929.
A praça antes da remodelagem. Déc. XX - Nirez
"Esse serviço que a prefeitura executa na Praça do Ferreira, ao que parece não terá mais fim. Está prejudicando a deus e o mundo. A população que é obrigada a transitar pela nossa principal artéria, não obstante todas as precauções devem ficar com os pulmões avariados, tal a nuvem de pó que se espalha pelos quadrantes da velha praça. E o comércio? Esse, tem tido grandes prejuízos que poderão ser atestados por qualquer comerciante ali localizado. Um caminhão que se movimenta incessantemente, em todas as direções, carregado de areias para as obras de calçamento, o menor dano que ocasiona é empoeirar os tecidos das lojas de modas que se encontram nas imediações do interminável serviço. [...] Lembre-se o Prefeito que é o comércio quem lhe mantêm as extravagâncias, inclusive as que transformam a Praça do Ferreira em detestável logradouro." 
(A Rua, 10/10/1933 p 01).

Praça do Ferreira década de XX. Nirez
O projeto de remodelar a Praça do Ferreira como lócus do centro comercial, foi alvo de críticas de setores da imprensa. Esta matéria é lapidar no que se refere à importância que exercia o comércio e a Praça do Ferreira, na capital cearense. E o jornal tinha razão quando dizia que era o comércio que bancava essas obras, ou, nas palavras do periódico, essas extravagâncias. Tal projeto de urbanização do governo municipal atendia, primordialmente, aos interesses dos setores capitalistas ligados ao comércio e à indústria da construção civil.

A praça no início da década de 30 antes da remodelagem.
A Praça do Ferreira, como representava o centro comercial da cidade, era também o local onde a picareta mais pulsava, ao ponto de alguns jornalistas ironizarem que, o que ocorria naquele logradouro era um terremoto. Porém, além do caráter comercial já explanado, a Praça do Ferreira também exercia fascínio por ser o símbolo da modernidade de Fortaleza na época, pois lá se encontravam os equipamentos de lazer e cultura, frequentados, majoritariamente, pelo público mais abastado.

A praça ainda com o coreto, antes da reforma. Anos 30
"Centro comercial, por excelência, no quadro daquela urbs está localizado o movimento chic de armarinho, miudezas, assim como se acha instalado os cinemas elegantes, os cafés e as confeitarias de primeira ordem desta capital. Todos são contribuintes do Estado e Município. Todos concorrem para o progresso material do Ceará. Deviam, por isso mesmo, merecer dos poderes públicos, um pouco mais de consideração, um pouco mais de respeito. Infelizmente nossos homens públicos, com raríssima exceção, cuidam que o dever do povo é pagar tributo e acatar sem turgir nem mugir as ordens emanadas do alto. É o que acontece, presentemente, entre nós. Além da poeira produzida pelo trabalho da trituração do cimento, em pleno dia, a prefeitura manda fazer a varrição daquele trecho em plena as 3 horas da tarde.[...] Em fortaleza, o Chefe da Edilidade sente um prazer satânico em cobrir de poeira os transeuntes e proprietários da Praça do Ferreira! Ô terra pra ter sorte!" 
(A Rua, 19/10/1933 p 01).

Foto de 1930
As críticas em relação à praça, no sentido de ela estar sendo, constantemente, coberta de poeira, de reformas intermináveis, da “picareta” da prefeitura não parar de funcionar naquele local, só confirma a nossa hipótese do escopo da urbanização da prefeitura. Os cafés, armarinhos, padarias, teatros e cinemas de primeira ordem, eram espaços de grupos privilegiados. A urbanização nesses locais não poderia parar, por isso que o centro e, especialmente a Praça do Ferreira, vivia coberta de Poeira. Porém, era um tipo “diferente de poeira” dos areais e subúrbios, ocasionados pelo excesso de reformas e não pela negligência total e abandono das áreas mais pobres.
Outro aspecto importante da modernização de Fortaleza foi o referente à iluminação pública. Segundo Nogueira, 1980, a iluminação de fortaleza teve três fases: 1) a era do azeite de peixe; 2) a era do gás carbônico; e 3) a era da eletricidade com fios. O período analisado em nossa pesquisa marca a transição da era do gás carbônico para a da eletricidade com fios. Como observamos, existia um projeto do governo de modernizar a capital, e nada mais simbólico do que a “iluminação”, que está associado ao ideário de progresso desde os tempos do iluminismo, em contraste com a escuridão, figurativa de atraso e “trevas”. No entanto, a iluminação segue na esteira da modernização das ruas e praças, ou seja, é desigual, contemplando apenas uma parte dos logradouros. As ruas mais afastadas do centro, num adágio da época, deveriam fazer “contrato com a lua”.

