Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

 



segunda-feira, 10 de abril de 2017

O Ceará Durante a Terrível Seca de 1877


"... Na história das secas cearenses nunca houve uma migração tão intensa como na seca de 1877, nem tanto sofrimento, três anos de seca, quando centenas de milhares de pessoas foram se refugiar em lugares menos afetados, como Aracati, Baturité, ou Fortaleza. Na capital da província, famílias maltrapilhas e famintas iam de porta em porta pedindo água e comida, roupas, invadiam plantios das casas nos arredores, moças se prostituíam para sobreviver. No interior, unidos em grupos, flagelados saqueavam depósitos de mantimentos do governo. A população da província estava sendo dizimada pela fome e seus correlatos, como as epidemias. Pessoas se tornavam párias, esmoleres, aviltadas por uma miséria absoluta num lugar estranho, perdendo o mínimo de dignidade que antes possuíam em suas casinhas de palha e roçados e cabras e uma ou duas reses." Ana Miranda


Anos de seca no Aracati - Blog Histórias do Aracati

“A peste e a fome matam mais de quatrocentos por dia”, escreveu Rodolfo Teófilo, horrorizado com o que assistia; parado numa esquina, em pouco tempo viu passarem vinte cadáveres. “E as crianças que morrem nos abarracamentos, como são conduzidas! Pela manhã os encarregados de sepultá-las vão recolhendo-as em um grande saco: e, ensacados os cadáveres, é atado aquele sudário de grossa estopa a um pau e conduzido para a sepultura”. As notícias incomodavam a Corte, o imperador chegou a dizer: 


"Vendo a última pedra da coroa, mas não deixarei mais nenhum cearense morrer de fome"- Imperador Dom Pedro II

O Governo Federal, hoje, tem e faz uso de diversos mecanismos para minorar a problemática da seca no Nordeste: Contratação de carros pipa, distribuição de renda em programas como o bolsa-família e a anistia de dívidas com a abertura de novas linhas de crédito, como as oferecidas pelo BNB - Banco do Nordeste do Brasil com agricultores nordestinos de até 95%, Lei 13340. Essas ações juntas tem matado a sede e a fome de milhões de nordestinos, como evitado o êxodo rural tão comum num passado bem recente. Muito diferente do cenário há 140 anos na terrível Seca de 1877. 
Em toda a sua história o Ceará sempre teve em Fortaleza e Sobral os dois principais vetores do desenvolvimento político e econômico, fato comprovado na década de 70 dos 1800 quando Sobral tinha 27.500 habitantes e a capital Fortaleza - 21.000. Veio a seca de 1877 que dizimou 57.700 almas, contingente maior que o das duas principais cidades juntas. 


Retirantes da seca de 1877 na praça da Estação. Livros os descaminhos de ferro do Brasil.

O Cenário em Fortaleza no Início de 1877:

"Primeiro trimestre e nenhum prenúncio de inverno,os estoques de alimentos da Província estavam praticamente esgotados e a fome se fez presente, com levas e mais levas de rurícolas esquálidos inchando a capital-Fortaleza". 

Cenário em Sobral:

"24 de março, um grupo de desordeiros armados de facas e cacetes (flagelados vindos dos quatro cantos da Zona Norte, à procura apenas de comida e água em Sobral), percorrem as ruas da cidade, pelas 20 horas, ameaçando assaltar a população..." 

Estação de Sobral

Construído por ordem do Imperador Pedro II, o Açude do Cedro, à exemplo da Estrada de Ferro Camocim-Sobral, foram iniciativas do monarca brasileiro visando diminuir os flagelos da seca para as populações do Sertão Central e Zona Norte da Província do Ceará. A Estrada de Ferro de Sobral foi um pedido pessoal da então maior autoridade em linha férrea do país, sobralense que viria ser em 1881 senador - Dr. João Ernesto Viriato de Medeiros e do também sobralense Dr. José Júlio de Albuquerque Barros (Presidente da Província do Ceará à partir de março de 1878); Concessão que caiu no 'colo' do Cel. Ernesto Deocleciano de Albuquerque. Com a Estrada de Ferro de Sobral o Porto de Camocim se tornara um 'porto privado' da elite sobralense, ligando a 'Terra de Dom José' ao Mundo (O Porto do Mucuripe fora inaugurado em 1951, 20 de outubro, quando aportou o Navio cargueiro Mormacred, da Cia. Moore Mac Curmack Line). 




Leia também:  Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Bibliografia.JÚNIOR,Santana.José Moreira da Rocha,o Desembargador Moreira.Fortaleza Nobre,2014. AMARAL,Alberto.Para a História de Sobral,Rio de Janeiro 1953. Jornal O Povo, 2013

terça-feira, 4 de abril de 2017

Avenida do Imperador - Especial Fortaleza 291 anos


Praça da Lagoinha, destaque para a avenida do Imperador. 

Nos  idos de 45, a avenida do Imperador era uma espécie de porta de entrada para o aristocrático bairro de Jacarecanga. Com suas largas calçadas, sua pavimentação de pedras toscas, seus frondosos e elegantes oitizeiros, era para o memorialista e escritor Marciano Lopes, a sua Via Veneto, Avenue Foch e Fifth Avenue. Suas casas são diferentes, portentosas, nobres, um relicário arquitetônico das senhoriais vivendas construídas nas primeiras décadas do século XX. As fachadas são bem características da nossa assimilação do estilo art nouveau com as imprescindíveis sacadas de ferro em notáveis trabalhos que são verdadeiras "rendas" e arabescos fundidos. As portas têm rótulas e postigos com vidraças coloridas importadas da França, da Bélgica e da Holanda. As portas de entrada dão acesso aos pequenos vestíbulos ou salas de espera. As artísticas platibandas ostentam balaústres, "pinhas", "abacaxis", jarrões.


Casa de Thomaz Pompeu vista da Praça.


Mas existem, também, soberbos bangalôs. São as construções mais recentes, espelhadas nas residências das estrelas de Hollywood. Eram assim as mansões do médico Newton Gonçalves, do milionário Checo Diogo, do interventor Menezes Pimentel. Até uma típica mansão inglesa tem na avenida do Imperador. É a residência da família Thomaz Pompeu, em frente à Praça Capistrano de Abreu (da Lagoinha). 

