Seu Alves, a versão cearense do poeta Gentileza
“Essa história é complicada, não tive nenhuma comunicação. Me senti violado, desconsiderado, tá certo que eu não sou nada na vida, mas eles não podiam ter feito isso”. É assim que Honorato Alves Pereira, 73 , mais conhecido como “seu Alves” inicia e descreve a própria história: a do sapateiro-poeta do Papicu, bairro localizado na zona-leste da capital cearense.
Há 23 anos ele trabalha como sapateiro em um dos pontos mais movimentados da cidade de Fortaleza, no horário de oito da manhã até às quatro da tarde, exercido religiosamente de segunda a sábado, embaixo de um puxadinho feito de madeira construído por ele mesmo. É nesse local que seu Alves tirou o ‘sustento’ para criar uma família numerosa.
“Filhos eu sei que são dez, agora os netos ainda não consegui contar direito, só os bisnetos, sei que são cinco”, contabiliza o homem que também foi carpinteiro e eletricista.
O sapateiro-carpinteiro há doze anos virou também escritor, quando resolveu utilizar o muro de um terreno localizado na Avenida Engenheiro Santana Junior para escrever mensagens que exaltam o amor e a família.
“Eu tenho isso aqui como um livro, eu coloquei isso para orientar as pessoas, as famílias estão se desfazendo.” Muitas mensagens escritas são em homenagem à mãe de seu Alves. “Não gosto muito de falar sobre a minha mãe, mas me lembro que ela sempre dizia: – meu filho, eu não tenho estudo, se eu pudesse, eu te dava. Cheguei a pedir esmolas com ela”, confessa entre lágrimas.
O sapateiro não sabe quantas mensagens escreveu, mas sabe que algumas conseguiram alcançar o objetivo. “Teve gente que veio aqui só me dizer que um dia foi tocado pelas minhas mensagens.”
A fama do sapateiro-escritor ultrapassou os limites da cidade, “vários estudantes e jornalistas de outros lugares vieram só ver minhas mensagens, teve gente da Itália, da França e do Paraguai. Eu tenho tudo guardado, todas as reportagens, tá tudo plastificado lá na parede da minha casa. Eu sou o Gentileza-cearense”, sorri enquanto se autointitula.
O sapateiro faz referência ao Profeta Gentileza, andarilho das ruas do Rio de Janeiro, que na década de 80 pintou 56 pilastras do Viaduto do Caju, numa extensão de aproximadamente 1,5km. As mensagens do profeta eram inscritas em verde e amarelo e mencionavam frases de gentileza. Uma das mais conhecidas é “gentileza gera gentileza”.
Mesmo sendo reconhecido como um personagem importante, seu Alves não conseguiu a conservação das mensagens, pois elas foram escritas em muro de uma propriedade particular. No local foi construído um supermercado de uma grande rede internacional. Com a construção do prédio, quase toda a extensão do muro foi pintada, apagando uma boa parte das mensagens.
“Eles estão apagando mensagens que podiam modificar as pessoas, me senti como se eu tivesse feito algo de muito ruim. Quando vi quase não acreditei, passei muitos dias sem vontade de comer, fiquei muito triste”, desabafa o sapateiro-escritor.
O muro-livro é também local de trabalho, e muitos dos clientes de seu Alves estão espalhados pelas adjacências. O sapateiro afirma que muitos deles estão contrariados, “todos dizem que isso é uma crueldade”.
Paulo Gusmão, 43, que é engenheiro de pesca e passa pela avenida quase todos os dias, desabafa: “a gente vai sentir falta”. A indignação vai além. Marcos Pedrosa, 34, comerciante, ressalta que “não faz sentido a retirada de todas as mensagens”. “Com isso uma parte do Papicu vai morrer”, reforça.
Seu Alves já é um personagem conhecido de todo o bairro e porque não dizer de toda cidade? Muitas pessoas passam pela Avenida Engenheiro Santana Junior diariamente e utilizam o muro até como referência de localização, como no caso do estudante Leandro Porto, 23, que está há pouco tempo em Fortaleza e utilizava o muro como referência. “Quando passei e não vi as mensagens, pensei que não estava perto do terminal, quase passei do ponto de descida”.
Além do muro, seu Alves também utilizou uma parte da calçada do terreno como painel, onde escreveu mensagens nas cores azul e vermelho.
Mesmo na pressa diária, alguns pedestres mais atentos param para ver palavras que falam de amor e felicidade. Palavras que desejam o fim das guerras com uma vontade infinita de que todos sejam felizes.”
Colaboradora: Angélica Goiana
(Texto publicado originalmente em 07 de maio de 2013 no site Clichetes)
Fotos: Agência Fato
Saiba Mais:
Em março de 2015, as pinturas do Sapateiro chegaram ao Estoril na exposição Sapateiro Alves: amigo do pobre, conhecido do rico. Reunindo placas com frases de amor, fé e tiradas cômicas, a mostra ficou em cartaz até o mês de abril e se juntou à comemoração do aniversário de Fortaleza.
“A calçada pertence a nós”, brada o homem simples que achou que pediria esmola para sobreviver à velhice, mas que hoje, é “aposentado com casa própria”. E é do lar grafado de azul e vermelho no Bairro Vicente Pinzón que o Sapateiro percorre de ônibus toda a cidade, “da Messejana até Caucaia”. Conhecido por muitos e até estudado por pesquisadores de tipografia, Alves não quer ser artista. “Sou uma pessoa como qualquer outra. Eu não tenho riqueza e nem quero. Eu quero mesmo é saúde”, gargalha.
Honorato Alves Pereira já foi carpinteiro, eletricista, ferreiro e chegou até a trabalhar como sinalizador na pista do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. “Me mandei pro Rio, cheguei lá querendo falar com o Getúlio Vargas (presidente à época), viram logo que eu era matuto”, conta. Já tendo passado por outros 10 estados, voltou e se firmou mesmo no Ceará, no bairro Papicu, onde fez muito velho virar novo. “Engraxar é como fazer o cabelo, tirar a barba. Eu deixo só o mi”.
Nos 30 anos que passou na famosa banca, tomou como missão colorir o cinza urbano. Chegou a ter problemas com a Polícia, mas ganhou o respeito dos pichadores. “Eles diziam que eram meus fãs”, conta, ressaltando que passou a pintar os muros só de madrugada. Preferiu não criar problema com os “barões”, sabe que “quem tem rabo de palha, não chega perto do fogo”.
O mural foi apagado inúmeras vezes. Ele não desanimava e refazia, até que achou por bem não pintar mais. Agora, as cores do Sapateiro chegam às galerias em mostra com curadoria de Bárbara Cariry e Diego Pontes. Orgulhoso do feito, Alves quer mesmo é passar suas mensagens. Com fala apressada e pandeiro à mão, pede para deixar um recado primordial: “Quer ser feliz? Faça alguém feliz”.
Fonte: Jornal O Povo - Matéria de Paulo Renato Abreu em 14/03/2015