A praça depois de remodelada - Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934
A praça em 1934.
A iluminação a gás ficava a cargo da empresa britânica, Ceará Gás Company, que exercia essa atividade desde 1866, clareando algumas ruas da cidade, dando à época uma sensação que a cidade estava caminhando rumo ao progresso, por se distanciar da escuridão. Porém, em 1934, se inicia um conflito entre a companhia e a prefeitura municipal.

"Entendeu a prefeitura de fazer um contrato provisório para a iluminação da cidade e publicou edital exigindo o sistema exclusivo a eletricidade, o que importava em excluir a companhia que já vinha executando o serviço a gás carbônico, o que era uma injustiça. Não obstante, ou por isso mesmo, a concorrência não teve êxito. Apareceu a estranha proposta do Sr. Strainer, que se oferecia apenas para instalar os focos provisórios, indo a prefeitura buscar a energia elétrica onde pudesse obter, o que não foi aceito de acordo com o parecer dos técnicos."
(CORREIO DO CEARÁ, 10/12/1934 p. 01).

Linda em 1935.
A Interventoria e a prefeitura acabaram rescindindo o contrato com a empresa inglesa, alegando que os prazos de contratos eram excessivos e os serviços onerosos. O ministro das relações exteriores, J.C. de Macêdo Soares, tentou intervir para revogação do contrato, mas não obteve êxito. Já era a segunda vez que o governo municipal estabelecia uma relação litigiosa com empresas estrangeiras, especificamente, inglesas, demonstrando uma tendência política diferente dos anos anteriores. Após o Golpe de 1930, as empresas estrangeiras foram tratadas com menos regalias pelo governo municipal, recebendo aval da Interventoria e do Presidente da República. A resposta do Interventor Federal, Cel. Moreira Lima, ao ministro das relações exteriores, é bastante elucidativa deste novo cenário político.

Praça do Ferreira em 1934. Vemos ao lado
do Majestic, o cine Polytheama.
Arquivo Nirez
"Sinto obrigado a declarar a v. excia. Que a não ser ordem formal Sr. Presidente da República, de minha parte nenhuma possibilidade reconsiderar ato de recisão meu antecessor contrato Ceará Gás Company visto haver ele consultado interesses da administração e população desta capital.[...] Referido contrato, pelas sua clausulas e prazo excessivo, oneroso e prejudicial, é um desses encargos do passado que urgia fazer desaparecer, de qualquer forma, sob pena do governo revolucionário revelar-se solidário com todas as imoralidades administrativas que arrastaram o país a revolução de 1930." 
(Correio do Ceará, 27/11/1934 p. 08).

A praça era frequentada majoritariamente por um público mais abastado. Foto de 1936.
Jornal O Combate de 26 de Fev de 1935.
O Interventor ainda menciona no mesmo telegrama que num prazo máximo de 20 dias, instalaria a iluminação elétrica, que, segundo este, o serviço já estava bem encaminhado, faltando apenas comprar uma parte restante do material. Mas o que ficou evidente no telegrama do Interventor é que existia uma nova forma de lidar com os contratos das empresas estrangeiras. Não podemos inferir se tratava de um projeto nacionalista, apesar de alguns elementos sinalizarem para isso, mas, com certeza, se referia a uma centralização política bem maior do que na primeira república, sendo os contratos, e em especial os de monopólios, reavaliados.
Todavia, “a Companhia do gás fez ponto aos 25 de outubro de 1935, encerrando-se assim, a era do gás carbônico, que durou 68 anos, 1 mês e 8 dias”.(NOGUEIRA, 1980 p. 31). Iniciou-se, ainda em 1934, a iluminação elétrica em algumas ruas, começando pela colocação de algumas lâmpadas na Praça do Ferreira. Mas determinados locais como o Alagadiço e a Praia de Iracema, que na época do gás não tinham iluminação, continuaram sem ter com a implantação dos fios elétricos, corroborando o caráter excludente e desigual da urbanização de Fortaleza.