É encantadora sua fachada austera, de tijolinhos vermelhos, enegrecida pela pátina do tempo e sua platibanda com tantos detalhes, além da imponente varanda do andar superior.

Praça da Lagoinha vista da avenida do Imperador

No seu livro Royal Briar, Marciano detalha para nós, a avenida na década de 40: 
"E há singelas casas de beira e bica, como a da inglesa miss Sand, uma solteirona altíssima e muito religiosa, que passa, todas as tardes, para rezar no Santuário da Adoração Perpétua. Usa, sempre, vestidos estampados de preto e branco, minúsculos chapéus pretos, enormes sapatos de linha masculina e, no pescoço, rosário de grandes contas negras.


Casa de Saúde Dr. César Cals

Na minha nobre avenida, há a asséptica Casa de Saúde Dr. César Cals, dirigida pelas irmãs franciscanas. O prédio é gracioso e alegre,  contornado por bem cuidado jardim, cheiroso a jasmins e espirradeiras. Possui uma limpíssima capela, acolhedora e silenciosa, na parte superior e, embaixo, no centro, onde a escada se bifurca, um oratório de São Francisco onde, dia e noite, há sempre gente pagando promessas, rezando e acendendo velas.


Fábrica Progresso na Avenida do Imperador. Arquivo Nirez

A Escola Doméstica São Raphael. Arquivo Nirez

(Ao lado, a avenida vista da praça em 1939. Acervo Sérgio Roberto).

Na avenida do Imperador, ficam o Instituto São Luiz, as fábricas Progresso e Santa Elisa, uma loja Maçônica, a Padaria Ideal, a Farmácia São Francisco, a Escola Doméstica São Raphael, a Escola de Enfermagem São Vicente de Paulo, o Patronato Maria Auxiliadora, onde, no período do Natal, tem o bem montado Pastoril, de irmã Breves, há a pequenina e barroca igreja de São Benedito, com o convento dos padres sacramentinos, há a loja O Gambettá, famosa pelas tintas para tingir roupas, a escola de datilografia do professor Antonio Pimentel, que é dirigida pela Marola; a Villa Diogo, a mercearia do Seu Carlos, velhinho de cabelos brancos, que todas as manhãs brinda sua freguesia com retratos feitos a lápis dos políticos em maior evidência, como Getúlio Vargas, Otávio Mangabeira, Nereu Ramos, Zenóbio da Costa, brigadeiro Eduardo Gomes. O velhinho, que tem aparência de um tranquilo vovô, é simpatizante do Partido Comunista e fica frustado porque não pode expor o retrato do seu líder, Luiz Carlos Prestes. Dá cadeia!


Padaria Ideal - Arquivo Nirez


Destaque para a avenida do Imperador

Quando consigo um tostão, vou comprar "peixinhos" no seu Carlos e sempre tenho a curiosidade de ver a constante renovação da "galeria" de retratos do merceeiro-artista. 
Nossa casa, de duas sacadas de ferro fundido e uma porta, é imponente e elegante, com sua fachada cor de vinho, balaústres, cornijas e frisos bege. As portas têm vidros incolores e vermelhos de bela e forte coloração. Às quatro horas, o sol, através da vidraça, tinge de sangue o velho sofá da sala de visitas.


(Ao lado, a avenida em 1985. Foto Acervo O Povo).

Defronte à nossa casa, mora dona Santinha, virtuosa dama, mãe do político Stênio Gomes, de dona Dolores Caracas e de dona Dulce Gondim. Ao lado da casa de dona Santinha, mora dona Eva Cunha, senhora muito bonita e elegantes, mãe do jornalista Ary Cunha e das elegantes moças Evenita, Berenice, Erbene e Suzy, bem como da menina Marlene, linda loirinha, que é amiga de minha irmã Maria do Carmo e de minhas primas IreneAurinha e Lindete.

Nosso vizinho da direita é o venerado vovô, o velhinho mais simpático do mundo. Ele, que é avô de verdade do Guilherme Neto, é o vovô faz de conta de todas as crianças das redondezas. Mora com sua mulher, dona Virgínia, e suas filhas Laura, Margot e Lúcia. As duas últimas, são professoras de piano e na sala de visitas há dois desses instrumentos. No final da tarde, todos os dias, seu Guilherme, o querido vovô, de terno branco, chapéu do Panamá, gravata-borboleta e bengala, dá o seu passeio que consiste em rodear a quadra. Vai sozinho, caminha devagar e, a cada instante, é assediado pelas crianças, que param suas cantigas de rodas, suas cirandas, para beijar a mão do sempre sorridente velhinho. Retorna, quando o papagaio já põe em polvorosa a casa, indagando: "Margot, o vovô já chegou?" "Ei, Margot, o vovô já chegou?" e, como Margot, ocupada em suas aulas de piano, não responde, ele apela para Lúcia: "Lúcia, o vovô já chegou? Lúcia, Lúcia, o vovô já chegou?" sem obter resposta, dirige-se a Laura e fica a repetir a mesma pergunta, até que vovô chega e o papagaio faz aquela algazarra e no dia seguinte tudo será repetido.


Avenida do Imperador em 1939. Ao fundo o Casarão de Thomaz Pompeu. 
Acervo Sérgio Roberto

Nossos vizinhos são muito especiais. Além dos já citados, há o médico José Carlos Ribeiro, os professores Otávio Farias e João Pinto, o poeta Teixeirinha, a viúva do poeta Epifânio Leite, a família Chaves, de moças muito elegantes; seu Cristóvão e dona Iaiá, genitores do Zé Aírton, da Paulinha e da Marilac. Há seu João, da Viva o Brasil, pequena bodega que faz jogo do bicho.

É também, na avenida do Imperador, que fica a casa cor-de-rosa da milionária e benemérita dona Elisa Diogo. E há as lindíssimas filhas do professor Antonio Pimentel e dona Jatobá, a Yolanda, a Eliane e a Terezinha. Há a imponente casa de Moisés Pimentel, o conhecido Pimentel do Álcool; e a casa de "bonecas" dos manos Maria de Sousa, Vicencinha e Boa Ventura, as pessoas mais prestativas e verdadeiramente cristãs que já conheci.
É linda a minha avenida, sem favor, a mais aristocrática da cidade. Nobre, tranquila, limpa, habitada por gente fina e altaneira. Faz jus ao seu nome."

A Avenida Imperador Hoje:









Crédito: Livro Royal Briar - A Fortaleza dos anos 40 de Marciano Lopes

segunda-feira, 27 de março de 2017

O dia que descobri Fortaleza - Especial Fortaleza 291 anos



"Descobri Fortaleza aos nove anos de idade, precisamente no dia 27 de agosto de 1945, quando vim de Beberibe, tangido pela tragédia que foi a morte de meu pai.
Lembro demais, era uma linda e ensolarada manhã de segunda-feira. Tão linda era aquela manhã, plena de sol, que amei, de pronto, esta cidade, apesar do estado de quase torpor em que me encontrava, em virtude do passamento de meu genitor, cuja missa de sétimo dia ocorrera no dia anterior.

Fui morar na parte mais aristocrática da avenida do Imperador, com seus bangalôs e casarões nobres, suas amplas calçadas e seus majestosos oitizeiros.
O percurso entre a parada do ônibus, na praça dos Voluntários, e a casa de meus familiares, foi de surpresas sucessivas. Embora Fortaleza daquele tempo fosse uma encantadora província, se comparada à minha pequenina e inocente Beberibe, me parecia uma metrópole. Algo como deixar Fortaleza, agora, e chegar a Nova York. Encantavam-me os prédios altos, as lojas bonitas e suas vitrinas, as ruas movimentadas, os carros, o barulho ensurdecedor dos bondes, a elegância das pessoas, as residências chiques.


Avenida do Imperador, vendo-se ao fundo o casarão de Thomaz Pompeu. 
Acervo pessoal de Sérgio Roberto

Naqueles dias, a população de Fortaleza, de cerca de duzentos mil habitantes, assim como as populações de todos os quadrantes do mundo, vivia, ainda, a euforia pelo término da Segunda Guerra Mundial, daí o clima de festa, a alegria que parecia estar em cada face, em cada sorriso.


Ideal Clube meados dos anos 40


Talvez por ser tão pequena e tão singela, Fortaleza, na metade da década de 40, era uma cidade com ares aristocráticos, tinha pudores de donzela, não obstante ser tão francesa no seu aculturamento. A França determinara a formação das senhorinhas de boa estirpe, assim como comandava a moda, o padrão das lojas e de suas artísticas vitrinas, a vida social que acontecia no Clube Iracema (foto ao lado), no Clube dos Diários e no Ideal Clube. Por isso, era chic, na Fortaleza daqueles tempos idos, prendadas donzelas conversando em francês e tocando piano, nos fins de tarde, nas senhoriais moradias do centro da cidade.


Clube dos Diários funcionando no Palacete Guarani e sua diretoria na década de 40.


Como chic era assistir à sessão das sete e meia do Cine Diogo, fazer compras na Casa Sloper, ver vitrinas da Casa Parente, merendar no O Jangadeiro ou no Eldorado, ter, na sala, uma ampliação colorida da Aba Film, usar perfume Promessa, encomendar chapéus às Irmãs Almeida, frisar os cabelos na Madame Santinha, comprar tecidos finos na A Cearense ou na Broadway e, aos domingos, assistir à missa das oito, na Capela das Missionárias, na Avenida Rui Barbosa.
Em agosto de 1945, com o término da guerra e a debandada dos soldados americanos, as "coca-colas" estavam em recesso, mas, ainda faziam sucesso, principalmente, a estonteante Cyres Braga, que chamava as atenções gerais quando desfilava, pelas ruas do Centro, com seu andar ondulado e seu olhar de mormaço.
As damas de fino trato usavam peças de bronze e alabastro para ornamentar suas casas, não dispensavam os cristais da Boêmia, as baixelas de prata, os abajures com cúpulas de pergaminho legítimo, os aparelhos de jantar, em faiança "castelo azul", de origem chinesa, via Inglaterra.


Os americanos na sede da Uso (Estoril) com as Coca-Colas na década de 40. 
Acervo Castro Cascais

Fortaleza, nos idos de 45, compunha-se, além do Centro, que era comercial e residencial, de poucos bairros e, consequentemente, de poucas linhas de bondes e de ônibus. A vida era pacata. Nas calçadas das residências, à noite, formavam-se as chamadas rodas de calçadas com papos os mais variados e as reuniões iam noite adentro. As ruas, muito limpas, eram pavimentadas a paralelepípedos, a pedras toscas e a concreto. As praças eram ajardinadas, fartamente arborizadas, convidando ao repouso e aos folguedos os idosos e as crianças. Havia segurança, não se ouvia a palavra assalto, e ladrões, havia os de galinha. Podia-se andar,  despreocupadamente, a qualquer hora do dia ou da noite, em todos os quadrantes da cidade, sem o menor receio.



Praça General Tibúrcio (Praça dos Leões) em registro dos anos 40.

Não havia exploração nem carestia e os preços das mercadorias, principalmente dos chamados "secos e molhados", passavam até ano sem serem majorados.
Também a moda era duradoura. Roupas, sapatos e chapéus eram usados até a saturação. Não havia técnicos de marketing determinando que a moda tinha de ser efêmera e mudar, continuamente,  para agradar os industriais têxteis, os fabricantes de calçados, os chapeleiros. Não havia, ainda, a indústria da confecção, todo mundo era obrigado a comprar os tecidos e procurar os alfaiates ou as costureiras.


A elegância dos homens na Fortaleza antiga. Na foto, vemos João Clímaco Bezerra, Mozart S. Aderaldo, Edval Távora e Chico Novaes, na Praça do Ferreira em 1946.