Jornal A Razão - 02 Jun 1936
"Fato que está provocando grande número de reclamações e queixas da população vêm a ser falta de iluminação elétrica em certos trechos da cidade onde não havia iluminação a gás, e por isso não terão luz elétrica. Temos um exemplo nos dois primeiros quarteirões da Avenida Imperador, lado norte. Pelo que sabemos a rede nova de luz elétrica não será estendida naquele trecho. O interesse da população requer uma solução para o fato em apreço, e também para a escuridão das ruas, que se acham nas trevas, quase por toda cidade." 
(Correio do Ceará, 29/12/1934 p 09).

Neste sentido, a população pobre, que morava em bairros afastados do centro, nos subúrbios e favelas da capital, continuou sem “luz”, tendo que restabelecer o seu “contrato com a lua”. Na medida em que a urbanização da cidade, com a predominância do tempo do relógio, materializado na construção da Coluna da Hora, reformas do perímetro central, incluindo ruas, praças e demais logradouros comercias, substituição da luz a gás pela a elétrica, todo esse conjunto de características que metamorfosearam a cidade “antiga” em “moderna”, só foram sentidos e usufruídos por uma pequena parte da população. Porém, as normas e a doutrinação, a implantação de novos costumes e valores, foram universalizadas através do imperativo das leis e o autoritarismo do governo, ao mesmo tempo em que, os equipamentos modernos, saneamento básico e energia elétrica, não passaram de utopias para a maioria da população, “Utopia no sentido grego da palavra, ou seja, lugar nenhum ”.


Em suma, os aspectos simbólicos, culturais, econômicos e políticos, constituíram um mosaico complexo, permeando a realidade urbana de Fortaleza, só podendo ser apreendido como unidade de uma totalidade maior que envolve um projeto coeso dos governos (municipal, estadual e federal), na produção espacial de uma cidade capitalista em desenvolvimento. Portanto, a heterogeneidade da construção socioespacial é tão diversa, que não apenas a instalação de um relógio, mas, principalmente, a extensão das “melhorias urbanas” para o restante da população, tornou-se uma odisseia ainda maior.

Leia também:
Coluna da Hora - A polêmica em torno da construção do monumento

As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital

Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: http://memoria.bn.br/


sábado, 2 de dezembro de 2017

Coluna da Hora - A polêmica em torno da construção do monumento


Construção da Coluna da Hora na Praça do Ferreira.
Acervo Ricardo Figueiroa

“ Do pó, do nada do chão,
Vai subindo céus afora,
Numa sublime ascensão,
A tal Coluna da Hora.
Nos velhos tempos de outrora,
A tal Coluna da Hora,
Causaria sensação!
Talvez, ficasse na história
Da princesa Teodora
O nome do seu Girão”.

Feira de Missangas

A construção da Coluna da Hora constituiu um importante marco no projeto de modernização da capital.
A ideia não era recente, pois desde a administração do major Tibúrcio Cavalcante, a Prefeitura já cogitava este melhoramento urbano. Em dezembro o major licenciou-se e foi ao Rio, incumbido de procurar um relógio adequado a Praça do Ferreira. Seus esforços foram, porém, baldados. Nem no Rio nem em São Paulo encontrou um que o satisfizesse. Consigo levara também plantas e fotografias das quatro faces da referida praça. Confiando a organização do projeto da Coluna a uma comissão de três membros, entre os quais se achavam os arquitetos Ruderico Pimentel e o capitão Ruy de Almeida. Cada um apresentou o seu projeto, chegando todos a conclusão, pela média das alturas dos prédios, que a Coluna devia ter a elevação de 10 a 12 metros.

Jornal A Razão de 02  Jun 1936
Porém, nenhum desses projetos apresentados foi aprovado pelo Estado, com alegação de não consultar o “senso estético do local”. O arquiteto da Prefeitura, também apresentou três projetos que foram sumariamente recusados. Ficou a cargo do engenheiro e arquiteto José Justa, apresentar um projeto definitivo. Também foram solicitados catálogos e preços de relógios europeus, através das firmas Alfredo Salgado, Gradovhl & Fils, Dumar & Cia e Antônio Fiúsa, contudo também resultou em nada. Após esses impasses, foi criada outra comissão, composta pelo Dr. Ernesto Pouchain e pelos relojoeiros Abílio Silva e Milton Muratori, para julgar a licitação mais vantajosa, em relação ao relógio. A comissão aprovou a proposta da firma Byington Co, que tinha filial em Recife, pois apresentou o menor preço, garantindo entregar o relógio todo montado pela quantia de 20 contos de réis. Depois foi aberta outra licitação para saber qual a empresa que iria construir a Coluna.