Os homens usavam ternos de linho irlandês de dia e,  de casimira inglesa, à noite. Os bem talhados ternos eram feitos pelos mestres alfaiates, instalados, regra geral, na rua Guilherme Rocha, entre as ruas Barão do Rio Branco e General Sampaio. As mulheres usavam muita seda francesa, com estampas florais sobre fundo negro; musselinas para os vestidos de noite, muito laço, muito drapeado, fivela, "apanhados", fricotes. Os sapatos eram, quase sempre, combinados de pelica e camurça, abertos, de preferência e, não raro, os ditos "plataforma", inspirados em Carmen Miranda. As luvas, indispensáveis até para as compras no mercado, do mesmo jeito que o chapéu. Os decotes eram discretos, as saias desciam até esconderem as batatas das pernas, envoltas em meias de seda.

Exemplos de figurinos usados pelas mulheres na metade da década de 40, quando Marciano Lopes chegou em Fortaleza.

As compras de mercadoria fina e comestíveis importados eram efetuadas na Casa Tupy, na Casa Joana D'Arc, na A Miscelânea, na Casa Leitão, na Casa Tabajara e na Leão do Sul. O Posto Mazine oferecia  os melhores carros de aluguel e era de bom tom tomar sorvete no Café Belas Artes, do Palácio do Comércio, após sair das sessões da noite, do Diogo e do Moderno.


O Palácio do Comércio com destaque para o Café Belas Artes


A propósito, os cinemas do Centro apresentavam duas sessões, sendo uma às três e meia e a outra às sete e meia. Naquele dia, 27 de agosto de 1945, era esta a programação das nossas salas cinematográficas:  DiogoPrisioneiro de Zenda, da Art-Films; ModernoMinha namorada favorita, da Fox; Majestic - Império da desordem, da Columbia; RexNão adianta chorar, da Atlântida; Luz - o mesmo programa; Nazaré - (sessão colosso) Os valentes de guarda, da ColumbiaFuzileiros da Fuzarca, da RKO Rádio; Centro - Serenata azul, da Paramount

Assim era Fortaleza, em 1945, quando as mulheres se "arrumavam" para sair, se faziam elegantes para ir o cinema, quando as bijuterias eram  filigranas e marcassitas, quando as meias eram de seda, quando as sombrinhas protegiam dos raios solares, as "cútis aveludadas como pétalas de rosa".




E você, quando descobriu a sua Fortaleza?


Fonte: Livro Royal Briar

terça-feira, 21 de março de 2017

Herman Lima - Sânzio de Azevedo



"No dia 21 de junho deste ano de 1981, apenas um mês e dez dias depois de haver completado 84 anos de idade (nascido que fora em 11 de maio de 1897), faleceu no Rio de Janeiro o escritor Herman Lima, sem dúvida um dos maiores nomes que, de nossa terra, têm saído para projetar-se no cenário da literatura nacional. Nascido no Meireles, em Fortaleza, diante de um mar que povoaria algumas páginas de sua ficção, cultivou o desenho antes de dedicar-se às letras, chegando a publicar charges, capas e historietas em revistas cariocas de larga circulação, na primeira década do século. Mas já nesse tempo, trabalhando na Fotografia N. Olsen, começava a entusiasmar-se com as narrativas de João doNorte, pseudônimo de Gustavo Barroso. Otacílio de Azevedo, meu pai, numa página de reminiscências, ao contar como entrou para aquele estabelecimento, por volta de 1912, como copiador de retratos, evoca: Já lá estava, empregado, um rapazola de olhos vivos e grandes, muito inteligente, às voltas com exemplares das revistas O Malho e Tico-Tico, das quais era colaborador, escrevendo e ilustrando. Na figura principal das historietas que publicava pôs o nome de João Balabrega, seguindo o exemplo de Angelo Agostini, que fazia as célebres aventuras do Zé Caipora. Esse moço era Herman Lima¹
Graças ao prestígio de Antônio Sales, recém-chegado do Rio, onde vivera cerca de 20 anos, seria publicado, em 1917 ou 18, na revista Fon-Fon!, o conto Gata Borralheira, o primeiro conto de Herman estampado num periódico da então Capital Federal. Essa narrativa, como outras saídas de sua pena por essa época, versava tema ligado à vida dos pescadores, figuras bem familiares ao ficcionista que se iniciava. Ele mesmo confessaria que, ao pensar em novas estórias, esbarrava num problema dos mais graves: seu total desconhecimento do sertão... Foi então que se incorporou a uma comissão que trataria da construção de uma estrada de rodagem de Aracati a Quixadá, passando por Morada Nova. Admitido como feitor de campo, passaria ele quase dois anos no sertão jaguaribano, no meio dos vastos carnaubais, convivendo com a população interiorana, e podendo, então, ver de perto as paisagens tostadas pela seca ou banhadas pelo inverno. Daí por diante poderia transformar em literatura tipos e cenas de sua própria experiência. 