"Apresentaram-se dois concorrentes: Dr.Antônio Urbano de Almeida e o Sr.Clóvis Janja, aquele prontificando-se a edificá-la por 29:300$, e este por 28:690$. Como estava fixado no orçamento municipal, não ultrapassar a referida construção de 25 contos, condicionou a proposta vencedora a uma redução de preço”. (O Nordeste, 01/09/1933, p. 05)


Isso foi aceito pelo senhor Janja, todavia, a história do relógio e da coluna, tinha apenas começado. A primeira polêmica acerca da construção da Coluna ocorreu devido ao coreto que existia na Praça, o qual nunca conseguiu agradar gregos e troianos. Havia aqueles que defendiam sua importância histórica e política, pois ele era frequentemente utilizado para proferir discursos sobre a cidade, problemas sociais, ou mesmo propagandas políticas. E existiam aqueles que o tratavam com escárnio, menosprezando o seu estilo arquitetônico, alcunhando-o de feio, antiquado e obsoleto.
1930. No velho coreto, o célebre discurso do Dr. Morais Correia durante a campanha que levou Fernandes Távora ao Governo Provisório, e a queda do prefeito Cesar Cals ( Foto O Povo). Acervo Lucas
Vai ser demolido o coreto da Avenida 7 de Setembro, na Praça do Ferreira. Do ponto de vista estético é, não resta dúvida, providência que se justifica, pois aquilo não é lá coisa que se recomende, apesar de ter custado ao que se diz- mais da metade de uma centena de contos... Caro e feio. Mas tinha além da serventia para as retretas aos domingos, a de ser tribuna dos demagogos, desde os mais sisudos aos mais implumes ensaístas da oratória. Muita gente pregou ali ideias de todo quilate. Ouviram-se dali, palavras de fogo e asneira de palha. Oradores aclamados, aplaudidos, vaiados e apeados. Alguma coisa de histórico... E onde será, agora, a tribuna da oratória popular? Nos pisos da Coluna do relógio? (O Nordeste, 02/08/1933 p 03).
Praça do Ferreira por volta de 1920. Vemos o coreto em dois tempos, sem e com a cobertura.
Jornal A Razão de 13  Jun 1937.
Jornal A Razão de
15  Jun 1937
E onde os demagogos falarão agora? Este foi o título da matéria do Nordeste, acima citado. Para o matutino, o coreto era um espaço, essencialmente, das expressões de demagogos, que tinha lá seu valor histórico, apesar de ter custado muito caro e ser feio. Mas que, de certa forma, a sua demolição era justificável, não fazendo tanto alarde a esse respeito. No sentido oposto, o jornal A Rua saiu em defesa da manutenção do objeto em questão, justificando como espaço da expressão e liberdade do povo, e acusando o Prefeito de ter Passadofobia.

Não houve apelos, não houve razões, por mais ponderosas que fossem que demovessem o “futuroso” Prefeito da nossa Urbe da sua temível sanha de aniquilar o passado. É um homem teimoso, e sua “passadofobia” não tem limites. Por isso, o coreto do jardim da Praça do Ferreira, presentemente atingida por um terremoto vai desaparecer, está desaparecendo. As picaretas do estadista de Morada Nova manejadas por mãos hábeis e possantes, já, a estas horas põem por terra a verdadeira tribuna do povo livre do Ceará. (A RUA, 12/10/1933 p 01).

O periódico continua fazendo um resgate da importância histórica do coreto na derrubada de governos conservadores e antiliberais. Não obstante, o que está em jogo não é a defesa do coreto como objeto de relevância histórica e operacional para o desenvolvimento da liberdade do povo cearense, mas a crítica ao projeto de modernização de Raimundo Girão, onde o coreto é apenas um elemento simbólico da retórica de oposição. Os argumentos de defesa do velho e de críticas ao novo, mesmo envolvido de uma epiderme lógica e racional, se sustentam numa “retórica da nostalgia” como aspecto substancial da negação, na medida em que as reminiscências sentimentais são erigidas como o sustentáculo da defesa da tradição e da crítica à mudança.