Depois desse fecundo estágio nos sertões cearenses, onde encontrou a matéria-prima da maioria de seus contos, transferiu-se Herman Lima para a Bahia, em 1922, a fim de cursar Medicina, levando prontos os originais de Tigipió, livro que, editado em Salvador, mereceria a consagração da crítica, um prêmio da Academia Brasileira de Letras e, pelos anos afora, várias edições no Rio de Janeiro. Em 1928 publicou A Mãe-d'Água, de contos e crônicas. Formado em Medicina, transferiu-se o escritor para o Rio em 1931, publicando no ano seguinte o romance Garimpos, cujo enredo se passa na Bahia. Escreveu dois livros de viagens (Na Ilha de John Bull, 1941 e Outros Céus, Outros Mares, 1942, e uma monumental História da Caricatura no Brasil, 1963), em quatro volumes, que lhe custou 20 anos de trabalho. Seus méritos como teórico do conto ficaram evidenciados nas Variações Sobre o Conto (1952), e conhecidos seus dotes de fino cronista com as Imagens do Ceará (1959), onde já se prenuncia o admirável memorialista de Poeira do Tempo (1967). E ainda temos o crítico, autor de excelentes estudos sobre Afonso Arinos, Domingos Olímpio, Coelho Neto, Aluízio Azevedo, Olegário Mariano, Rachel deQueiroz e outros vultos de nossas letras. Sem nos deter na síntese notável que são as citadas Variações Sobre o Conto, que mereceram calorosos elogios de Alceu Amoroso Lima e de Lúcia Miguel-Pereira, assinalo aqui de passagem a segurança da observação crítica deste trecho, à propósito da protagonista do romance Luzia-Homem: Na fixação dessa figura, Domingos Olímpio teve mão de mestre sem descaídas. Nenhum traço lhe falta, a partir da hora em que Luzia nos aparece, através da anotação assombrada do francês Paul: ''Passou por mim uma mulher extraordinária, carregando uma parede na cabeça." Em todos os seus atos exteriores, como na forte carnação dos membros poderosos, a que não era alheia, porém, nenhuma das graças mais feiticeiras da sua condição de mulher, Luzia, em todas as suas reações emocionais, não trai jamais o seu sexo. A partir da terceira edição (a de 1932), Tigipió foi refundido, sendo a ele incorporados três contos de A Mãe-d'Água (Os Caboclos, As Mulheres e A Mãe-d'Água), e um inédito, O Arrieiro, ficando assim 13 narrativas das melhores que tem produzido o regionalismo na literatura. E de tal modo atingiu à perfeição com seu livro de estréia, que, se não houvesse publicado mais nada, ainda assim Herman Lima teria seu nome consagrado, razão por que dele disse Braga Montenegro: "Talvez ele e Gustavo Barroso sejam os representantes mais autorizados do conto regionalista entre nós, em qualquer época." Por sua vez, Moreira Campos, em artigo escrito por ocasião da morte do escritor, afirmou, com sua autoridade de grande contista (um dos maiores não só do Ceará, mas do Brasil), após referir-se à admiração de Herman Lima por Anton Tchecov: "Ele próprio, Herman, era um mestre do gênero, pela realização e pelo conhecimento sobre a matéria."  Alguns contos de Tigipió são páginas soberbas, dignas de qualquer antologia do gênero; seja no clima fantástico de Sereias, no anedótico de As Guabirabas, ou no trágico de Alma Bárbara, em todas as narrativas sentimos o pulso do verdadeiro ficcionista. É interessante observar o final imprevisto de alguns contos: em O Arrieiro, ouvimos a narração de um engenheiro da Inspetoria das Secas. Tendo de viajar léguas e léguas com 100 contos de réis, dão-lhe por companheiro de jornada o Mariano, caboclo de torvo aspecto, que andava sempre com um enorme punhal. Cada vez confiando menos no caboclo, o engenheiro o surpreende mexendo na valise do dinheiro; mas Mariano, já com o pacote de notas nas mãos, solta um riso mordaz e diz: "O dinheiro fica melhor comigo, doutor." Daí por diante, tudo indica que o caboclo vai terminar tentando matar o engenheiro, em plena mata. Em certo pouso, o narrador do caso é vencido pelo sono, apesar do pavor que sente. Acorda no dia seguinte. terminando assim o conto: Junto a mim, um sorriso amável, inteiramente novo, como eu nunca lhe vira, a aclarar-lhe a face, todo envolto na auréola de ouro que o sol nascente lhe armava por trás da figura esguia, o Mariano, apoiado ao punho da minha rede, sacudindo-a de leve, convidando-me alegremente: - Vam'embora, doutor! 'Stá na hora da gente largar! Em outro, Ventura Alheia, temos a estória de dois irmãos que desde pequenos eram amigos de uma menina da vizinhança, Isabel: Justino, belo e cheio de saúde, e Damião, raquítico e extremamente feio. Com o passar dos anos, Isabel, já moça, cada vez mais se aproxima de Justino, à proporção que se afasta de Damião, que sofre com o desprezo. Uma noite, tendo viajado o irmão, deixa Damião próximo à vereda uma armadilha, com uma forquilha, uma espingarda e um cordão, a fim de surpreender uma onça. Em casa, porém, soube da volta de Justino, e correu, para evitar que o irmão, ao passar pela vereda, de volta da casa da moça, para onde tinha ido, fosse vitimado pelo tiro. Mas, ao se agachar para desfazer a armadilha, viu dois vultos abraçados, e reconheceu o irmão e a namorada. Chorando de dor, ficou muito tempo a olhá-los. Mas Justino despediu-se da moça. E o conto finda com este parágrafo impressionante: Então, de repente, num pulo feroz, o rapaz precipitou-se para a arma carregada, calcou com força na forquilha de trás, que a sustinha, alçou mais o cano, até pô-lo à altura de visar um homem. E, tudo pronto, - o cordel esticado, os gatilhos abertos, prestes a bater, - agachado, ao pé do mato cauteloso e sinistro como uma sombra maldita, Damião atirou-se a correr pela vereda em fora, como um doido, soluçando de dor e de ódio.  

Jornal O POVO publicado em 04/01/2000 (Clique para ampliar).