Jornal A Razão de
03  Out 1937
Começou, há dias, a demolição do coreto da Praça do Ferreira. O jovem governador da cidade não se sente bem com o passado. Tem uma verdadeira volúpia pelo modernismo. Arrasou a Praça do Ferreira pelo prazer de construir para o futuro. [...] Mas é preciso demolir tudo. Como Julião, o Apostata, quer lavar Fortaleza de toda nódoa da administração do passado. Deixar incólume o coreto da 7 de Setembro é fazer obra incompleta. É que nas suas paredes está a inscrição, em vernáculo, da remodelação do jardim, na administração do Dr Godofredo Maciel Daí o pesadelo do jovem Chefe da Edilidade. Acha que a cidade de Fortaleza veio a lume, ressurgiu do nada graças aos seus esforços! [...] Enquanto houver dinheiro, estamos certos, o jovem Governador do município, derruirá tudo. Constatando com esta febre de reformas, a pobreza esfarrapada anda esmolando a caridade pública, pelos passeios da cidade. Mas, como já disse o Sr., a pobreza não vale nada. Vale mais um palmo de pavimentação a concreto do que um abrigo para as crianças pobres. São palavras do facundioso chefe do executivo municipal. E não há lógica que sirva. O coreto entrou há dias no pano das reforma... A picareta entrou em cena, sem contemplação! Pobre passado! (IDEM, 10/10/1933 p 03).
Praça do Ferreira nas primeiras décadas do Século XX. Entrada para o Jardim 7 de Setembro, construído pelo intendente Guilherme Rocha em 1902 e demolido pelo prefeito Godofredo Maciel em 1920. Ao fundo, na lateral direita da foto, avista-se a torre do prédio da Intendência Municipal (Prefeitura). Acervo Duarte Dias
Observamos, portanto, que o passado é o pano de fundo para uma crítica mais visceral ao projeto de modernização da cidade. Ao mesmo tempo em que a picareta do governo não para de executar reformas materiais que atenderão a uma pequena parcela da sociedade, a miséria em torno da cidade aumentara substancialmente. Também estava em questão, e o matutino aponta com sagacidade, a ofuscação das melhorias realizadas nas administrações passadas, pela administração hodierna. Cada Prefeito gostaria de deixar sua marca, ou ganhar o título de modernizador. Raimundo Girão não era indiferente a esses anseios.
Foto de 1952
No entanto, a destruição do coreto e a introdução da Coluna da Hora revelavam além desses aspectos políticos, uma tendência de uma cidade que se adaptava ao capitalismo, não apenas nos aspectos econômicos e políticos, mas culturais e simbólicos, pois a Coluna da Hora representava uma noção específica de temporalidade, o tempo do relógio, das horas de trabalho, das atividades programadas por segundos, minutos e horas, em detrimento de uma temporalidade essencialmente campesina, estigmatizada e norteada pela natureza. O tempo do relógio marca a imposição de novos costumes, de uma sociedade que está se industrializando, e que precisa “otimizar” o tempo da produção e circulação de mercadorias. Por isso, a construção de um marco regulador se fazia urgente!
Coluna da Hora em 1967 - Ana Teresa Mello Fiúza

Pelo navio “Sheridan”, chegaram a nossa capital os 8 volumes de que consta o material do novo relógio a ser instalado na coluna erigida á Praça do Ferreira. A remessa foi feita pela Casa Byington com matriz em São Paulo, e filial em Recife, sendo o relógio fabricado pela “Westing House”, E. U. da América.[...] O relógio como já é do conhecimento público, será movido a eletricidade, com 4 faces e dispositivos automáticos para darem a corda necessária. Esta é regulada por meio de pesos, que serão levantados, quando preciso, pelo maquinismo automático. Desta maneira, a intervenção que se requer é apenas em ordem a lubrificação e limpeza e ao bom andamento dos motores. A Fortaleza deverá chegar, brevemente, de avião, o Dr. Hermes Barroso de Lima, da filial Byington, do Recife, e que se vem encarregar da montagem do relógio. (O NORDESTE, 29/11/1933 p 4 e 5).

O relógio é apresentado como o mais moderno possível, não sendo quase necessário trabalho humano para regular, salvo em matéria de limpeza e manutenção, trazendo características que são sinônimos dos discursos da modernização como, “movido à eletricidade”, constituído de “dispositivos automáticos”, sendo ainda todo o material importado dos Estados Unidos. O relógio era um símbolo moderno em várias acepções! Em primeiro lugar, representava a instalação de uma nova temporalidade, industrial, urbana, afastando-se do tempo da natureza materializado no campo. E, em segundo lugar, o próprio “relógio em si” já era moderno na sua composição física.
Coluna da Hora em 1967 - Ana Teresa Mello Fiúza

De acordo com O Nordeste, o relógio custou 20.000$000, sem os impostos que teriam sido dispensados graças à intervenção do Interventor Carneiro de Mendonça. Caso tivesse que pagar os impostos, o custo sairia quase o dobro. Neste sentido, o maquinário foi apresentado como vantajoso para a municipalidade, e que seria inaugurado na véspera de Natal. Porém, nem tudo ocorreu como se esperava!