No imprevisto de O Arrieiro desfaz-se o que tudo indicava dever terminar numa tragédia: Mariano, apesar do aspecto feroz e de seu imenso punhal, era de fato homem de confiança. Em Ventura Alheia, a tragédia é que constitui o imprevisto: Damião não desejava a morte do irmão, tanto assim que correu para desarmar o engenho mortal; mas a cena dos dois namorados juntos despertou-lhe o ciúme; mostrando-lhe toda a extensão de sua desgraça ... Quanto à presença da paisagem cearense na obra de Herman Lima, vale a pena lembrar o que sobre Tigipió escreveu Humberto de Campos: O que mais caracteriza este livro é ( .. . ) a paixão da gleba, o amor intenso do autor pela terra mártir em que nasceu. Eu conheço o Ceará, algumas centenas de léguas dos seus sertões e das suas serras, percorridas no rigor das secas ou sob a bênção dos invernos abundantes. E confesso que nenhum escritor do Nordeste me deu, jamais, impressão mais viva, nem mais justa, das paisagens que eu vi e das regiões que visitei. Com efeito, só no conto que abre o livro e lhe dá a título, há sugestivos trechos retratando cenas vivas e verdadeiras da seca e do inverno em nossa terra. Há descrição como esta: No cimo das galhadas, sobre o carnaubal cinéreo, gralham periquitos famintos, grasnam maracanãs, jandaias, coricas e anuns-pretos. Somem-se as águas dos poços, putrefeitas. Nas fazendas, principia então a labuta horrível de escavar a terra ardente, em procura da gota salvadora que o solo insaciável a mais e mais vai sugando. Ou com esta outra, onde é bem diversa a paisagem: Três dias depois da segunda chuva, de todos os pontos da terra exsicada espantam os brotos verdes da babugem. Os troncos negros, que pareciam mortos, vestem-se de folhedos tenros, esmeráldicos. No cimo das galhadas, nos juremais primeiro, surge uma folhagem verde-gaio, tão leve e tão tênue, como bocados plúmeos de nuvens verdes, tombados sobre a mata. Nos baixios alagados estendem-se as águas claras das lagoas, como outros pedaços do céu, onde em breve se estrelará a floração branca do muçambê. Como não poderia deixar de acontecer, o poder verbal do ficcionista está presente nas páginas sentidas de seu livro de memórias, Poeira do tempo: para dar apenas um exemplo, e dos mais eloquentes, basta o capítulo O Primeiro Amigo, onde é evocada a figura de José Nogueira, assassinado a tiros em frente ao Clube dos Diários, em 1914. Depois de falar do amigo e da tragédia que o vitimou, abalando Fortaleza, revela o escritor que, quase 25 anos mais tarde, no Rio de Janeiro, no velho casarão do Tesouro, onde trabalhava, num local que ele expressivamente descreve como urna "sala sempre escura, por mais que fosse meio-dia", alguém o procurara, em busca de um papel de seu interesse e ao identificar-se, "deixou cair o nome do assassino de José Nogueira"

José Nogueira e o Clube dos Diários, local do crime.

Reproduzo na íntegra o final desse capítulo: Por um momento, na sala silenciosa e lôbrega, foi como se tivesse havido um tiro. Instintivamente me retraí, dum modo que não poderia ter passado despercebido a ele. É que o papel que eu tinha debaixo dos olhos, sobre a mesa, como que se transmudara de repente naquelas mesmas finas roupas do rapazinho morto de Fortaleza, o paletó chamuscado de balas, a camisa numa papa de sangue, que eu vira uma vez, como prova do processo do crime, com que se fora aquela vida, tirada pelas mesmas mãos que agora se estendam para mim, sinistras e ao meu parecer ameaçadoras, como as dum fantasma do passado vindicativo. Posso dizer que nasci ouvindo o nome de Herman Lima, tantas vezes o pronunciou meu Pai, rememorando os tempos remotos da Fotografia N. Olsen. Mais tarde, pude admirar-lhe a obra literária e compreender a importância de seu papel no panorama de nossas letras. Mas foi só em 1974 que pude conhecê-lo pessoalmente, em sua última vinda a Fortaleza, quando fomos visitá-lo, no Meireles, meu Pai e eu, levados pela mão amiga de Braga Montenegro. Podia eu ver de perto um dos maiores vultos da literatura de nossa terra. Alto e anguloso, aquele homem de quase 80 anos de idade, que deixara o Ceará havia mais de meio século, nada tinha de baiano, nem de carioca, nem de cosmopolita: era um puro cearense, ora assumindo ares de matuto encabulado, ora entusiasmando-se com o relato de fatos ligados à sua vida de escritor, ora desfazendo-se em risos ao evocar as peripécias de sua juventude ... Depois, estive com ele algumas vezes no Rio, em 1976 e 77, em sua casa do Jardim Botânico ou em reuniões na biblioteca de Plínio Doyle. E sempre, por mais que derivássemos a conversa para outros assuntos, terminávamos falando do Ceará, principalmente do Ceará de seu tempo, que era também o da iniciação de meu pai nos caminhos da literatura. Eram conversas agradáveis mas ao mesmo tempo tristes, porque molhadas de saudade. Da segunda vez que me demorei no Rio, em 1979 e 80, sabendo que o escritor estava enfermo, e que cada vez mais se tornava precária sua saúde, confesso não ter tido coragem de visitá-lo. Ademais, já então meu pai havia passado para o outro lado da vida, e mais tristes teriam sido as nossas conversas sobre esse tempo que não foi o meu, mas que sempre me pareceu tão familiar... Herdeiro direto do Realismo, Herman Lima, com a obra que deixou, não é nome que possa jamais ser esquecido: ficcionista, cronista, crítico, memorialista e também tradutor, sua obra mereceu elogios de nomes como João Grave, Agrippino Grieco, Humberto de Campos, Carlos Chiacchio, Medeiros e Albuquerque, M. Cavalcante Proença, Manuel Bandeira, Gustavo Barroso, Antônio Sales, Mário Linhares, Dolor Barreira e Braga Montenegro, para citar apenas alguns escritores que, como ele, já empreenderam a Grande Viagem. Com a morte de Herman Lima, a cuja memória a AcademiaCearense de Letras rende homenagem, não é exagero afirmar que se encerra todo um capítulo da história."


 • Sânzio de Azevedo 


¹literária do Ceará e do Brasil. 1 AZEVEDO, Otacílio de. Fortaleza Descalça. Fortaleza, Edições UFC, 1980, p. 245

Crédito: Academia Cearense de Letras/ Relendo Herman Lima - Sânzio de Azevedo

quinta-feira, 16 de março de 2017

Raimundo Varão - Por Otacílio de Azevedo



O primeiro emprego que arranjei em Fortaleza foi na Fotografia N. Olsen, na rua Formosa (hoje Barão do RioBranco), onde aprendi a lidar com o afamado papel albuminado, a base de ouro, no qual copiava retratos à luz do sol, com cinquenta e tantas prensas, correndo o risco de, caso se queimasse alguma por excesso de exposição, ser descontado, seu valor, dos miseráveis sessenta mil réis que percebia por mês... 
Ali trabalhei com Júlio Azevedo, meu irmão, Augusto Cabral, musicista, Herman Lima, que desenhava para o Tico-Tico o seu gozado João Balabrega e começava a escrever contos e Raimundo Varão, uma das personalidades mais originais que tenho conhecido, e a quem dedico esta crônica. 
Varão era alto, magro, perfil grego, sobrancelhas emendadas, olhos fundos e olheiras cor de zinabre. O rosto, muito branco, era um mapa-múndi de veias azuladas; exalava um insuportável mau cheiro, devido ao fato de não tomar banho e deixar que a camisa se acabasse, suja, pregada ao corpo. Dentro dessa imundície, porém, existia um grande poeta que, nas horas de folga, lavava cuidadosamente as mãos, de seis dedos cada uma, e com zelo folheava os livros mais limpos deste mundo, sem, lhes dobrar uma página e nem mesmo riscá-los com seu nome, para não lhes macular a alvura. 
No dia em que não respondesse ao nosso bom dia, podíamos ficar certos de que passaria um mês sem falar com ninguém...


Postal da rua Major Facundo no início do século XX. Vemos a Estrela do Oriente onde Otacílio foi comprar a camisa para Raimundo Varão. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz

Conta-se que criava, num recanto escuro de quintal, dentro de um barril, um asqueroso sapo cor de bronze, que era o seu ídolo. Acariciava-o e, dizem, até o beijava! 
Um sábado, correu como um arrepio a notícia de que "seu" Raimundo ia tomar um banho no domingo. É que, pela primeira vez, se apaixonara! 


Fui a seu mandado comprar, na "Estrela do Oriente", uma camisa branca, de peito duro, colarinho, e mais uma gravata de seda, um par de abotoaduras, chapéu de palhinha de arroz, lenços e um vidro de perfume estrangeiro. Tinha vindo da "Alfaiataria Amâncio" um belíssimo terno de casimira cinzenta. Varão havia também comprado um par de sapatos Bordalo, meias, ceroulas até os calcanhares, ligas, etc. 
Meu primeiro cuidado, no domingo, foi assistir ao seu anunciado banho, apenas com a curiosidade de ver-lhe os seis dedos em cada pé... Mas saí frustrado, pois os seus pés eram iguaizinhos aos meus! 

Aconteceu, porém, que eu havia combinado com ele comermos uma carne seca, assada no álcool, com farinha d'água e cebolas, e o pobrezinho quase morria em consequência disso, porque seu único alimento era bolachinhas Jacob* e cerveja... 

Foi uma semana que passou doente. Quando ficou bom, meteu-se na roupa nova e rumou para o Passeio Público, onde já o esperava ela, com o mais terno dos sorrisos... 


Passeio Público, local de encontro do Varão e sua musa. Em destaque a estátua de Prometeu em mármore. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz

Varão amava... E esse amor lhe modificou por completo a vida: ria, cantava, e brincava conosco. É desse tempo e inspirado pela amada esse magnífico soneto que intitulou "Mademoiselle Ibis": 


Quando a vejo passar, franzina e leve, 
mais delicada e frágil que as verbenas, 
penso que aquele traje ocultar deve 
a rainha grácil das açucenas. 

Lírios, pérolas, lânguidas falenas, 
rubis, Papoulas, flóculos de neve,
vêm nos trazer um fraco esboço apenas 
do conjunto ideal da boca breve... 


Dos seus olhos, mais puros que as estrelas, 
a luz auroreal nos vêm falando 
de cousas que é impossível concebê-las... 

E quando passa, a rir, entre cortejos, 
parece uma ilusão que vai boiando 
num oceano de sonhos e desejos! 

Passados meses, Raimundo Varão, já desiludido talvez daquele amor que lhe fora efêmero, desabafando a revolta de seu coração angustiado, cheio de desilusões, escrevia estes poemas decassílabos: 


UM SONETO D' AMOR 

Anjo, mulher, demônio a quem venero, 
sombra que amaldiçoo e que bendigo, 
luz de meus olhos, infernal perigo, 
causa de meu eterno desespero! 

Se procuro esquecer-te é que mais quero 
dar-te em minh'alma sacrossanto abrigo, 
e concentrando as lágrimas comigo 
as minhas próprias carnes dilacero... 

Do meu profundo amor sempre a falar-te 
encontrarás o espectro solitário 
disperso, a soluçar por toda a parte! 

E se em teu peito a compaixão não medra, 
eu irei pela senda do calvário 
arrancando um soluço a cada pedra! 

ALUCINADO 

Ardendo em chamas de infernal cratera, 
ao ver-te o corpo escultural, divino, 
sinto rugir-me n'alma uma pantera 
que ladra contra Deus e o meu destino... 

Tu és a flor em plena primavera 
eu sou o mendigo, o verme pequenino... 
Deixa rolar no abismo da quimera 
a paixão deste amor, que não domino. 

Vive, mulher, e sê feliz! - Um dia, 
quando houveres baixado à campa fria, 
na febre dos desejos indomados, 

irei partindo o mármore das lousas,
visitar o mistério em que repousas
para beijar-te... os ossas descarnados!

Quando Raimundo Varão publicou o seu poema A Morte da Águia fomos eu, ele e Matos Girão, numa clara noite de luar, à Ponte Metálica. Varão, quando terminou a declamação de seu poema, com estes versos:

O poeta é como a águia, anseia o infinito,
o olhar na luz da ideia eternamente fito,
desdenha o mundo vil e a existência ilusória,

e voa e cai e morre olhando o sol da glória



Disse, emocionado: "Ó mar, tu, que guardas tantas pérolas no teu seio de esmeralda, acolhe mais esta no teu valioso escrí­nio!" - E atirou, num gesto de entusiasmo, o poema que acabara de ler, às ondas inquietas, que o acolheram... 

Não tivesse eu me agarrado com unhas e dentes com o Girão e teria ele ido buscá-lo num mergulho em que talvez houvesse desaparecido para todo o sempre. 
Não sabemos por que Varão, tão grande nos seus versos, foi um nome que se apagou, mesmo no Ceará, onde militou durante tantos anos, entre os maiores da terra. Questão de sorte? "Falta de estrela", como diz o vulgo? Dolor Barreira dedicou-lhe várias páginas em sua admirável História da Literatura Cearense, mas ainda assim podemos dizer que o poeta de A Morte da Águia é um desconhecido nas letras cearenses. Herman Lima, que foi seu contemporâneo na Fotografia N.Olsen, esqueceu, inexplicavelmente, o poeta em seu livro de memórias. 



Raimundo Varão sempre andava com as mãos para trás, segurando um grande Atlas Geográfico, cousa que nunca estudou . De tanto sentar-se em cima dele já lhe havia apagado quase todas as letras da capa. Certo dia, descobrimos que aquele livro apenas resguardava dos olhares curiosos os fundilhos de sua única e velha calça, em petição de miséria... 

Certa vez Varão estava revelando uma porção de retratos na viragem de ouro quando descobri que ele, com os olhos pregados no teto, deixava, sem o sentir, as provas todas serem devoradas pela ação corrosiva do revelador! Todas as provas haviam desaparecido! 

Não sei se devido à minha pouca idade, naquele tempo, ou se pela excentricidade do poeta, eu lhe queria muito bem, mas um movimento de repulsão me afastava dele e me fazia temê-lo como se ele fosse uma cousa diabólica, um monstro desses das antigas histórias de Trancoso, que tantas vezes ouvi, aterrorizado, quando criança. 
No entanto, quando lia para mim os seus versos, eu perdia todo aquele pavor, e o meu medo se transformava em piedade, ou em submissa adoração. Na verdade sempre o admirei como a um deus, algo divino, que houvesse caído de um astro, de uma estrela. Achava-o diferente dos outros, respeitava-o como a um ente superior, que vivesse à parte, alheio a todas as baixezas do mundo, dentro da galera de um sonho! Uma pessoa estranha, arrancada às Mil e Uma Noites, fluídica, incorpórea, mas que na terra fosse tomando a forma extraordinária de um ídolo pagão de alguma seita diferente de todas as outras religiões, diante do qual só nos cabia um direito: dobrar os joelhos e lhe beijar o pó das sandálias... 
Não sei de poeta, em Fortaleza, que fizesse sonetos mais lindos do que os de Varão. Vejamos mais este, ainda inspirado pela Mademoiselle Ibis: 


VISÃO NOTURNA 

Espairecendo incauta e descuidada 
à fraca luz da lâmpada indecisa, 
a cada passo um raio de alvorada 
ilumina o lugar onde ela pisa... 

Na mórbida indolência que desliza 
a sua forma clássica, esmerada, 
lembra um cisne de luar que se eteriza 
no mar de luz da esfera constelada. 

Pasmam ao vê-la as lâmpadas esguias 
fazendo recordar dos grandes sábios 
as cavernosas órbitas sombrias...

E as suas frases dúlcidas, singelas, 
cada palavra que lhe sai dos lábios, 
vou transcrevendo em sílabas de estrelas! 

Além desta, são inúmeras as poesias que escreveu naquele tempo e que eu decorei para recitar nos serões então em voga, quando ainda não existia o rádio e o sentimento expressivo tinha grande valor. 
Nada mais belo do que um lindo poema declamado ao som embalador da melodiosa Dalila ou de uma valsa lenta, em chorosa surdina... 
Fui para o interior do Ceará, e na minha ausência Raimundo Varão foi embora, parece-me que para o Rio de Janeiro, e de lá, saudoso, escreveu e enviou para ser publicado aqui este belíssimo soneto, um dos mais belos que inspirou nossa cidade: 


FORTALEZA 

Lá, sob um claro céu de azul-turquesa, 
Onde o sol seu tesouro em luz descerra, 
Lá fulge a legendária Fortaleza, 
Como um raro brilhante sobre a Terra. 

Como um sacro penhor da Natureza, 
Como um beijo auroral que a vida encerra, 
Longínqua e bela, a lânguida princesa, 
Arfando o peito, geme e os olhos cerra. 

Porque nos batem temporais medonhos 
E tivemos no mundo a mesma sorte, 
Ó casta Fortaleza dos meus sonhos,
Meu derradeiro e desvelado anseio 
É ter a paz na comunhão da Morte, 
Dormindo em sete palmos do teu seio...



Otacílio Ferreira de Azevedo nasceu na cidade de Redenção, Ceará, em 11 de fevereiro de 1896 e faleceu em Fortaleza no dia 3 de abril de 1978, aos 82 anos de idade. Autodidata, com boa formação intelectual, foi poeta lírico, pintor, fotógrafo e jornalista. Como pintor possui bons quadros, muitos dos quais enriquecem galerias do Ceará, do Brasil e de Londres.

Sobre sua poesia, Raimundo Girão comenta que "é flagrante o seu talento po­ético, traduzido em versos de dolorido lirismo, como que na linguagem mesma do poeta - cantando a minha angústia indefinida, purificando a minha própria mágoa."
Publicou as seguintes obras: Dentro do passado, 1916; Alma ansiosa, 1918, 2ª ed. 1955; Musa risonha, 1920; Sugestão ao luar, 1921; Réstia de sol, 1942, 2ª ed. 1967; Redenção, 1944; Desolação, 1947; Últimos poemas, 1958; A origem da lua, 1960; Adá­gios, meizinhas e superstições (poesias), 1966, Trigo sem joio, 1986; e Fortaleza descalça1992, uma memória histórica de nossa cidade.
Ingressou na Academia Cearense de Letras no dia 21 de fevereiro de 1969 quando foi saudado pelo acadêmico Jáder de Carvalho. Ocupou a vaga deixada por Andrade Furtado, cadeira número 26, cujo patrono é o filólogo Manuel Soares da Silva Bezerra




* De acordo com minha amiga Isabel Pires, que foi quem conseguiu a foto da caixa das bolachas Jacob, a marca era Irlandesa e curiosamente,  vendida nas mercearias da antiga Fortaleza.


Crédito: Academia Cearense de Letras - Livro Fortaleza Descalça/1992.

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