Descobriram depois que o relógio não cabe na cama que lhe arranjaram na tal Coluna do revolucionário desconhecido. Por último verificaram, por ocasião de examinarem a encomenda, que os quatros vidros que protegem o mostrador vieram quebrados. Será possível tanta urucubaca! Santo Deus, quando teremos hora oficial na cidade? (A RUA, 7/12/1933 p 01).

Segundo o jornal, além do material ter vindo já danificado e não caber no local da Coluna, ainda houve outro problema. “Rachou o pedestal da Coluna da Hora”. De acordo com o periódico, a base sofreu uma rachadura, prejudicando mais ainda o projeto do governo de inaugurar “a melhoria urbana”. A Praça do Ferreira e a Coluna da Hora eram o cartão postal do projeto de urbanização da prefeitura. Qualquer entrave na sua remodelação, de imediato já era denunciado nas páginas da imprensa, que não poupavam críticas quando se relacionava a tais “melhorias”. Todavia, a Coluna é inaugurada na virada do ano de 1933 para 1934, que, segundo o jornal O Povo, foi esperado por uma multidão de pessoas que se aglomeravam ao redor da Coluna, onde Raimundo Girão proferiu um discurso que foi irradiado através da Rádio Clube Ceará para a população que ali se encontrava.
Anos 30
A Coluna da Hora, no entanto, não foi o primeiro relógio da capital. De acordo com artigo de Antônio Theodorico da Costa, publicado no O Nordeste em 16 de novembro de 1934, p. 01 e 04, já havia sido instalado em 1854 o relógio da Catedral da Sé, depois outro relógio foi implantado no edifício da Estação Central, e um terceiro com caráter oficial no prédio da Intendência, onde funcionava a Prefeitura, na Rua Floriano Peixoto. No ano de 1922, também foi construído outro na coluna do Cristo Redentor, na Prainha, em comemoração à Independência do Brasil. Por conseguinte, este breve histórico sobre os relógios da cidade, mostra que a tentativa de estabelecer um padrão temporal, já vinha ocorrendo desde o final do século XIX, mas que ganha força e se materializa de forma mais concreta na década de 1930, uma vez que não se trata de um relógio instalado numa igreja, estação, ou órgão oficial do governo, mas fincado na Praça do Ferreira, e como diriam alguns dos escritores da época, a maior artéria econômica da capital.

 1958 - Na Praça do Ferreira, a Coluna da Hora maltratada
pela ganância da campanha política.
Parsival Barroso bateu o favorito da imprensa,
Virgílio Távora. (Tribuna do Ceará - Acervo Lucas)
Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: http://memoria.bn.br/O NORDESTE, 01/09/1933 p. 05

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O Centro no "centro" das atenções - Retirada dos trilhos dos bondes (Parte II)


Praça do Ferreira na década de 30.
No projeto de urbanização de Raimundo Girão, a retirada dos trilhos dos bondes da Light era imprescindível, principalmente em se tratando da Praça do Ferreira, cartão postal da cidade. A relação da companhia com a prefeitura, que já não era boa, ficou num patamar de tensão ainda maior:

Jornal A Rua de 16 de Dez. de 1933 
Após essas exigências e impasses, um funcionário da Light foi tomar satisfação com o Prefeito, explicando que não tinha condições de funcionar desta forma. Porém, a mediação encontrada por Raimundo Girão foi permitir que os bondes pernoitassem fora da estação. O chefe da municipalidade havia deixado claro que “a modernização” das ruas e das praças estavam no topo da hierarquia, e qualquer empresa deveria se adaptar a esse projeto.


Vista aérea da cidade na década de 30. Vemos a chaminé da Usina Light, a catedral metropolitana e o Gasômetro. Arquivo Nirez
Foto da Rua Major Facundo com vista da
Praça do Ferreira em 1937
O governo compreendia a importância de controlar os transportes, como parte de um complexo social maior que ia desde o esquadrinhamento das ruas em traçado xadrez, para evitar barricadas e facilitar o tráfego de mercadorias e transeuntes, até o isolamento e marginalização dos pobres em bairros afastados do perímetro central. Enquanto a Light, ou qualquer outra empresa, não aceitassem as regras do jogo, os prejuízos só tenderiam a se elevar até a falência. Pois o Estado brasileiro, com a ascensão de Getúlio Vargas no poder, não estava mais entregue “a mão invisível do mercado” (a experiência de 1929 foi muito educativa sobre os problemas que “tal liberdade” poderia causar), mas, trava-se na época de um Estado interventorial, e que tudo queria controlar.
Percebemos a dimensão desse controle numa matéria do Correio do Ceará, referente ao trânsito de animais pela cidade:


Vendedores em seus burricos - Parque da Liberdade
Todos sabem que não se pode contar com o abastecimento de água do Acarape que falta desde as primeiras horas do dia até a noite. É imprescindível que se recorram aos vendedores ambulantes e se estes não podem transitar com seus burricos como é que vai ser?[...] A situação é, pois, desesperadora para os que ficam sem o precioso líquido do abastecimento público e não podem comprar porque é proibido animais transitarem pelas ruas calçadas a paralelepípedo ou a concreto. 


Vendedores de água no início da Rua Marechal Deodoro,
esquina com a Domingos Olímpio. Arquivo Nirez
[...] Se se permite que animais puxando carroças com rodas de borracha penetrem nas ruas, porque impedir o trânsito deles só porque não estão atrelados a um veículo? A Avenida João Pessoa é calçada a concreto em toda a extensão do Benfica a Porangaba. Entretanto, por ali transitam, sem proibição nenhuma, animais de toda a espécie, sem que dali resulte qualquer dano ao calçamento. Reflita bem o Sr. Prefeito sobre os embaraços que essa medida ocasiona ao comércio e a população em geral e verá que convém revogá-la em bem do público e para maior simpatia da administração municipal. (CORREIO DO CEARÁ, 04/10/1934 p 01).

Praça do Ferreira na década de 30. Arquivo Nirez
A prefeitura proibiu os animais transitarem em algumas ruas do Centro da cidade que foram calçadas a paralelepípedo ou a concreto, alegando que poderia danificar o material do calçamento. Sendo que boa parte do abastecimento de água, venda de diversos produtos como frutas e outros gêneros de primeira necessidade, ainda eram realizado por ambulantes conduzindo as mercadorias nos animais. A contradição aumenta quando o periódico cita que da Avenida João Pessoa a Porangaba, os animais transitam sem nenhuma fiscalização, e mesmo assim não causaram dano algum no concreto. Na verdade, o que podemos inferir dessa medida da prefeitura, é que ela queria afastar os animais do perímetro central, escopo principal da modernização, lócus do comércio e anfiteatro do desenvolvimento, pois, como a Avenida João Pessoa ficava um pouco afastada do centro, sem falar da Porangaba (Atual Parangaba), que era ainda mais distante, não carecia de tanta fiscalização.


Praça Clóvis Beviláqua (Ainda sem a Faculdade de Direito) em 1931.
Arquivo Nirez
Dessa forma, animais transitando pelas artérias centrais causariam contrastes com a remodelação do centro, praças reformadas, introdução de novos cinemas, teatros, clubes recreativos, toda uma série de equipamentos modernos que estavam sendo instalados em Fortaleza na época. A modernização não foi apenas um projeto econômico e político, mas também estético e cultural. 


Praça do Ferreira em 1934. Vemos ao lado do Cine Majestic, o Cine Polytheama. arquivo Nirez
O centro de Fortaleza foi remodelado como síntese de diversos processos convergentes e antagônicos. Só tem sentido em pensar nas reformas materiais das ruas, praças, avenidas, modernização do sistema de transporte, se comparado com a ausência dessas infraestruturas nos bairros mais afastados, nas favelas e nos subúrbios. O que houve no centro da capital foi uma dialética da modernização, uma relação tensa entre o todo e as partes, entre os anseios da população e o projeto de Raimundo Girão, entre a remodelação de algumas ruas e o total abandono de outras, entre uma Fortaleza que se queria moderna ao preço de expurgar costumes e valores rurais.

Veja AQUI a parte I

Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: http://memoria.bn.br/Arquivo Nirez

NOTÍCIAS DA FORTALEZA ANTIGA: